Colunistas, Destaque

Vida cristã como culto espiritual — ou o pátio de recreio católico

Corremos o risco de achar que a vida da paróquia é a única vida que temos, esquecendo as exigências que não estão no cronograma do padre.

Vida cristã como culto espiritual — ou o pátio de recreio católico
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Vida cristã como culto espiritual — ou o pátio de recreio católico

Corremos o risco de achar que a vida da paróquia é a única vida que temos, esquecendo as exigências que não estão no cronograma do padre.

Data da Publicação: 17/10/2024
Tempo de leitura:
Autor: Rudy Albino
Data da Publicação: 17/10/2024
Tempo de leitura:
Autor: Rudy Albino

No meu texto anterior eu discorri sobre o sentido profano de liturgia a partir de sua etimologia, o que realmente tem a ver com um trabalho dispendioso para a comunidade, para a pólis. Agora, quero passar para a Sagrada Escritura. No AT, liturgia – são 150 aparições no texto – diz respeito diretamente ao serviço cultual prestado pelos sacerdotes levitas: sacrifícios de animais e mais sacrifícios… Sangue, muito sangue. Libações, oblações, ofertas queimadas de suave odor para o SENHOR (cf. Lv 1, 9 e similares). Vísceras para cá, gorduras para lá; túnica, manto, calções de linho, turbantes, efod, peitoral para o Sumo Sacerdote Aarão! Um culto prescrito até os mínimos detalhes. Já o NT – mais parcimonioso por reserva em aplicar termos cultuais do AT à nova realidade cultual cristã, contém apenas 15 aparições do termo em seu corpus – amplia de modo determinante o conceito: na maior parte das vezes em que se fala de liturgia nele se está referindo, de algum modo, ao ritual sacerdotal veterotestamentário; uma única vez, talvez, referindo-se ao culto propriamente cristão (cf. At 13, 2), ou seja, a algo próximo da forma das celebrações nas quais participamos hoje, como a Missa-Eucaristia; mas, algumas vezes, e aqui está o nosso alvo, como culto espiritual.

Oferecer nossos corpos como culto espiritual

Paulo, por exemplo, declara-se como ministro-liturgo de Cristo, exercendo seu sacerdócio na pregação do Evangelho aos pagãos. O Apóstolo dos Gentios emprega a terminologia cultual para falar da vida cristã. Ao invés de oferecer um animal irracional, Paulo oferece os pagãos como sacrifício agradável a Deus (cf. Rm 15, 16)1. Ao evangelizar ele faz liturgia, exerce o seu sacerdócio. Num texto fundamental, como Rm 12, 1, ele nos diz: “Exorto-vos, portanto, irmãos, pela misericórdia de Deus, a que ofereçais os vossos corpos como hóstia viva, santa e agradável a Deus: este é o vosso culto espiritual”. A discussão está sempre em torno da última expressão (ten logiken latreian). Uns traduzem por “culto racional”; outros, como a Bíblia da CNBB, como “o vosso verdadeiro culto”. Aprendi de Ratzinger-Bento XVI a traduzi-lo como o culto conforme o Logos2. Cristo é o Verbum, Logos. Usamos as palavras dele, que é a Palavra, para falar com Deus na liturgia. Contudo, o próprio Bento XVI nos ensinava em uma catequese sobre Paulo que isso não significa nem uma espiritualização (adoração desencarnada, sem atenção ao corpo, à matéria) nem moralização (foco no agir humano reto, ignorando os ritos)3 do ser e cultuar cristão. É a vida cristã que está em jogo aqui. É a pessoa inteira do cristão que deve ser envolvida nessa oferta. Você e eu, mais que animais racionais – criados com corpo-alma, com razão e vontade – devemos nos converter em hóstia (vítima) viva, santa, agradável a Deus. A entrega que o NT nos pede é que sejamos bem diferentes daquela de um animal degolado: homens e mulheres vivos, bem vivos; santos, identificados com Cristo a ponto de dizermos que Ele é nosso viver (cf. Fp 1, 21); agradáveis, com um bom odor que chegue às narinas divinas, e não estamos falando de perfume, de cosmético, mas do “cheirinho” de carne na brasa! (uma parte era queimada, ressalto). Confira, por exemplo, 2 Cor 2, 15, que uns traduzem como “bom perfume”, mas está falando do bom odor de Cristo em alusão aos sacrifícios prescritos pela Antiga Aliança. Para alguém do sul de Santa Catarina, vizinho do Rio Grande do Sul e igualmente amante de carne, saber que o “perfume” que deve subir aos céus e que deve chegar aos outros é algo parecido ao de um bom churrasco é muito inspirador! Nada mais comunional, agregador e atrativo que uma carne temperada com sal grosso num espeto (que me perdoem os vegetarianos, veganos e simpatizantes).

Oferecer nossos corpos: somos mais que um pedaço de carne – embora nossa cultura hipererotizada quer fazer-nos crer no contrário –, mas a nossa própria carne é lugar de culto. Nosso corpo, à semelhança do corpo de Cristo, é templo onde são realizados sacrifícios. É nele que há a oblação da nossa força de trabalho para realizarmos o que muitas vezes nos custa tanto… Seja levantar cedo, seja fazer um trabalho repulsivo ou perigoso pelo bem alheio; por meio dele se dá a libação das nossas lágrimas por dores indizíveis e dos nossos suores sob um sol castigador.

Religião: nem departamento nem rótulo

Então estamos “desobrigados” da liturgia, da justiça de dar a Deus o culto que lhe cabe inerente à “virtude da religião”4 por Paulo nos pedir um culto espiritual? Não precisamos de templos, rituais, padres? Claro que não. Antes, deixo que C. S. Lewis – que se dizia bem pouco interessado em “liturgiologia” e era um crítico do “Desassossego Litúrgico” das reformas excessivas5 – nos explique algo sobre o conceito de religião, o que pode nos ajudar em nossa reflexão. Lewis acreditava que em sua época o conceito de religião estava sujeito a mal-entendidos. Como hoje, aliás. “A palavra sugere que esse é mais um departamento da vida, um departamento adicionado ao econômico, ao social, ao intelectual, ao recreativo e a todos os demais. Mas aquelas cujas reivindicações são infinitas não podem ter status de departamento. Ou é uma ilusão ou, então, nossa vida toda é abrangida por isso. Não temos atividades não religiosas; somente religiosas e irreligiosas”6. De fato, a religião tem a ver com a vida toda; não é um setor a mais nela. Não há vida religiosa de um lado e uma vida totalmente profana/secular de outra. Lewis faz bem em nos alertar para o fato de que a religião muitas vezes prosperou como um departamento à parte e animou aqueles que vivem do prazer dado pela observância das práticas religiosas e pela dinâmica da vida eclesial. Há quem viva muito bem a sua vida por um lado e se entretenha por outra com as picuinhas, com as briguinhas, com as fofoquinhas de qualquer comunidade. Para Lewis, a religião, neste ponto, já virou um ídolo. E isso é um problema, pois podemos achar que viver a vida da paróquia como se fosse a única vida que temos. E, assim, esquecemos que temos exigências que não estão no cronograma feito pelo padre.

Contudo, Lewis vai além, com uma advertência: “Alguns concluirão que esse departamento ilegítimo deveria ser abolido. Outros pensarão, aproximando-se da verdade, que ela deveria deixar de ser departamental e ser estendida à vida toda, mas interpretará mal essa afirmação. Eles pensarão que isso significa que mais e mais de nossas transações seculares devem ser ‘iniciadas com oração’, que um pietismo enfadonhamente explícito deve infestar nossa conversas, que não deve haver mais bolo e cerveja7. Sim, eis o perigo de um puritanismo que ronda sempre os nossos círculos eclesiásticos. Uma virtude que quer se mostrar pela radicalidade. Vi numa caneca de cerveja por aí uma frase atribuída a Chesterton, na qual ele pedia para não se confundir temperança com abstinência… A frase valia para B. Shaw e vale para todo católico hoje.

Além disso, para alguns, tudo o que se faz deve ter o rótulo, a placa de “católico”. Eclesiastizar tudo! A vida ganha ares de igreja, não num bom sentido. Não nos tornamos “litúrgicos”, mas cerimoniosos. Comportamentos hieráticos, roupas sempre em tom pastel ou saias bem compridas e floridas (estilos que, diga-se, agradam-me muito). O problema é que deve ser sempre assim, só assim. Exclusivismo estético, modéstia imposta e uniformizante. E tudo isso aparece como extensão de vida espiritual. Isso é um problema? Não! Agora se for um sinal distintivo e indispensável, um rótulo, entramos na trilha errada. Nossa espiritualidade foi reduzida a um uniforme. O problema não é nos apegarmos a um dress code que imaginariamente estaria nas entrelinhas do Catecismo (seja o de Trento ou o atual). A dificuldade está em encaixar todo mundo, toda modéstia e piedade, no padrão de figurino de novela de época da Globo.

O pátio de recreio católico

Mas a vida espiritual – a vida cristã como tal – corre o perigo de confundir-se com um apostolado público, evidente, etiquetado de católico. O verdadeiro católico, pelo que vejo, não pode ser discreto. Apostolado é cruzada em campo aberto. O agir católico exige a bandeira desfraldada. (Pena – para alguns – que o elmo, a cota de malha, o escudo e a espada estão tão démodé!). O apostolado quieto, de presença, de companhia, de aconselhamento, de testemunho não gritante perdeu espaço. Apostolado de atração e convencimento, por conhecimento e conduta. Mais uma vez, não nego nada disso. Em tempos de tanta oposição à Igreja, tomar uma postura explícita com base na fé católica beira muitas vezes o heroísmo. Contudo, falta o et… et, não o aut… aut (e…e, ou…ou). Ah!, meu querido Chesterton, como você nos faz falta frente a um catolicismo sisudo e assustador que julga tudo e descolore a vida cristã e transforma a vida comum em um único modelo, cheio de prescrições: “O círculo externo do cristianismo é uma proteção rígida de abnegações éticas e sacerdotes profissionais; mas dentro dessa proteção desumana você encontrará a velha vida humana dançando como dançam as crianças e bebendo vinho como bebem os homens; pois o cristianismo é a única moldura para a liberdade pagã”8. Um pouco antes disso ele lembrava: “A doutrina e a disciplina dos católicos podem ser muros; mas são muros de um pátio de recreio9. Ou seja, a vida cristã pode parecer estar sob rígidas exigências rituais e espirituais, mas o que a faz realmente espiritual é oferta dela em sua naturalidade abraçada pelo amor de Deus que ama cada homem e mulher com o seu rosto, com o seu corpo, com o seu trabalho dentro ou fora de casa. Mas isso é apenas um lado da moeda.

(Tudo isso é mais desabafo do que juízo. É angústia e solidariedade em relação aos bem-intencionados, mas mal orientados).

Vida sacramental: fonte da vida como culto espiritual

Por outro lado, o culto espiritual não é um distanciamento dos ritos cristãos; quando você vive a sua vida espiritualmente, não está desconectando-se da vida religiosa, sobretudo sacramental. Nós não cremos que a espiritualidade está divorciada da religião (entendida aqui como instituição organizada, visível). A vida cristã é liturgia – como eu tenho repetido insistentemente – porque a vida espiritual nasce da vida sacramental; e, por sua vez, a vida espiritual tem relação direta com a vida vivida, celebrada, chorada, compartilhada, isolada, sofrida, alegrada, trabalhada, descansada, complicada, simplificada, descontrolada e organizada de cada um dos nossos dias. O culto espiritual é a vida, mas a aquela nutrida por dentro pelos sacramentos. Os sacramentos fazem que nós vivamos a fé e a caridade de forma mais profunda. A-M. Rogué acerta em cheio quando diz: “Os sete sacramentos são como sete taças que usamos para matar a sede nessa fonte de amor, tornando-nos, por nosso turno, fontes de caridade. Nascidos do amor, os sacramentos não têm outro fim senão gerar amor. Só salvam, pelo amor e no amor”10.

Nossa vida não é prédio público para ter “repartição”. Corremos o risco de não perceber a unidade que o próprio Deus imprimiu às nossas existências, tão fragmentadas em suas superfícies. Seria bom, oportuno, salutar – saudável – retomar como católicos a compreensão de que a liturgia dá sentido à vida, pois, no fim das contas, ela não acaba quando saímos da igreja, do mesmo modo que nossa vida não termina quando chegamos para a Missa.

Referências

  1. Salvatore Marsili, “A Liturgia, momento histórico da salvação” in Burkhard Neunheuser (et. al.), A Liturgia, momento histórico da salvação, Anámnesis 1 (São Paulo: Edições Paulinas, 1987), p. 47.[]
  2. Rudy Albino de Assunção, O Sacrifício da Palavra. A liturgia da Missa segundo Bento XVI (Campinas: Ecclesiae, 2016), pp. 204-218.[]
  3. Bento XVI, Audiência geral, 7 de janeiro de 2009. [São Paulo (17) – O culto espiritual][]
  4. Cf. Catecismo da Igreja Católica, n. 1807.[]
  5. Cf. C. S. Lewis, Cartas a Malcom (Rio de Janeiro: Thomas Nelson, 2019), pp. 13-15.[]
  6. Ibid., p. 51.[]
  7. Ibid., p. 52.[]
  8. Gilbert Keith Chesterton, Ortodoxia (São Paulo: Mundo Cristão, 2008), p. 258.[]
  9. Ibid., p. 238.[]
  10. Aimé-Marie Roguet, Sacramentos e vida (Lisboa: Livraria Sampedro, 1965), p. 212.[]
Rudy Albino

Rudy Albino

É professor, palestrante, Dr. em Sociologia. Pós-Doc. em Teologia e autor coluna "Liturgia e Trabalho: pistas para uma espiritualidade laical".

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No meu texto anterior eu discorri sobre o sentido profano de liturgia a partir de sua etimologia, o que realmente tem a ver com um trabalho dispendioso para a comunidade, para a pólis. Agora, quero passar para a Sagrada Escritura. No AT, liturgia – são 150 aparições no texto – diz respeito diretamente ao serviço cultual prestado pelos sacerdotes levitas: sacrifícios de animais e mais sacrifícios… Sangue, muito sangue. Libações, oblações, ofertas queimadas de suave odor para o SENHOR (cf. Lv 1, 9 e similares). Vísceras para cá, gorduras para lá; túnica, manto, calções de linho, turbantes, efod, peitoral para o Sumo Sacerdote Aarão! Um culto prescrito até os mínimos detalhes. Já o NT – mais parcimonioso por reserva em aplicar termos cultuais do AT à nova realidade cultual cristã, contém apenas 15 aparições do termo em seu corpus – amplia de modo determinante o conceito: na maior parte das vezes em que se fala de liturgia nele se está referindo, de algum modo, ao ritual sacerdotal veterotestamentário; uma única vez, talvez, referindo-se ao culto propriamente cristão (cf. At 13, 2), ou seja, a algo próximo da forma das celebrações nas quais participamos hoje, como a Missa-Eucaristia; mas, algumas vezes, e aqui está o nosso alvo, como culto espiritual.

Oferecer nossos corpos como culto espiritual

Paulo, por exemplo, declara-se como ministro-liturgo de Cristo, exercendo seu sacerdócio na pregação do Evangelho aos pagãos. O Apóstolo dos Gentios emprega a terminologia cultual para falar da vida cristã. Ao invés de oferecer um animal irracional, Paulo oferece os pagãos como sacrifício agradável a Deus (cf. Rm 15, 16)1. Ao evangelizar ele faz liturgia, exerce o seu sacerdócio. Num texto fundamental, como Rm 12, 1, ele nos diz: “Exorto-vos, portanto, irmãos, pela misericórdia de Deus, a que ofereçais os vossos corpos como hóstia viva, santa e agradável a Deus: este é o vosso culto espiritual”. A discussão está sempre em torno da última expressão (ten logiken latreian). Uns traduzem por “culto racional”; outros, como a Bíblia da CNBB, como “o vosso verdadeiro culto”. Aprendi de Ratzinger-Bento XVI a traduzi-lo como o culto conforme o Logos2. Cristo é o Verbum, Logos. Usamos as palavras dele, que é a Palavra, para falar com Deus na liturgia. Contudo, o próprio Bento XVI nos ensinava em uma catequese sobre Paulo que isso não significa nem uma espiritualização (adoração desencarnada, sem atenção ao corpo, à matéria) nem moralização (foco no agir humano reto, ignorando os ritos)3 do ser e cultuar cristão. É a vida cristã que está em jogo aqui. É a pessoa inteira do cristão que deve ser envolvida nessa oferta. Você e eu, mais que animais racionais – criados com corpo-alma, com razão e vontade – devemos nos converter em hóstia (vítima) viva, santa, agradável a Deus. A entrega que o NT nos pede é que sejamos bem diferentes daquela de um animal degolado: homens e mulheres vivos, bem vivos; santos, identificados com Cristo a ponto de dizermos que Ele é nosso viver (cf. Fp 1, 21); agradáveis, com um bom odor que chegue às narinas divinas, e não estamos falando de perfume, de cosmético, mas do “cheirinho” de carne na brasa! (uma parte era queimada, ressalto). Confira, por exemplo, 2 Cor 2, 15, que uns traduzem como “bom perfume”, mas está falando do bom odor de Cristo em alusão aos sacrifícios prescritos pela Antiga Aliança. Para alguém do sul de Santa Catarina, vizinho do Rio Grande do Sul e igualmente amante de carne, saber que o “perfume” que deve subir aos céus e que deve chegar aos outros é algo parecido ao de um bom churrasco é muito inspirador! Nada mais comunional, agregador e atrativo que uma carne temperada com sal grosso num espeto (que me perdoem os vegetarianos, veganos e simpatizantes).

Oferecer nossos corpos: somos mais que um pedaço de carne – embora nossa cultura hipererotizada quer fazer-nos crer no contrário –, mas a nossa própria carne é lugar de culto. Nosso corpo, à semelhança do corpo de Cristo, é templo onde são realizados sacrifícios. É nele que há a oblação da nossa força de trabalho para realizarmos o que muitas vezes nos custa tanto… Seja levantar cedo, seja fazer um trabalho repulsivo ou perigoso pelo bem alheio; por meio dele se dá a libação das nossas lágrimas por dores indizíveis e dos nossos suores sob um sol castigador.

Religião: nem departamento nem rótulo

Então estamos “desobrigados” da liturgia, da justiça de dar a Deus o culto que lhe cabe inerente à “virtude da religião”4 por Paulo nos pedir um culto espiritual? Não precisamos de templos, rituais, padres? Claro que não. Antes, deixo que C. S. Lewis – que se dizia bem pouco interessado em “liturgiologia” e era um crítico do “Desassossego Litúrgico” das reformas excessivas5 – nos explique algo sobre o conceito de religião, o que pode nos ajudar em nossa reflexão. Lewis acreditava que em sua época o conceito de religião estava sujeito a mal-entendidos. Como hoje, aliás. “A palavra sugere que esse é mais um departamento da vida, um departamento adicionado ao econômico, ao social, ao intelectual, ao recreativo e a todos os demais. Mas aquelas cujas reivindicações são infinitas não podem ter status de departamento. Ou é uma ilusão ou, então, nossa vida toda é abrangida por isso. Não temos atividades não religiosas; somente religiosas e irreligiosas”6. De fato, a religião tem a ver com a vida toda; não é um setor a mais nela. Não há vida religiosa de um lado e uma vida totalmente profana/secular de outra. Lewis faz bem em nos alertar para o fato de que a religião muitas vezes prosperou como um departamento à parte e animou aqueles que vivem do prazer dado pela observância das práticas religiosas e pela dinâmica da vida eclesial. Há quem viva muito bem a sua vida por um lado e se entretenha por outra com as picuinhas, com as briguinhas, com as fofoquinhas de qualquer comunidade. Para Lewis, a religião, neste ponto, já virou um ídolo. E isso é um problema, pois podemos achar que viver a vida da paróquia como se fosse a única vida que temos. E, assim, esquecemos que temos exigências que não estão no cronograma feito pelo padre.

Contudo, Lewis vai além, com uma advertência: “Alguns concluirão que esse departamento ilegítimo deveria ser abolido. Outros pensarão, aproximando-se da verdade, que ela deveria deixar de ser departamental e ser estendida à vida toda, mas interpretará mal essa afirmação. Eles pensarão que isso significa que mais e mais de nossas transações seculares devem ser ‘iniciadas com oração’, que um pietismo enfadonhamente explícito deve infestar nossa conversas, que não deve haver mais bolo e cerveja7. Sim, eis o perigo de um puritanismo que ronda sempre os nossos círculos eclesiásticos. Uma virtude que quer se mostrar pela radicalidade. Vi numa caneca de cerveja por aí uma frase atribuída a Chesterton, na qual ele pedia para não se confundir temperança com abstinência… A frase valia para B. Shaw e vale para todo católico hoje.

Além disso, para alguns, tudo o que se faz deve ter o rótulo, a placa de “católico”. Eclesiastizar tudo! A vida ganha ares de igreja, não num bom sentido. Não nos tornamos “litúrgicos”, mas cerimoniosos. Comportamentos hieráticos, roupas sempre em tom pastel ou saias bem compridas e floridas (estilos que, diga-se, agradam-me muito). O problema é que deve ser sempre assim, só assim. Exclusivismo estético, modéstia imposta e uniformizante. E tudo isso aparece como extensão de vida espiritual. Isso é um problema? Não! Agora se for um sinal distintivo e indispensável, um rótulo, entramos na trilha errada. Nossa espiritualidade foi reduzida a um uniforme. O problema não é nos apegarmos a um dress code que imaginariamente estaria nas entrelinhas do Catecismo (seja o de Trento ou o atual). A dificuldade está em encaixar todo mundo, toda modéstia e piedade, no padrão de figurino de novela de época da Globo.

O pátio de recreio católico

Mas a vida espiritual – a vida cristã como tal – corre o perigo de confundir-se com um apostolado público, evidente, etiquetado de católico. O verdadeiro católico, pelo que vejo, não pode ser discreto. Apostolado é cruzada em campo aberto. O agir católico exige a bandeira desfraldada. (Pena – para alguns – que o elmo, a cota de malha, o escudo e a espada estão tão démodé!). O apostolado quieto, de presença, de companhia, de aconselhamento, de testemunho não gritante perdeu espaço. Apostolado de atração e convencimento, por conhecimento e conduta. Mais uma vez, não nego nada disso. Em tempos de tanta oposição à Igreja, tomar uma postura explícita com base na fé católica beira muitas vezes o heroísmo. Contudo, falta o et… et, não o aut… aut (e…e, ou…ou). Ah!, meu querido Chesterton, como você nos faz falta frente a um catolicismo sisudo e assustador que julga tudo e descolore a vida cristã e transforma a vida comum em um único modelo, cheio de prescrições: “O círculo externo do cristianismo é uma proteção rígida de abnegações éticas e sacerdotes profissionais; mas dentro dessa proteção desumana você encontrará a velha vida humana dançando como dançam as crianças e bebendo vinho como bebem os homens; pois o cristianismo é a única moldura para a liberdade pagã”8. Um pouco antes disso ele lembrava: “A doutrina e a disciplina dos católicos podem ser muros; mas são muros de um pátio de recreio9. Ou seja, a vida cristã pode parecer estar sob rígidas exigências rituais e espirituais, mas o que a faz realmente espiritual é oferta dela em sua naturalidade abraçada pelo amor de Deus que ama cada homem e mulher com o seu rosto, com o seu corpo, com o seu trabalho dentro ou fora de casa. Mas isso é apenas um lado da moeda.

(Tudo isso é mais desabafo do que juízo. É angústia e solidariedade em relação aos bem-intencionados, mas mal orientados).

Vida sacramental: fonte da vida como culto espiritual

Por outro lado, o culto espiritual não é um distanciamento dos ritos cristãos; quando você vive a sua vida espiritualmente, não está desconectando-se da vida religiosa, sobretudo sacramental. Nós não cremos que a espiritualidade está divorciada da religião (entendida aqui como instituição organizada, visível). A vida cristã é liturgia – como eu tenho repetido insistentemente – porque a vida espiritual nasce da vida sacramental; e, por sua vez, a vida espiritual tem relação direta com a vida vivida, celebrada, chorada, compartilhada, isolada, sofrida, alegrada, trabalhada, descansada, complicada, simplificada, descontrolada e organizada de cada um dos nossos dias. O culto espiritual é a vida, mas a aquela nutrida por dentro pelos sacramentos. Os sacramentos fazem que nós vivamos a fé e a caridade de forma mais profunda. A-M. Rogué acerta em cheio quando diz: “Os sete sacramentos são como sete taças que usamos para matar a sede nessa fonte de amor, tornando-nos, por nosso turno, fontes de caridade. Nascidos do amor, os sacramentos não têm outro fim senão gerar amor. Só salvam, pelo amor e no amor”10.

Nossa vida não é prédio público para ter “repartição”. Corremos o risco de não perceber a unidade que o próprio Deus imprimiu às nossas existências, tão fragmentadas em suas superfícies. Seria bom, oportuno, salutar – saudável – retomar como católicos a compreensão de que a liturgia dá sentido à vida, pois, no fim das contas, ela não acaba quando saímos da igreja, do mesmo modo que nossa vida não termina quando chegamos para a Missa.

Referências

  1. Salvatore Marsili, “A Liturgia, momento histórico da salvação” in Burkhard Neunheuser (et. al.), A Liturgia, momento histórico da salvação, Anámnesis 1 (São Paulo: Edições Paulinas, 1987), p. 47.[]
  2. Rudy Albino de Assunção, O Sacrifício da Palavra. A liturgia da Missa segundo Bento XVI (Campinas: Ecclesiae, 2016), pp. 204-218.[]
  3. Bento XVI, Audiência geral, 7 de janeiro de 2009. [São Paulo (17) – O culto espiritual][]
  4. Cf. Catecismo da Igreja Católica, n. 1807.[]
  5. Cf. C. S. Lewis, Cartas a Malcom (Rio de Janeiro: Thomas Nelson, 2019), pp. 13-15.[]
  6. Ibid., p. 51.[]
  7. Ibid., p. 52.[]
  8. Gilbert Keith Chesterton, Ortodoxia (São Paulo: Mundo Cristão, 2008), p. 258.[]
  9. Ibid., p. 238.[]
  10. Aimé-Marie Roguet, Sacramentos e vida (Lisboa: Livraria Sampedro, 1965), p. 212.[]

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