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Vocação e maravilhamento na vida de um homem comum: análise do filme “A felicidade não se compra”

Olhar para a Encarnação de Deus que se fez menino é algo que inspira os artistas. O filme "A felicidade não se compra" está inserido nessa tradição.

Vocação e maravilhamento na vida de um homem comum: análise do filme “A felicidade não se compra”
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Vocação e maravilhamento na vida de um homem comum: análise do filme “A felicidade não se compra”

Olhar para a Encarnação de Deus que se fez menino é algo que inspira os artistas. O filme "A felicidade não se compra" está inserido nessa tradição.

Data da Publicação: 03/02/2025
Tempo de leitura:
Autor: Laise Sales
Data da Publicação: 03/02/2025
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Autor: Laise Sales

O filme A Felicidade não se Compra, de Frank Capra, tem como tema a vida de um homem cujo drama retratado transcorre na noite de Natal. 

O enredo trata da vida de George Bailey. Ele sempre foi um grande sonhador, com grandes projetos que gostaria de realizar. A empresa do pai de George nunca foi muito rica, porque o negócio consistia em emprestar dinheiro – em condições justas – a famílias pobres, para que elas pudessem construir as suas casas. George tinha um irmão, Harry, a quem salvou de um acidente na infância.

George cresce com o exemplo paterno de ajudar o próximo. Quando se forma no colégio, permanece trabalhando com o pai durante quatro anos, a fim de economizar e poder ir à universidade depois. Nesse período, no entanto, o pai de George falece e o senhor Potter – usurário e antípoda do pai de George – começa a pressionar pelo fechamento da empresa. Os demais acionistas, embora pressionados, concordam com a manutenção da empresa desde que George tome a sua frente. George abre mão do seu sonho de viajar e explorar o mundo para ficar na cidade e dar continuidade ao trabalho do pai.

George se casa com Mary. Ele não tem uma paixão arrebatadora pela moça; encanta-se por ela, sim, mas decide pelo casamento quando tem a certeza de que não irá embora da cidade. George tem verdadeira responsabilidade pelas pessoas que estão ao seu redor, pelo cuidado que devia a elas. Ele de fato vive um dilema entre os seus sonhos e o que precisa fazer, mas não assume as responsabilidades como um peso. Desde o início vemos que George é realmente caridoso. Os bons atos de George repercutem de maneira positiva em toda a comunidade. Ele está integrado e não é frustrado, apesar de não realizar os seus sonhos.

O drama do filme começa quando, no fim do ano em que precisavam fazer um balanço financeiro e pagar uma parcela de empréstimo ao banco, o tio de George se confunde e entrega todo o dinheiro (8 mil dólares) ao senhor Potter, cujo maior objetivo era fechar a empresa da família Bailey.

É na noite de 24 de dezembro que George descobre a falta do dinheiro. Ele sabe que a empresa está prestes a falir e que pode ser preso. Chega em casa irritando, briga com a família e sai para um bar. Lá ele faz uma pequena oração: pede um milagre a Deus, com humildade e abertura de coração, reconhecendo a fragilidade da sua situação.

A cena seguinte se passa no Céu, começando por um diálogo entre Deus e São José. Eles decidem como ajudar George, chamando Clemence, um anjo da guarda. O anjo foi enviado à Terra para auxiliar George.

Ao sair do bar, George vai até uma ponte e tem pensamentos suicidas. É nesse momento que Clemence aparece e que a verdadeira identidade de George é revelada, tanto aos espectadores do filme quanto ao próprio George, que pensava já não ter sentido continuar vivendo.

Clemence conhecia George e sabia que, pela bondade do seu coração, não deixaria de ajudar uma pessoa necessitada. O anjo então decide, de propósito, pular no rio e simular um afogamento. Nesse momento George esquece dos próprios sofrimentos e pula também no rio para salvar aquele desconhecido em perigo.

Clemence explica, diante da incredulidade de George, que é o seu anjo da guarda. Quando George diz ao anjo que seria melhor ele não ter nascido, Clemence lhe mostra uma nova perspectiva: como seria a vida das pessoas amadas de George se ele realmente não tivesse existido.

Há uma frase de São Josemaría Escrivá que me parece ser o lema de George: “Ninguém o fará por ti, tão bem como tu, se tu não o fizeres”. Eu associo essa citação a todo o bem que George fez à sua cidade, às pessoas ao seu redor. A bondade dele foi fecunda, mesmo que ele não o percebesse no momento de dor. Foi Clemence quem mostrou a George, e o filme de Capra nos mostra, as proporções gigantescas que os atos de bondade podem tomar.

George fica impactado com o bem que causou. Clemence percebe que ele entendeu o sentido e, cumprida a missão, desaparece. George então volta correndo para a casa, querendo encontrar Mary. Ele já não se importa tanto com o problema, com o êxito humano; ele sabe que, mesmo com o problema permanecendo, a sua vida inteira é fundamentalmente boa.

Reconhecendo a sua vocação, George passa por uma autêntica conversão, o que os antigos filósofos e teólogos chamavam de metanoia, um redimensionamento do olhar para o sentido transcendente da realidade cotidiana. George percebe conhece que sua vida é maravilhosa – sendo o título original do filme It’s a wonderful life –, porque reflete, sacramentalmente, uma realidade maior e eterna1

Todos os contratempos vividos por George contribuíram para ele se instalar na sua verdadeira vocação. A vocação humana não é a de realizar todos os desejos, mas cumprir com empenho, fé e amor a vontade de Deus.

A obra de arte é uma realidade cifrada. Não conseguimos adentrar em todos os pormenores simbólicos se não tivermos ajuda de alguém com olhar mais atento e especializado. Podemos recorrer a aulas, ensaios, artigos e vídeos que nos proporcionem críticas construtivas sobre as obras que contemplamos. Devemos buscar interpretações que tragam o significado, o sentido da obra, que é capaz de nos transformar.

O Natal é um tema muito fecundo nas obras artísticas. Inspirou obras-primas em todos os campos da arte – desde a pintura, literatura, música, escultura até o cinema. Olhar para a Encarnação de Deus que se fez menino é algo que inspira os artistas. O filme de Frank Capra está inserido nessa tradição.

A sua narrativa é singela como a cena do Presépio, mas dotada de um conteúdo simbólico profundo. Uma boa forma de compreender essa obra-prima do cinema é explorar o espírito católico do diretor, analisando o modo sutil com que os elementos centrais do Evangelho atuam, explícita ou implicitamente, como pano de fundo do enredo: a oração, a pureza das crianças, a vocação de serviço, a conversão, os sacramentos do Batismo e do Matrimônio, as virtudes teologais da fé, esperança e caridade, a comunhão dos santos e a mediação dos anjos e da Virgem Maria2.

Toca-me especialmente no filme de Capra a presença de São José, que aparece ao lado de Deus. Mas Maria está na Terra, ao lado de George: é a sua esposa Mary. Foi ela quem o ajudou, quem convocou os amigos sabendo da necessidade do seu amado.

Será que realizamos as nossas responsabilidades cotidianas com a consciência e alegria de que essas atividades são maravilhosas? A verdadeira conversão de George é a de entender que a sua realidade cotidiana é maravilhosa.

Com a Encarnação do Verbo de Deus, as nossas realidades cotidianas se divinizaram, tornaram-se sublimes. Não existe nada na Terra que, feito por amor, não nos aproxime do Céu. Mary passa o filme todo tentando mostrar a George que a casa deles também pode ser um Céu, uma antecipação da alegria perfeita.

Mesmo conhecendo os sonhos de George, Mary sabia que poderia fazê-lo feliz naquela realidade em que estavam instalados. Mary entendeu que a felicidade acontece na vivência de um grande amor, de algo magnífico e transcendente encarnado numa vida comum. Vendo uma casa antiga e descuidada, Mary enxerga a potência daquele lugar: ele poderia ser transformado, pelas mãos da mulher, em um lar.

A mulher transforma a realidade com o seu toque de beleza. Ela tem um verdadeiro ministério da beleza. No filme, Mary consegue mesmo transformar a casa antiga em um lar.

Renascido em Cristo, disposto a superar todas as dificuldades pelo amor, George recobra a fé em Deus e a esperança na Providência divina. O desfecho é uma alegre celebração natalina do amor, da amizade, da família e da comunidade, com todos cantando uníssonos Adeste, Fidelis (Vinde, adoremos), numa imagem da comunhão dos santos, congregados pelo amor a Deus e ao próximo, contribuindo para quitar a dívida de George3.

A bondade do homem que faz todas as coisas por amor, e que descobre a alegria sobrenatural por trás dessa realização, é uma felicidade que não se compra.

Referências

  1. PINHEIRO, Victor Sales. “A maravilha da vida”. A Crise da Cultura e a Ordem do Amor: Ensaios Filosóficos. São Paulo: É Realizações, 2021, p. 287.[]
  2. PINHEIRO, Victor Sales. “A maravilha da vida”. Ibid., p. 286.[]
  3. PINHEIRO, Victor Sales. “A maravilha da vida”. Ibid., p. 288.[]
Laise Sales

Laise Sales

Professora, doutora em História da Cultura, esposa e mãe, fundadora da Comunidade Entre Esposas, aborda temas de Antropologia Filosófica.

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O filme A Felicidade não se Compra, de Frank Capra, tem como tema a vida de um homem cujo drama retratado transcorre na noite de Natal. 

O enredo trata da vida de George Bailey. Ele sempre foi um grande sonhador, com grandes projetos que gostaria de realizar. A empresa do pai de George nunca foi muito rica, porque o negócio consistia em emprestar dinheiro – em condições justas – a famílias pobres, para que elas pudessem construir as suas casas. George tinha um irmão, Harry, a quem salvou de um acidente na infância.

George cresce com o exemplo paterno de ajudar o próximo. Quando se forma no colégio, permanece trabalhando com o pai durante quatro anos, a fim de economizar e poder ir à universidade depois. Nesse período, no entanto, o pai de George falece e o senhor Potter – usurário e antípoda do pai de George – começa a pressionar pelo fechamento da empresa. Os demais acionistas, embora pressionados, concordam com a manutenção da empresa desde que George tome a sua frente. George abre mão do seu sonho de viajar e explorar o mundo para ficar na cidade e dar continuidade ao trabalho do pai.

George se casa com Mary. Ele não tem uma paixão arrebatadora pela moça; encanta-se por ela, sim, mas decide pelo casamento quando tem a certeza de que não irá embora da cidade. George tem verdadeira responsabilidade pelas pessoas que estão ao seu redor, pelo cuidado que devia a elas. Ele de fato vive um dilema entre os seus sonhos e o que precisa fazer, mas não assume as responsabilidades como um peso. Desde o início vemos que George é realmente caridoso. Os bons atos de George repercutem de maneira positiva em toda a comunidade. Ele está integrado e não é frustrado, apesar de não realizar os seus sonhos.

O drama do filme começa quando, no fim do ano em que precisavam fazer um balanço financeiro e pagar uma parcela de empréstimo ao banco, o tio de George se confunde e entrega todo o dinheiro (8 mil dólares) ao senhor Potter, cujo maior objetivo era fechar a empresa da família Bailey.

É na noite de 24 de dezembro que George descobre a falta do dinheiro. Ele sabe que a empresa está prestes a falir e que pode ser preso. Chega em casa irritando, briga com a família e sai para um bar. Lá ele faz uma pequena oração: pede um milagre a Deus, com humildade e abertura de coração, reconhecendo a fragilidade da sua situação.

A cena seguinte se passa no Céu, começando por um diálogo entre Deus e São José. Eles decidem como ajudar George, chamando Clemence, um anjo da guarda. O anjo foi enviado à Terra para auxiliar George.

Ao sair do bar, George vai até uma ponte e tem pensamentos suicidas. É nesse momento que Clemence aparece e que a verdadeira identidade de George é revelada, tanto aos espectadores do filme quanto ao próprio George, que pensava já não ter sentido continuar vivendo.

Clemence conhecia George e sabia que, pela bondade do seu coração, não deixaria de ajudar uma pessoa necessitada. O anjo então decide, de propósito, pular no rio e simular um afogamento. Nesse momento George esquece dos próprios sofrimentos e pula também no rio para salvar aquele desconhecido em perigo.

Clemence explica, diante da incredulidade de George, que é o seu anjo da guarda. Quando George diz ao anjo que seria melhor ele não ter nascido, Clemence lhe mostra uma nova perspectiva: como seria a vida das pessoas amadas de George se ele realmente não tivesse existido.

Há uma frase de São Josemaría Escrivá que me parece ser o lema de George: “Ninguém o fará por ti, tão bem como tu, se tu não o fizeres”. Eu associo essa citação a todo o bem que George fez à sua cidade, às pessoas ao seu redor. A bondade dele foi fecunda, mesmo que ele não o percebesse no momento de dor. Foi Clemence quem mostrou a George, e o filme de Capra nos mostra, as proporções gigantescas que os atos de bondade podem tomar.

George fica impactado com o bem que causou. Clemence percebe que ele entendeu o sentido e, cumprida a missão, desaparece. George então volta correndo para a casa, querendo encontrar Mary. Ele já não se importa tanto com o problema, com o êxito humano; ele sabe que, mesmo com o problema permanecendo, a sua vida inteira é fundamentalmente boa.

Reconhecendo a sua vocação, George passa por uma autêntica conversão, o que os antigos filósofos e teólogos chamavam de metanoia, um redimensionamento do olhar para o sentido transcendente da realidade cotidiana. George percebe conhece que sua vida é maravilhosa – sendo o título original do filme It’s a wonderful life –, porque reflete, sacramentalmente, uma realidade maior e eterna1

Todos os contratempos vividos por George contribuíram para ele se instalar na sua verdadeira vocação. A vocação humana não é a de realizar todos os desejos, mas cumprir com empenho, fé e amor a vontade de Deus.

A obra de arte é uma realidade cifrada. Não conseguimos adentrar em todos os pormenores simbólicos se não tivermos ajuda de alguém com olhar mais atento e especializado. Podemos recorrer a aulas, ensaios, artigos e vídeos que nos proporcionem críticas construtivas sobre as obras que contemplamos. Devemos buscar interpretações que tragam o significado, o sentido da obra, que é capaz de nos transformar.

O Natal é um tema muito fecundo nas obras artísticas. Inspirou obras-primas em todos os campos da arte – desde a pintura, literatura, música, escultura até o cinema. Olhar para a Encarnação de Deus que se fez menino é algo que inspira os artistas. O filme de Frank Capra está inserido nessa tradição.

A sua narrativa é singela como a cena do Presépio, mas dotada de um conteúdo simbólico profundo. Uma boa forma de compreender essa obra-prima do cinema é explorar o espírito católico do diretor, analisando o modo sutil com que os elementos centrais do Evangelho atuam, explícita ou implicitamente, como pano de fundo do enredo: a oração, a pureza das crianças, a vocação de serviço, a conversão, os sacramentos do Batismo e do Matrimônio, as virtudes teologais da fé, esperança e caridade, a comunhão dos santos e a mediação dos anjos e da Virgem Maria2.

Toca-me especialmente no filme de Capra a presença de São José, que aparece ao lado de Deus. Mas Maria está na Terra, ao lado de George: é a sua esposa Mary. Foi ela quem o ajudou, quem convocou os amigos sabendo da necessidade do seu amado.

Será que realizamos as nossas responsabilidades cotidianas com a consciência e alegria de que essas atividades são maravilhosas? A verdadeira conversão de George é a de entender que a sua realidade cotidiana é maravilhosa.

Com a Encarnação do Verbo de Deus, as nossas realidades cotidianas se divinizaram, tornaram-se sublimes. Não existe nada na Terra que, feito por amor, não nos aproxime do Céu. Mary passa o filme todo tentando mostrar a George que a casa deles também pode ser um Céu, uma antecipação da alegria perfeita.

Mesmo conhecendo os sonhos de George, Mary sabia que poderia fazê-lo feliz naquela realidade em que estavam instalados. Mary entendeu que a felicidade acontece na vivência de um grande amor, de algo magnífico e transcendente encarnado numa vida comum. Vendo uma casa antiga e descuidada, Mary enxerga a potência daquele lugar: ele poderia ser transformado, pelas mãos da mulher, em um lar.

A mulher transforma a realidade com o seu toque de beleza. Ela tem um verdadeiro ministério da beleza. No filme, Mary consegue mesmo transformar a casa antiga em um lar.

Renascido em Cristo, disposto a superar todas as dificuldades pelo amor, George recobra a fé em Deus e a esperança na Providência divina. O desfecho é uma alegre celebração natalina do amor, da amizade, da família e da comunidade, com todos cantando uníssonos Adeste, Fidelis (Vinde, adoremos), numa imagem da comunhão dos santos, congregados pelo amor a Deus e ao próximo, contribuindo para quitar a dívida de George3.

A bondade do homem que faz todas as coisas por amor, e que descobre a alegria sobrenatural por trás dessa realização, é uma felicidade que não se compra.

Referências

  1. PINHEIRO, Victor Sales. “A maravilha da vida”. A Crise da Cultura e a Ordem do Amor: Ensaios Filosóficos. São Paulo: É Realizações, 2021, p. 287.[]
  2. PINHEIRO, Victor Sales. “A maravilha da vida”. Ibid., p. 286.[]
  3. PINHEIRO, Victor Sales. “A maravilha da vida”. Ibid., p. 288.[]

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