Formação

Por que precisamos da Tradição e do Magistério para entender a Bíblia?

Por que Tradição e Magistério são essenciais para interpretar a Bíblia? Descubra como a Igreja garante a fidelidade à Palavra de Deus.

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Por que precisamos da Tradição e do Magistério para entender a Bíblia?

Por que Tradição e Magistério são essenciais para interpretar a Bíblia? Descubra como a Igreja garante a fidelidade à Palavra de Deus.

Data da Publicação: 21/07/2025
Tempo de leitura:
Autor: Redação MBC
Data da Publicação: 21/07/2025
Tempo de leitura:
Autor: Redação MBC

A Bíblia é a Palavra de Deus escrita, inspirada pelo Espírito Santo, e constitui o fundamento da fé cristã. No entanto, a própria Sagrada Escritura nos ensina que ela não é um livro isolado, destinado à interpretação privada ou subjetiva. Ela nasceu no seio da comunidade de fé e foi confiada à Igreja, que, guiada pelo Espírito, a reconheceu, preservou e transmite até hoje. Por isso, a Igreja ensina que a Bíblia deve ser lida à luz da Tradição viva e sob a autoridade do Magistério — realidade que, longe de diminuir o valor da Escritura, garante sua correta compreensão e aplicação na vida do cristão.

Neste artigo, vamos compreender por que a Tradição e o Magistério são inseparáveis da Sagrada Escritura. Veremos que a Revelação divina não é um livro, mas uma Pessoa viva: Jesus Cristo, a Palavra encarnada, que continua a falar à sua Igreja. Ao longo dos séculos, a Tradição apostólica e o Magistério autêntico asseguraram a fidelidade à mensagem salvífica, protegendo os fiéis contra erros e interpretações individuais. Convidamos você a percorrer conosco essa reflexão, apoiada no Catecismo, em documentos da Igreja e na sabedoria dos Padres e doutores, para redescobrir o tesouro da fé católica em sua totalidade.

A interpretação da Bíblia como missão e responsabilidade da Igreja

A Bíblia não é apenas um livro antigo ou uma coletânea de textos sagrados: ela é o testemunho vivo da Revelação de Deus ao seu povo. Contudo, para ser compreendida corretamente, precisa ser lida dentro da fé da Igreja, que é sua legítima intérprete. Desde os tempos apostólicos, a transmissão da Palavra de Deus se deu de forma integrada: pela pregação oral, pelos escritos inspirados e pela vida da comunidade cristã. Por isso, a tarefa de interpretar autenticamente a Escritura não pertence a cada indivíduo isoladamente, mas à Igreja, que, como afirma a Dei Verbum, é “a guardiã e intérprete da Palavra de Deus” 1.

A responsabilidade da Igreja em interpretar a Escritura está ligada à missão que recebeu de Cristo: ensinar todas as nações 2. Ao longo dos séculos, o Magistério — isto é, o ensino dos bispos em comunhão com o Papa — foi chamado a esclarecer, proteger e anunciar a Palavra divina. Essa missão não é uma prerrogativa humana, mas uma assistência contínua do Espírito Santo. Como explicou o Papa Bento XVI à Pontifícia Comissão Bíblica, “a interpretação da Sagrada Escritura é de importância capital para a fé cristã e para a vida da Igreja”, pois, sem essa mediação viva, o texto sagrado corre o risco de se tornar “letra morta do passado” 3.

Além disso, a Igreja, animada pelo Espírito Santo, reconheceu quais escritos são verdadeiramente inspirados e os reuniu no cânon das Escrituras. Foi a mesma Tradição viva que, discernindo entre inúmeros textos, fixou os livros que compõem a Bíblia e, desde então, não cessou de meditá-los, vivê-los e transmiti-los fielmente. A interpretação autêntica das Escrituras, portanto, está inseparavelmente ligada à vida da Igreja. Como lembrou o Papa Francisco, “a Palavra de Deus precede e excede a Bíblia”, e só pode ser compreendida em sua totalidade “em linha com a grande Tradição, sob a guia do Magistério” 4.

“Não confiaria no Evangelho, se não fosse movido pela autoridade da Igreja Católica.”

(Santo Agostinho, Contra a Carta dos Maniqueus, 4,5)

A Tradição como contexto necessário da Palavra

A Bíblia não surgiu isoladamente. Ela nasceu e foi reconhecida no seio da Tradição da Igreja, que, desde os Apóstolos, transmite fielmente a Revelação de Deus. A Palavra escrita é inseparável da Palavra vivida e pregada pela comunidade eclesial.

O que a Igreja entende como Tradição?

A Tradição, com “T” maiúsculo, não é um conjunto de costumes antigos. Ela é a transmissão viva da fé, iniciada pelos Apóstolos, sob a ação do Espírito Santo. Conforme ensina o Catecismo, “a Tradição transmite integralmente a Palavra de Deus, confiada aos Apóstolos por Cristo e pelo Espírito Santo” 5.

Essa transmissão acontece por meio da pregação, dos sacramentos, da vida da Igreja e da sucessão apostólica. É na Tradição que a Escritura foi acolhida, interpretada e canonizada. Portanto, Bíblia e Tradição não são concorrentes, mas complementares.

A Escritura nasceu no seio da Tradição

A Dei Verbum afirma claramente: “A Sagrada Escritura é o discurso de Deus, consignado por escrito sob a inspiração do Espírito Santo. A Tradição transmite na sua integridade a Palavra de Deus” (DV 9). Isso significa que a Bíblia é parte da Tradição viva da Igreja, e não algo exterior a ela.

Como explica a Comissão Teológica Internacional, “a Escritura pertence à Tradição viva da Igreja como o testemunho canônico da fé para todos os tempos” 6. A Tradição não apenas precede a Bíblia, mas continua a sustentá-la e vivificá-la.

A Tradição sustenta a interpretação autêntica

O Papa Francisco enfatiza essa realidade: “Devemos colocar-nos na linha da grande Tradição que, sob a guia do Espírito Santo e do Magistério, reconheceu os escritos canônicos como palavra que Deus dirigiu ao seu povo” 4.

Sem a Tradição, a leitura da Bíblia corre o risco de ser fragmentada e subjetiva. É ela que garante a fidelidade à intenção divina e à fé recebida desde os Apóstolos. Por isso, a interpretação da Escritura deve sempre estar em continuidade com o ensinamento vivo da Igreja.

O Magistério como intérprete autêntico da Palavra

A Palavra de Deus, para ser corretamente compreendida, exige não apenas fé, mas também um princípio de unidade e autoridade. É por isso que o Magistério da Igreja ocupa um lugar central na interpretação da Sagrada Escritura. Sua função não é inventar doutrinas, mas preservar com fidelidade o ensinamento recebido de Cristo.

O que a Igreja entende como Magistério?

O Magistério é o serviço de ensino exercido pelos bispos em comunhão com o Papa. Sua autoridade deriva de Cristo e está a serviço da Palavra de Deus. Segundo a Dei Verbum, “o encargo de interpretar autenticamente a Palavra de Deus, escrita ou transmitida, foi confiado unicamente ao Magistério vivo da Igreja, cuja autoridade é exercida em nome de Jesus Cristo” 7.

Não se trata de uma função meramente acadêmica, mas de uma missão eclesial com assistência do Espírito Santo. É por meio do Magistério que os fiéis têm acesso seguro à verdade revelada, sem cair em interpretações contraditórias ou subjetivas.

“Não se deve crer que um homem possa compreender as Sagradas Escrituras sem ter ouvido com atenção aqueles que têm o ofício de as interpretar na Igreja.”

(Santo Agostinho, De doctrina Christiana)

Assistência do Espírito Santo

O Magistério não age sozinho: ele é sustentado pela ação contínua do Espírito Santo. Esse auxílio divino garante que a interpretação da Palavra se mantenha fiel à Revelação. Como afirma o Concílio, “o Magistério, assistido pelo Espírito Santo, preserva, expõe e difunde fielmente a Palavra de Deus” 7.

Bento XVI também advertiu que “sem esta orientação, as Escrituras permaneceriam como letra morta do passado” 8. A Palavra viva precisa de uma interpretação viva, em comunhão com toda a Igreja.

Três critérios de interpretação

O Concílio Vaticano II, consciente da complexidade da interpretação bíblica, propôs três critérios fundamentais para uma leitura católica da Sagrada Escritura 9:

  • Atenção ao conteúdo e à unidade de toda a Escritura: A Bíblia é um todo coerente, cujo centro é Jesus Cristo. Cada parte deve ser lida em harmonia com o conjunto.
  • Leitura no contexto da Tradição viva da Igreja: A Palavra foi confiada à comunidade eclesial. Interpretá-la fora dessa vida comum é separá-la de sua fonte vital.
  • Respeito à analogia da fé: Toda verdade revelada está em harmonia com o conjunto da fé. Nenhuma interpretação pode contradizer as verdades já reconhecidas pela Igreja.

Esses critérios garantem que a leitura das Escrituras permaneça fiel à intenção divina e protejam os fiéis contra desvios doutrinários.

Por que a Igreja Católica rejeita o conceito protestante de Sola Scriptura?

A doutrina protestante de Sola Scriptura, segundo a qual a Bíblia seria a única fonte e norma da fé cristã, é rejeitada pela Igreja Católica por ser incompatível com a própria origem, natureza e prática da fé cristã desde os tempos apostólicos. Embora reconheça a Sagrada Escritura como a norma suprema da verdade, a Igreja afirma que esta nunca existiu separada da Tradição viva e do Magistério, que juntos formam o tripé da Revelação Divina. O apologista católico americano Dave Armstrong observa com precisão: “Nenhuma passagem bíblica ensina que [a Escritura] seja a autoridade formal isolada da Igreja e da Tradição” 10.

A Palavra de Deus inclui a Tradição oral

Na Bíblia, a expressão “Palavra de Deus” nem sempre se refere ao texto escrito. Frequentemente, ela designa a pregação viva dos profetas e apóstolos. São Paulo é explícito ao afirmar: “Irmãos, permanecei firmes e guardai as tradições que aprendestes, seja por palavra, seja por carta nossa” 11. A autoridade da pregação oral era reconhecida como vinculante, mesmo antes de ser registrada por escrito.

Jesus e os apóstolos acolheram tradições extra-bíblicas

Tanto Jesus quanto os apóstolos se referiram a ensinamentos e práticas que não constam diretamente das Escrituras do Antigo Testamento. Em Mateus 23, Jesus afirma que os fariseus “se assentaram na cátedra de Moisés” 12, uma imagem ausente nos textos bíblicos, mas presente na tradição oral judaica. São Paulo menciona figuras como Janes e Jambres 13, nomes que não aparecem no relato do Êxodo, mas são conhecidos por tradições rabínicas.

O Magistério apostólico precede o Novo Testamento

Antes mesmo da redação do Novo Testamento, a Igreja já exercia autoridade doutrinal. O Concílio de Jerusalém (At 15) é um marco dessa realidade. Os apóstolos, em comunhão com o Espírito Santo, definiram diretrizes obrigatórias para todos os cristãos. Pouco depois, “Paulo, Silas e Timóteo transmitiam às comunidades as decisões tomadas pelos Apóstolos e presbíteros em Jerusalém, para que as observassem” 14. Isso mostra que a autoridade magisterial da Igreja já estava em ação, independente de um cânon escrito.

A própria Escritura exige intérpretes autorizados

A Bíblia, por sua natureza, requer mediação e interpretação. Em Neemias 8,13, os levitas são responsáveis por explicar o sentido da Lei ao povo, pois nem todos podiam compreendê-la diretamente. O Novo Testamento reafirma essa necessidade: o eunuco etíope só entende a profecia de Isaías com a ajuda de Filipe 15. Como resume Dave Armstrong: “A Bíblia não é suficiente em si mesma, mas exige o auxílio de mestres”.

Nesse sentido, a advertência de Santo Agostinho é iluminadora: “Eu não creria no Evangelho se a isso não me levasse a autoridade da Igreja Católica” 16. Para ele, é a Igreja — e não apenas o texto bíblico — que oferece o critério seguro de autenticidade e verdade.

A falência prática do Sola Scriptura

O princípio protestante do Sola Scriptura leva, na prática, à fragmentação doutrinal. Cada denominação interpreta a “clara mensagem da Bíblia” à sua maneira, sem um critério comum para resolver os desacordos. Isso resulta num relativismo teológico incompatível com a unidade da fé. Armstrong observa que Sola Scriptura é um sistema logicamente circular, pois apela à autoridade da Bíblia interpretada subjetivamente, sem um árbitro final.

“Quem ama demais sua própria interpretação se escandaliza mais com a Escritura do que consigo mesmo.”

(Santo Agostinho, De doctrina Christiana)

A verdadeira estrutura da Revelação: Escritura, Tradição e Magistério em harmonia

A Revelação divina se sustenta sobre três fundamentos inseparáveis: a Sagrada Escritura, a Tradição viva da Igreja e o Magistério. Essa tríade não representa instâncias paralelas, mas expressões complementares da única Palavra de Deus confiada à Igreja. Quando isoladas, essas dimensões perdem sua força interpretativa e podem conduzir a distorções da fé. Unidas, porém, formam a base sólida sobre a qual a fé cristã é transmitida de geração em geração.

Bento XVI, na exortação Verbum Domini, ensina que “a Igreja vive na certeza de que seu Senhor continua a comunicar sua Palavra na Tradição viva e na Escritura” 17. A Bíblia é, sim, a Palavra de Deus escrita, mas “só na unidade da Tradição viva pode ser plenamente compreendida” 17. Essa unidade não é apenas funcional, mas teológica: a Tradição é o ambiente vital em que a Escritura foi gerada, acolhida e sempre lida.

O Magistério, por sua vez, atua como o serviço autorizado de interpretação que, assistido pelo Espírito Santo, protege o depósito da fé. Como recorda o Papa Francisco, a Palavra de Deus “não é um mero texto, mas o Cristo vivo que fala ao seu povo na Igreja”. Assim, a comunhão entre Escritura, Tradição e Magistério garante que a Revelação não se torne letra morta, mas permaneça viva, eficaz e salvadora.

A Doutrina Cristã de Santo Agostinho: ler a Bíblia com a Igreja

No século IV, Santo Agostinho escreveu De Doctrina Christiana (A Doutrina Cristã), uma das primeiras obras a oferecer um método teológico para a interpretação da Sagrada Escritura. O santo bispo de Hipona via na Bíblia um dom divino que exigia, para sua correta compreensão, não apenas erudição, mas sobretudo caridade e comunhão com a fé da Igreja.

Agostinho ensinava que a interpretação das Escrituras deve conduzir à caridade: “Quem pensa ter entendido as Escrituras, ou alguma parte delas, mas não constrói com essa leitura a dupla caridade de Deus e do próximo, ainda não entendeu” 18. Isso mostra que, para ele, não basta extrair significados do texto sagrado; é necessário ler com o mesmo espírito com que foi escrito: o Espírito Santo que age na Igreja.

Além disso, Agostinho alertava contra a leitura isolada e subjetiva da Bíblia. Reconhecia a necessidade de recorrer à Tradição, à autoridade dos pastores e ao sensus fidelium para evitar erros e distorções. Sua obra permanece como testemunho da convicção patrística de que a Escritura, para ser luz, precisa ser lida com a “regra da fé” viva da Igreja.

A Doutrina Cristã é uma leitura recomendada para todos os que desejam compreender os fundamentos católicos da exegese bíblica. Trata-se de um verdadeiro manual de sabedoria patrística, que continua atual na missão de formar leitores fiéis da Palavra de Deus em comunhão com a Igreja.

Referências

  1. cf. DV 10[]
  2. cf. Mt 28,19-20[]
  3. Discurso de 23 abr. 2009[]
  4. Discurso à Comissão Bíblica, 12 abr. 2013[][]
  5. CIC, 81[]
  6. Theology Today, 2011, n. 30[]
  7. DV 10[][]
  8. Discurso à Comissão Bíblica, 2009[]
  9. cf. DV 12[]
  10. Sola Scriptura Is Not Taught in the Bible[]
  11. 2Ts 2,15[]
  12. Mt 23,2[]
  13. 2Tm 3,8[]
  14. At 16,4[]
  15. cf. At 8,30-31[]
  16. Contra a carta de Maniqueu, 5,6[]
  17. VD 18[][]
  18. Doutrina Cristã, I, 36, 40[]
Redação MBC

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O maior clube de leitores católicos do Brasil.

A Bíblia é a Palavra de Deus escrita, inspirada pelo Espírito Santo, e constitui o fundamento da fé cristã. No entanto, a própria Sagrada Escritura nos ensina que ela não é um livro isolado, destinado à interpretação privada ou subjetiva. Ela nasceu no seio da comunidade de fé e foi confiada à Igreja, que, guiada pelo Espírito, a reconheceu, preservou e transmite até hoje. Por isso, a Igreja ensina que a Bíblia deve ser lida à luz da Tradição viva e sob a autoridade do Magistério — realidade que, longe de diminuir o valor da Escritura, garante sua correta compreensão e aplicação na vida do cristão.

Neste artigo, vamos compreender por que a Tradição e o Magistério são inseparáveis da Sagrada Escritura. Veremos que a Revelação divina não é um livro, mas uma Pessoa viva: Jesus Cristo, a Palavra encarnada, que continua a falar à sua Igreja. Ao longo dos séculos, a Tradição apostólica e o Magistério autêntico asseguraram a fidelidade à mensagem salvífica, protegendo os fiéis contra erros e interpretações individuais. Convidamos você a percorrer conosco essa reflexão, apoiada no Catecismo, em documentos da Igreja e na sabedoria dos Padres e doutores, para redescobrir o tesouro da fé católica em sua totalidade.

A interpretação da Bíblia como missão e responsabilidade da Igreja

A Bíblia não é apenas um livro antigo ou uma coletânea de textos sagrados: ela é o testemunho vivo da Revelação de Deus ao seu povo. Contudo, para ser compreendida corretamente, precisa ser lida dentro da fé da Igreja, que é sua legítima intérprete. Desde os tempos apostólicos, a transmissão da Palavra de Deus se deu de forma integrada: pela pregação oral, pelos escritos inspirados e pela vida da comunidade cristã. Por isso, a tarefa de interpretar autenticamente a Escritura não pertence a cada indivíduo isoladamente, mas à Igreja, que, como afirma a Dei Verbum, é “a guardiã e intérprete da Palavra de Deus” 1.

A responsabilidade da Igreja em interpretar a Escritura está ligada à missão que recebeu de Cristo: ensinar todas as nações 2. Ao longo dos séculos, o Magistério — isto é, o ensino dos bispos em comunhão com o Papa — foi chamado a esclarecer, proteger e anunciar a Palavra divina. Essa missão não é uma prerrogativa humana, mas uma assistência contínua do Espírito Santo. Como explicou o Papa Bento XVI à Pontifícia Comissão Bíblica, “a interpretação da Sagrada Escritura é de importância capital para a fé cristã e para a vida da Igreja”, pois, sem essa mediação viva, o texto sagrado corre o risco de se tornar “letra morta do passado” 3.

Além disso, a Igreja, animada pelo Espírito Santo, reconheceu quais escritos são verdadeiramente inspirados e os reuniu no cânon das Escrituras. Foi a mesma Tradição viva que, discernindo entre inúmeros textos, fixou os livros que compõem a Bíblia e, desde então, não cessou de meditá-los, vivê-los e transmiti-los fielmente. A interpretação autêntica das Escrituras, portanto, está inseparavelmente ligada à vida da Igreja. Como lembrou o Papa Francisco, “a Palavra de Deus precede e excede a Bíblia”, e só pode ser compreendida em sua totalidade “em linha com a grande Tradição, sob a guia do Magistério” 4.

“Não confiaria no Evangelho, se não fosse movido pela autoridade da Igreja Católica.”

(Santo Agostinho, Contra a Carta dos Maniqueus, 4,5)

A Tradição como contexto necessário da Palavra

A Bíblia não surgiu isoladamente. Ela nasceu e foi reconhecida no seio da Tradição da Igreja, que, desde os Apóstolos, transmite fielmente a Revelação de Deus. A Palavra escrita é inseparável da Palavra vivida e pregada pela comunidade eclesial.

O que a Igreja entende como Tradição?

A Tradição, com “T” maiúsculo, não é um conjunto de costumes antigos. Ela é a transmissão viva da fé, iniciada pelos Apóstolos, sob a ação do Espírito Santo. Conforme ensina o Catecismo, “a Tradição transmite integralmente a Palavra de Deus, confiada aos Apóstolos por Cristo e pelo Espírito Santo” 5.

Essa transmissão acontece por meio da pregação, dos sacramentos, da vida da Igreja e da sucessão apostólica. É na Tradição que a Escritura foi acolhida, interpretada e canonizada. Portanto, Bíblia e Tradição não são concorrentes, mas complementares.

A Escritura nasceu no seio da Tradição

A Dei Verbum afirma claramente: “A Sagrada Escritura é o discurso de Deus, consignado por escrito sob a inspiração do Espírito Santo. A Tradição transmite na sua integridade a Palavra de Deus” (DV 9). Isso significa que a Bíblia é parte da Tradição viva da Igreja, e não algo exterior a ela.

Como explica a Comissão Teológica Internacional, “a Escritura pertence à Tradição viva da Igreja como o testemunho canônico da fé para todos os tempos” 6. A Tradição não apenas precede a Bíblia, mas continua a sustentá-la e vivificá-la.

A Tradição sustenta a interpretação autêntica

O Papa Francisco enfatiza essa realidade: “Devemos colocar-nos na linha da grande Tradição que, sob a guia do Espírito Santo e do Magistério, reconheceu os escritos canônicos como palavra que Deus dirigiu ao seu povo” 4.

Sem a Tradição, a leitura da Bíblia corre o risco de ser fragmentada e subjetiva. É ela que garante a fidelidade à intenção divina e à fé recebida desde os Apóstolos. Por isso, a interpretação da Escritura deve sempre estar em continuidade com o ensinamento vivo da Igreja.

O Magistério como intérprete autêntico da Palavra

A Palavra de Deus, para ser corretamente compreendida, exige não apenas fé, mas também um princípio de unidade e autoridade. É por isso que o Magistério da Igreja ocupa um lugar central na interpretação da Sagrada Escritura. Sua função não é inventar doutrinas, mas preservar com fidelidade o ensinamento recebido de Cristo.

O que a Igreja entende como Magistério?

O Magistério é o serviço de ensino exercido pelos bispos em comunhão com o Papa. Sua autoridade deriva de Cristo e está a serviço da Palavra de Deus. Segundo a Dei Verbum, “o encargo de interpretar autenticamente a Palavra de Deus, escrita ou transmitida, foi confiado unicamente ao Magistério vivo da Igreja, cuja autoridade é exercida em nome de Jesus Cristo” 7.

Não se trata de uma função meramente acadêmica, mas de uma missão eclesial com assistência do Espírito Santo. É por meio do Magistério que os fiéis têm acesso seguro à verdade revelada, sem cair em interpretações contraditórias ou subjetivas.

“Não se deve crer que um homem possa compreender as Sagradas Escrituras sem ter ouvido com atenção aqueles que têm o ofício de as interpretar na Igreja.”

(Santo Agostinho, De doctrina Christiana)

Assistência do Espírito Santo

O Magistério não age sozinho: ele é sustentado pela ação contínua do Espírito Santo. Esse auxílio divino garante que a interpretação da Palavra se mantenha fiel à Revelação. Como afirma o Concílio, “o Magistério, assistido pelo Espírito Santo, preserva, expõe e difunde fielmente a Palavra de Deus” 7.

Bento XVI também advertiu que “sem esta orientação, as Escrituras permaneceriam como letra morta do passado” 8. A Palavra viva precisa de uma interpretação viva, em comunhão com toda a Igreja.

Três critérios de interpretação

O Concílio Vaticano II, consciente da complexidade da interpretação bíblica, propôs três critérios fundamentais para uma leitura católica da Sagrada Escritura 9:

  • Atenção ao conteúdo e à unidade de toda a Escritura: A Bíblia é um todo coerente, cujo centro é Jesus Cristo. Cada parte deve ser lida em harmonia com o conjunto.
  • Leitura no contexto da Tradição viva da Igreja: A Palavra foi confiada à comunidade eclesial. Interpretá-la fora dessa vida comum é separá-la de sua fonte vital.
  • Respeito à analogia da fé: Toda verdade revelada está em harmonia com o conjunto da fé. Nenhuma interpretação pode contradizer as verdades já reconhecidas pela Igreja.

Esses critérios garantem que a leitura das Escrituras permaneça fiel à intenção divina e protejam os fiéis contra desvios doutrinários.

Por que a Igreja Católica rejeita o conceito protestante de Sola Scriptura?

A doutrina protestante de Sola Scriptura, segundo a qual a Bíblia seria a única fonte e norma da fé cristã, é rejeitada pela Igreja Católica por ser incompatível com a própria origem, natureza e prática da fé cristã desde os tempos apostólicos. Embora reconheça a Sagrada Escritura como a norma suprema da verdade, a Igreja afirma que esta nunca existiu separada da Tradição viva e do Magistério, que juntos formam o tripé da Revelação Divina. O apologista católico americano Dave Armstrong observa com precisão: “Nenhuma passagem bíblica ensina que [a Escritura] seja a autoridade formal isolada da Igreja e da Tradição” 10.

A Palavra de Deus inclui a Tradição oral

Na Bíblia, a expressão “Palavra de Deus” nem sempre se refere ao texto escrito. Frequentemente, ela designa a pregação viva dos profetas e apóstolos. São Paulo é explícito ao afirmar: “Irmãos, permanecei firmes e guardai as tradições que aprendestes, seja por palavra, seja por carta nossa” 11. A autoridade da pregação oral era reconhecida como vinculante, mesmo antes de ser registrada por escrito.

Jesus e os apóstolos acolheram tradições extra-bíblicas

Tanto Jesus quanto os apóstolos se referiram a ensinamentos e práticas que não constam diretamente das Escrituras do Antigo Testamento. Em Mateus 23, Jesus afirma que os fariseus “se assentaram na cátedra de Moisés” 12, uma imagem ausente nos textos bíblicos, mas presente na tradição oral judaica. São Paulo menciona figuras como Janes e Jambres 13, nomes que não aparecem no relato do Êxodo, mas são conhecidos por tradições rabínicas.

O Magistério apostólico precede o Novo Testamento

Antes mesmo da redação do Novo Testamento, a Igreja já exercia autoridade doutrinal. O Concílio de Jerusalém (At 15) é um marco dessa realidade. Os apóstolos, em comunhão com o Espírito Santo, definiram diretrizes obrigatórias para todos os cristãos. Pouco depois, “Paulo, Silas e Timóteo transmitiam às comunidades as decisões tomadas pelos Apóstolos e presbíteros em Jerusalém, para que as observassem” 14. Isso mostra que a autoridade magisterial da Igreja já estava em ação, independente de um cânon escrito.

A própria Escritura exige intérpretes autorizados

A Bíblia, por sua natureza, requer mediação e interpretação. Em Neemias 8,13, os levitas são responsáveis por explicar o sentido da Lei ao povo, pois nem todos podiam compreendê-la diretamente. O Novo Testamento reafirma essa necessidade: o eunuco etíope só entende a profecia de Isaías com a ajuda de Filipe 15. Como resume Dave Armstrong: “A Bíblia não é suficiente em si mesma, mas exige o auxílio de mestres”.

Nesse sentido, a advertência de Santo Agostinho é iluminadora: “Eu não creria no Evangelho se a isso não me levasse a autoridade da Igreja Católica” 16. Para ele, é a Igreja — e não apenas o texto bíblico — que oferece o critério seguro de autenticidade e verdade.

A falência prática do Sola Scriptura

O princípio protestante do Sola Scriptura leva, na prática, à fragmentação doutrinal. Cada denominação interpreta a “clara mensagem da Bíblia” à sua maneira, sem um critério comum para resolver os desacordos. Isso resulta num relativismo teológico incompatível com a unidade da fé. Armstrong observa que Sola Scriptura é um sistema logicamente circular, pois apela à autoridade da Bíblia interpretada subjetivamente, sem um árbitro final.

“Quem ama demais sua própria interpretação se escandaliza mais com a Escritura do que consigo mesmo.”

(Santo Agostinho, De doctrina Christiana)

A verdadeira estrutura da Revelação: Escritura, Tradição e Magistério em harmonia

A Revelação divina se sustenta sobre três fundamentos inseparáveis: a Sagrada Escritura, a Tradição viva da Igreja e o Magistério. Essa tríade não representa instâncias paralelas, mas expressões complementares da única Palavra de Deus confiada à Igreja. Quando isoladas, essas dimensões perdem sua força interpretativa e podem conduzir a distorções da fé. Unidas, porém, formam a base sólida sobre a qual a fé cristã é transmitida de geração em geração.

Bento XVI, na exortação Verbum Domini, ensina que “a Igreja vive na certeza de que seu Senhor continua a comunicar sua Palavra na Tradição viva e na Escritura” 17. A Bíblia é, sim, a Palavra de Deus escrita, mas “só na unidade da Tradição viva pode ser plenamente compreendida” 17. Essa unidade não é apenas funcional, mas teológica: a Tradição é o ambiente vital em que a Escritura foi gerada, acolhida e sempre lida.

O Magistério, por sua vez, atua como o serviço autorizado de interpretação que, assistido pelo Espírito Santo, protege o depósito da fé. Como recorda o Papa Francisco, a Palavra de Deus “não é um mero texto, mas o Cristo vivo que fala ao seu povo na Igreja”. Assim, a comunhão entre Escritura, Tradição e Magistério garante que a Revelação não se torne letra morta, mas permaneça viva, eficaz e salvadora.

A Doutrina Cristã de Santo Agostinho: ler a Bíblia com a Igreja

No século IV, Santo Agostinho escreveu De Doctrina Christiana (A Doutrina Cristã), uma das primeiras obras a oferecer um método teológico para a interpretação da Sagrada Escritura. O santo bispo de Hipona via na Bíblia um dom divino que exigia, para sua correta compreensão, não apenas erudição, mas sobretudo caridade e comunhão com a fé da Igreja.

Agostinho ensinava que a interpretação das Escrituras deve conduzir à caridade: “Quem pensa ter entendido as Escrituras, ou alguma parte delas, mas não constrói com essa leitura a dupla caridade de Deus e do próximo, ainda não entendeu” 18. Isso mostra que, para ele, não basta extrair significados do texto sagrado; é necessário ler com o mesmo espírito com que foi escrito: o Espírito Santo que age na Igreja.

Além disso, Agostinho alertava contra a leitura isolada e subjetiva da Bíblia. Reconhecia a necessidade de recorrer à Tradição, à autoridade dos pastores e ao sensus fidelium para evitar erros e distorções. Sua obra permanece como testemunho da convicção patrística de que a Escritura, para ser luz, precisa ser lida com a “regra da fé” viva da Igreja.

A Doutrina Cristã é uma leitura recomendada para todos os que desejam compreender os fundamentos católicos da exegese bíblica. Trata-se de um verdadeiro manual de sabedoria patrística, que continua atual na missão de formar leitores fiéis da Palavra de Deus em comunhão com a Igreja.

Referências

  1. cf. DV 10[]
  2. cf. Mt 28,19-20[]
  3. Discurso de 23 abr. 2009[]
  4. Discurso à Comissão Bíblica, 12 abr. 2013[][]
  5. CIC, 81[]
  6. Theology Today, 2011, n. 30[]
  7. DV 10[][]
  8. Discurso à Comissão Bíblica, 2009[]
  9. cf. DV 12[]
  10. Sola Scriptura Is Not Taught in the Bible[]
  11. 2Ts 2,15[]
  12. Mt 23,2[]
  13. 2Tm 3,8[]
  14. At 16,4[]
  15. cf. At 8,30-31[]
  16. Contra a carta de Maniqueu, 5,6[]
  17. VD 18[][]
  18. Doutrina Cristã, I, 36, 40[]

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