Sharenting: como a exposição excessiva de crianças nas redes sociais pelos próprios pais ameaça sua privacidade, saúde emocional e dignidade.
Sharenting: como a exposição excessiva de crianças nas redes sociais pelos próprios pais ameaça sua privacidade, saúde emocional e dignidade.
As crianças atuais compõem “a geração mais observada em toda a história“, nas palavras de Benjamin Schmueli e Ayelet Blecher-Prigat em um importante artigo acadêmico sobre privacidade infantil. 1 Com a expansão das redes sociais, um fenômeno particular começou a se tornar popular e mais democrático. Centenas de pais começaram a compartilhar o dia a dia de seus filhos em suas redes sociais. É uma prática atualmente denominada de sharenting. A expressão, que consiste na junção das palavras share (compartilhar) e parenting (parentalidade), define o hábito de compartilhar na internet vídeos e fotos do dia a dia dos filhos. 2
De acordo com o site Nexo, um simples clique na hashtag #meubebe no Instagram contém mais de 520 mil fotos e vídeos de crianças nas mais diversas situações: na praia, no banheiro, dormindo, comendo, fazendo gracinha ou algo embaraçoso, no banho, no carrinho etc. 3 Geralmente são fotos inocentes postadas por pais que querem dividir os momentos da vida de seus filhos.
Stacey Steinberg foi uma das primeiras acadêmicas a pesquisar esse fenômeno. A priori ela identificava o sharenting como algo intrinsecamente ruim.4 Com o desenrolar das pesquisas o conceito evoluiu para oversharenting, que é o compartilhamento exagerado da vida das crianças na internet.
Esse não é um fenômeno inédito, tendo início anos atrás com as estrelas mirins em Hollywood. Um dos casos emblemáticos é o do ator Jackie Coogan, que interpretou o garoto no filme The Kid (1921), dirigido por Charlie Chaplin. Além de astro de cinema, o menino se tornou uma estrela da publicidade após ser explorado por pelo menos uma década pelos pais. Ao atingir a maturidade, abriu um processo judicial contra os familiares em decorrência de toda a exploração da sua imagem, na época amplamente comercializada.
A série documental O Lado Sombrio de Hollywood revela histórias reais e impactantes de atores mirins que enfrentaram traumas, exploração e sobrecarga emocional nos bastidores da indústria do entretenimento. Uma outra série documental chamada Bad Influence: The Abuses of Kidfluencing explora o abuso e a exploração no mundo dos influenciadores infantis – nesse caso, por sua própria mãe. Outro documentário recente chamado Felicidade Aparente: os segredos da família Duggar também expõe o drama de crianças que cresceram superexpostos pelos seus pais – que genuinamente acreditavam que faziam aquilo para um bem maior. Eles possuíam motivações religiosas, além de financeiras.
Se antes a exposição de crianças ficava restrita ao âmbito da grande mídia, precisando elas estarem diretamente inseridas no entretenimento televisivo ou serem filhas de alguém famoso, atualmente qualquer criança pode se tornar alvo e refém da prática do sharentig, sendo ela famosa ou não. Ou até mesmo se tornar famosa por causa disso – o que é mais um dos pontos desse problema.
Em 2024 a Justiça italiana concedeu ordem de urgência para impedir que a influenciadora digital Alice Pasti publicasse fotos e vídeos de sua filha Sole, de quase 4 anos, nas redes sociais. A queixa foi motivada pelo pai, que destacou que pessoas salvavam os vídeos de TikTok da menina e que ela era reconhecida por estranhos em locais públicos. Além disso, alegou que algumas postagens eram “não espontâneas e adultizadas”. 5
Segundo Fabiani Borges, advogada especialista em proteção de dados, “Existem cada vez mais adolescentes e jovens adultos do mundo digital que se queixam do rastro digital que os pais deixaram. Isso é inapagável. Entram questões da privacidade dessas crianças e dos adolescentes que muitas vezes não têm como se expressar, pois o pai e a mãe decidem a vida dos filhos. Isso tem consequências jurídicas muito grandes.”
Na última década, muitas crianças se tornaram “influencers” com status de celebridade, por meio de estímulo de familiares e o respaldo de patrocinadores. “Essas crianças constroem uma vida falsa, de imagens, e não uma vida de experiências reais. E os pais estão colaborando para a construção de uma personalidade moldada para agradar a imagem que fazem da pessoa, ou seja, de um falso self. A criança começa a passar por essa situação desde pequena. Muitas vezes, por trás desse perfil falso pode existir um grande vazio. A exploração dessas crianças por parte dos pais é uma forma de abuso infantil”, apontou o coordenador do Grupo de Trabalho de Saúde Mental, Dr. Roberto Santoro. 6
Segundo Dr. Santoro, a exploração dos filhos engloba múltiplos aspectos como o interesse econômico e o narcisismo. “Existe o ganho financeiro, que é evidente, o de ganhar dinheiro em cima da exploração dos filhos. Mas existe também uma questão de narcisismo. Isso significa que os pais realizam seus sonhos frustrados de sucesso, de projeção e de fama por meio dos filhos”, frisou. 6)
A acadêmica americana Stacey Steinberg, compartilhou em uma entrevista: “É irônico que tanto de nossa energia seja gasta em como nossos filhos usam as redes sociais e quanto tempo eles passam na internet e raramente focamos em nosso próprio comportamento. Fazemos bem em pensar sobre o tempo de tela das crianças? Certamente é preciso estabelecer limites, mas também faríamos bem em olhar para nós mesmos, sobre o tempo e como nos portamos online e o que compartilhamos.” 7
Quais são os prejuízos associados a essa prática? Em primeiro lugar, permite um registro digital de seus comportamentos, desrespeitando o seu direito à privacidade. Além disso, pode estar associada a uma monetização desse conteúdo, configurando exploração comercial infantil. Esse conteúdo também fica na rede por tempo indeterminado e pode constranger as crianças e até virar motivo de bullying na escola ou virtualmente quando forem mais velhos. Essas imagens, ainda, podem ser usadas em redes de pornografia infantil.8
Submeter as crianças a uma vida sob o olhar das câmeras não só invade a sua privacidade, mas também as incita a construírem a normalidade como exposição e não como o valor de intimidade. Se isso já é difícil para nós adultos que temos – ou deveríamos ter – uma noção formada do limite entre a privacidade e a exposição de si mesmo, imagine para uma criança que ainda está formando sua compreensão. Ela crescerá achando normal se expor e buscar o olhar de aprovação ao ser vista.
Já foi comprovado por pesquisas – além de ser fácil de notar na prática – que as crianças se acostumam com o fato de serem fotografadas e gravadas com constância e começam a perder a espontaneidade, a pedir para serem filmadas, a fazer coisas apenas para serem vistas. Além disso, precisamos nos questionar até que ponto estamos objetificando as nossas crianças explorando a sua imagem.
Quando isso implica uma relação direta da criança com as redes, impacta ainda mais pelo fato de ela se habituar a modular sua autoestima pelos comentários ou críticas que recebe. Sem maturidade psicológica para lidar com isso, e mais, com uma supervalorização do mundo virtual – que costuma ser bem cruel, elas tendem a ficar ansiosas e depressivas. Não são mais raros, infelizmente, os casos de influencers infantis que se suicidaram após uma chuva de críticas.
Por mais que as publicações possam ser motivadas por boas intenções, na maioria dos casos, o movimento de superexposição fere o direito à preservação da imagem de crianças e adolescentes. O melhor remédio contra o oversharenting é, em suma, uma boa dose de consciência e maturidade. Nossos filhos são tesouros e não vitrines. Velar pelo bem deles é uma das nossas maiores responsabilidades.
“Ninguém percebeu que a perda do sentido da vergonha significa a perda da privacidade; e a perda da privacidade significa a perda da intimidade; e que a perda desta última significa a morte da profundidade. Com efeito, não existe maneira mais eficiente de produzir pessoas mais rasas e superficiais do que as deixar viver vidas completamente expostas, sem a ocultação de nada.” (Theodore Dalrymple)
Psicoterapeuta e escritora. Especialista em Saúde Mental, Dependência de Tecnologia e Abuso Espiritual. Autora do livro ‘A corrupção do bem: quando um grupo católico se comporta como uma seita”.
As crianças atuais compõem “a geração mais observada em toda a história“, nas palavras de Benjamin Schmueli e Ayelet Blecher-Prigat em um importante artigo acadêmico sobre privacidade infantil. 1 Com a expansão das redes sociais, um fenômeno particular começou a se tornar popular e mais democrático. Centenas de pais começaram a compartilhar o dia a dia de seus filhos em suas redes sociais. É uma prática atualmente denominada de sharenting. A expressão, que consiste na junção das palavras share (compartilhar) e parenting (parentalidade), define o hábito de compartilhar na internet vídeos e fotos do dia a dia dos filhos. 2
De acordo com o site Nexo, um simples clique na hashtag #meubebe no Instagram contém mais de 520 mil fotos e vídeos de crianças nas mais diversas situações: na praia, no banheiro, dormindo, comendo, fazendo gracinha ou algo embaraçoso, no banho, no carrinho etc. 3 Geralmente são fotos inocentes postadas por pais que querem dividir os momentos da vida de seus filhos.
Stacey Steinberg foi uma das primeiras acadêmicas a pesquisar esse fenômeno. A priori ela identificava o sharenting como algo intrinsecamente ruim.4 Com o desenrolar das pesquisas o conceito evoluiu para oversharenting, que é o compartilhamento exagerado da vida das crianças na internet.
Esse não é um fenômeno inédito, tendo início anos atrás com as estrelas mirins em Hollywood. Um dos casos emblemáticos é o do ator Jackie Coogan, que interpretou o garoto no filme The Kid (1921), dirigido por Charlie Chaplin. Além de astro de cinema, o menino se tornou uma estrela da publicidade após ser explorado por pelo menos uma década pelos pais. Ao atingir a maturidade, abriu um processo judicial contra os familiares em decorrência de toda a exploração da sua imagem, na época amplamente comercializada.
A série documental O Lado Sombrio de Hollywood revela histórias reais e impactantes de atores mirins que enfrentaram traumas, exploração e sobrecarga emocional nos bastidores da indústria do entretenimento. Uma outra série documental chamada Bad Influence: The Abuses of Kidfluencing explora o abuso e a exploração no mundo dos influenciadores infantis – nesse caso, por sua própria mãe. Outro documentário recente chamado Felicidade Aparente: os segredos da família Duggar também expõe o drama de crianças que cresceram superexpostos pelos seus pais – que genuinamente acreditavam que faziam aquilo para um bem maior. Eles possuíam motivações religiosas, além de financeiras.
Se antes a exposição de crianças ficava restrita ao âmbito da grande mídia, precisando elas estarem diretamente inseridas no entretenimento televisivo ou serem filhas de alguém famoso, atualmente qualquer criança pode se tornar alvo e refém da prática do sharentig, sendo ela famosa ou não. Ou até mesmo se tornar famosa por causa disso – o que é mais um dos pontos desse problema.
Em 2024 a Justiça italiana concedeu ordem de urgência para impedir que a influenciadora digital Alice Pasti publicasse fotos e vídeos de sua filha Sole, de quase 4 anos, nas redes sociais. A queixa foi motivada pelo pai, que destacou que pessoas salvavam os vídeos de TikTok da menina e que ela era reconhecida por estranhos em locais públicos. Além disso, alegou que algumas postagens eram “não espontâneas e adultizadas”. 5
Segundo Fabiani Borges, advogada especialista em proteção de dados, “Existem cada vez mais adolescentes e jovens adultos do mundo digital que se queixam do rastro digital que os pais deixaram. Isso é inapagável. Entram questões da privacidade dessas crianças e dos adolescentes que muitas vezes não têm como se expressar, pois o pai e a mãe decidem a vida dos filhos. Isso tem consequências jurídicas muito grandes.”
Na última década, muitas crianças se tornaram “influencers” com status de celebridade, por meio de estímulo de familiares e o respaldo de patrocinadores. “Essas crianças constroem uma vida falsa, de imagens, e não uma vida de experiências reais. E os pais estão colaborando para a construção de uma personalidade moldada para agradar a imagem que fazem da pessoa, ou seja, de um falso self. A criança começa a passar por essa situação desde pequena. Muitas vezes, por trás desse perfil falso pode existir um grande vazio. A exploração dessas crianças por parte dos pais é uma forma de abuso infantil”, apontou o coordenador do Grupo de Trabalho de Saúde Mental, Dr. Roberto Santoro. 6
Segundo Dr. Santoro, a exploração dos filhos engloba múltiplos aspectos como o interesse econômico e o narcisismo. “Existe o ganho financeiro, que é evidente, o de ganhar dinheiro em cima da exploração dos filhos. Mas existe também uma questão de narcisismo. Isso significa que os pais realizam seus sonhos frustrados de sucesso, de projeção e de fama por meio dos filhos”, frisou. 6)
A acadêmica americana Stacey Steinberg, compartilhou em uma entrevista: “É irônico que tanto de nossa energia seja gasta em como nossos filhos usam as redes sociais e quanto tempo eles passam na internet e raramente focamos em nosso próprio comportamento. Fazemos bem em pensar sobre o tempo de tela das crianças? Certamente é preciso estabelecer limites, mas também faríamos bem em olhar para nós mesmos, sobre o tempo e como nos portamos online e o que compartilhamos.” 7
Quais são os prejuízos associados a essa prática? Em primeiro lugar, permite um registro digital de seus comportamentos, desrespeitando o seu direito à privacidade. Além disso, pode estar associada a uma monetização desse conteúdo, configurando exploração comercial infantil. Esse conteúdo também fica na rede por tempo indeterminado e pode constranger as crianças e até virar motivo de bullying na escola ou virtualmente quando forem mais velhos. Essas imagens, ainda, podem ser usadas em redes de pornografia infantil.8
Submeter as crianças a uma vida sob o olhar das câmeras não só invade a sua privacidade, mas também as incita a construírem a normalidade como exposição e não como o valor de intimidade. Se isso já é difícil para nós adultos que temos – ou deveríamos ter – uma noção formada do limite entre a privacidade e a exposição de si mesmo, imagine para uma criança que ainda está formando sua compreensão. Ela crescerá achando normal se expor e buscar o olhar de aprovação ao ser vista.
Já foi comprovado por pesquisas – além de ser fácil de notar na prática – que as crianças se acostumam com o fato de serem fotografadas e gravadas com constância e começam a perder a espontaneidade, a pedir para serem filmadas, a fazer coisas apenas para serem vistas. Além disso, precisamos nos questionar até que ponto estamos objetificando as nossas crianças explorando a sua imagem.
Quando isso implica uma relação direta da criança com as redes, impacta ainda mais pelo fato de ela se habituar a modular sua autoestima pelos comentários ou críticas que recebe. Sem maturidade psicológica para lidar com isso, e mais, com uma supervalorização do mundo virtual – que costuma ser bem cruel, elas tendem a ficar ansiosas e depressivas. Não são mais raros, infelizmente, os casos de influencers infantis que se suicidaram após uma chuva de críticas.
Por mais que as publicações possam ser motivadas por boas intenções, na maioria dos casos, o movimento de superexposição fere o direito à preservação da imagem de crianças e adolescentes. O melhor remédio contra o oversharenting é, em suma, uma boa dose de consciência e maturidade. Nossos filhos são tesouros e não vitrines. Velar pelo bem deles é uma das nossas maiores responsabilidades.
“Ninguém percebeu que a perda do sentido da vergonha significa a perda da privacidade; e a perda da privacidade significa a perda da intimidade; e que a perda desta última significa a morte da profundidade. Com efeito, não existe maneira mais eficiente de produzir pessoas mais rasas e superficiais do que as deixar viver vidas completamente expostas, sem a ocultação de nada.” (Theodore Dalrymple)