Quão africano é o Cristianismo? A mentalidade clássica cristã, tal qual conhecemos no Ocidente,tem berço africano.
Quão africano é o Cristianismo? A mentalidade clássica cristã, tal qual conhecemos no Ocidente,tem berço africano.
Durante muito tempo, a África foi tratada como desimportante por vários pesquisadores, de maneira tal que muitos ficam surpresos – e até desconfiam! – quando anunciamos as matrizes africanas do Cristianismo. Aos africanos, reservou-se na historiografia apenas o lugar de subalternidade e não de intelectualidade ou religiosidade.
O Brasil, tendo sido colonizado por Portugal, baluarte da Contrarreforma, contou com o Catolicismo como um pilar importante para sua formação social. Em razão desse histórico de colonização, aliás, o Catolicismo é visto por parte da militância política, da intelectualidade e, infelizmente, até mesmo por alguns membros do Clero como “uma religião branca e eurocêntrica” 1. Essa visão contraria os dados estatísticos oficiais, que deixam à mostra o fato que os negros brasileiros professam, majoritariamente, o Cristianismo. Contraria também a própria história do mundo: de acordo com a Tradição, no século I, São Mateus evangelizou a Etiópia 2. No século IV, muito antes do período de expansão marítima europeia, o Cristianismo virou religião oficial na Etiópia, fazendo deste país o segundo Estado do mundo a adotar a fé cristã; o primeiro foi a Armênia. O Cristianismo etíope tem um nível de desenvolvimento muito superior a qualquer nação europeia durante a Idade Antiga. O historiador David L. Eastman argumenta que
Ao pensar sobre a relação histórica geral entre o Cristianismo e a África, precisamos estar cientes do impacto no período colonial. (…) uma suposição adicional às vezes é feita: porque os missionários europeus trouxeram o Cristianismo com eles, o Cristianismo representa a opressão colonial e não é autenticamente africano. Essa suposição é categoricamente falsa. O Cristianismo está na África desde o início. De fato, é muito provável que houvesse cristãos na África antes de haver cristãos na Europa. 3.
Tomar a Europa como uma espécie de proprietária da história do Cristianismo é uma grande falácia que, infelizmente, tem sido utilizada para afastar um substantivo número de pessoas da Igreja Católica. Olavo de Carvalho afirma que “quatro quintos do prestígio das lendas terceiro-mundistas” 4 repousam sobre essa falácia. Para o bem da Santa Igreja, a verdade precisa ser revelada; graça a Deus, tal tarefa tem sido assumida por acadêmicos cristãos de várias regiões do mundo. Aliás, é conveniente recordar que a missão de trazer à tona a verdade sobre a história da Igreja na África aparece no texto da encíclica Ecclesia in Africa5, assinada em 1994 pelo Papa São João Paulo II, que diz:
É uma história que remonta à época do próprio nascimento da Igreja. A difusão do Evangelho deu-se em diversas fases. Os primeiros séculos do cristianismo viram a evangelização do Egito e da África do Norte. Uma segunda fase, envolvendo as regiões daquele Continente situadas ao sul do Saara, teve lugar nos séculos XV e XVI. Uma terceira fase, caracterizada por um extraordinário esforço missionário, teve início no século XIX.
Thomas C. Oden, um historiador americano dedicado à história africana do Cristianismo, clamou que jovens pesquisadores dessem continuidade a sua pesquisa: “será necessária uma geração de acadêmicos africanos para reavaliar os pressupostos imbuídos de preconceito que ignoram ou diminuem a história intelectual africana” 6. Bom, aqui tentaremos contribuir com nossos vinte centavos.
A história do Cristianismo é muito maior que sua expressão ocidental, que “carrega as marcas das análises filosóficas, da percepção moral, da disciplina e das interpretações das Escrituras que floresceram primeiro na África antes de chegarem a outro lugar.”7 Sobre as Sagradas Escrituras, é importante saber: a Etiópia tem sob sua guarda a Bíblia mais antiga do mundo e foi lá que o Reino de Axum, um poderoso reino cristão, se estabeleceu. Há diversas passagens do Antigo Testamento que evidenciam um relacionamento único entre Deus e o povo etíope. Ao lado da Libéria, a Etiópia é um dos únicos países africanos que não foi colonizado por europeus 8.
O evangelho de São Marcos, o primeiro a ser escrito, pode ser entendido como apresentação da missão apostólica na África; foi São Marcos que evangelizou o Egito e a Líbia, criando no primeiro a comunidade copta, uma das mais antigas do mundo. A passagem bíblica que registra Simão de Cirene9 ajudando Jesus Cristo a carregar a Cruz é uma das mais emocionantes do Evangelho. O Papa São João Paulo II afirma que a “Providência divina quis que a África estivesse presente, durante a Paixão de Cristo, na pessoa de Simão de Cirene, obrigado pelos soldados romanos a ajudar o Senhor a levar a Cruz”.
A Bíblia foi traduzida para o latim na África antes da Europa10, sob o papado de São Vitor I11, 14º bispo de Roma e o primeiro a vir da África12. Ou seja,
O Cristianismo apareceu no continente africano muito cedo em sua história. Em particular, o norte da África foi palco de uma efervescência da religião cristã, que foi fundamental para moldar a Igreja primitiva. A África é mencionada na narrativa bíblica várias vezes: quando criança, Jesus foi levado ao Egito para proteção; um dos episódios mais importantes do livro de Atos narra o batismo de um eunuco etíope por Filipe, o Evangelista (Atos 8); Santo Agostinho, um dos teólogos mais importantes do Cristianismo, foi bispo de Hipona (atual Argélia); e o escritor cristão Tertuliano era de Cartago (atual Tunísia). Notadamente, tanto Agostinho quanto Tertuliano falavam latim e viviam nas províncias romanas da África, o que mostra até que ponto a África era integrante do mundo da Antiguidade Clássica.13
O episódio do eunuco etíope mencionado no livro de Atos dos Apóstolos, em que Filipe evangeliza e batiza o eunuco, é associado ao início da fé cristã na região. De acordo com a Bíblia Sagrada Africana14, “O Livro dos Actos pode ser considerado um dos livros mais importante para a inculturação em África. (…) Actos legitima uma pesquisa profunda por toda a cultura africana”15.
Para além das Sagradas Escrituras, é importante sublinhar que a África influenciou a visão latina sobre pecado, criação, providência, expiação e escatologia. Nomes como Santo Antão, São Pacômio, São Paulo de Tebas, Santas Perpétua e Felicidade, São Cipriano de Cartago e Papa São Vitor I são exemplos de pensadores da África que se tornaram mestres espirituais imprescindíveis para o Cristianismo; seus escritos ainda hoje são fundamentais para o aprofundamento histórico da salvação, à luz da Palavra de Deus.
O Papa Paulo VI afirma que a vida cristã na África era tão intensa nos primeiros séculos que pode ser entendida como vanguarda, tanto no que se refere ao estudo teológico quanto ao que se refere à expressão literária 16. Considerando isso, Oden elenca, de maneira didática, sete maneiras que a África moldou a mente cristã17: 1) o nascimento da universidade europeia foi previsto pelo Cristianismo africano; 2) a exegese cristã histórica e espiritual das Sagradas Escrituras amadureceu na África; 3) os pensadores africanos moldaram o cerne dos dogmas mais básicos do Cristianismo primitivo; 4) as decisões ecumênicas primitivas seguiram os padrões conciliatórios da África; 5) a África moldou as formas ocidentais da formação espiritual através da disciplina monástica; 6) a filosofia neoplatônica da antiguidade tardia se transferiu da África para a Europa; 7) certas habilidades literárias e dialéticas influentes foram refinadas na África.
Cada um dos pontos supracitados merece uma análise atenciosa. São temas para outros textos. Encerro este texto com uma reflexão importante deixada pelo Papa Bento XVI na encíclica Africae munus:
Na concepção africana do mundo, a vida é entendida como uma realidade que engloba e inclui os antepassados, os vivos e as crianças por nascer, a criação inteira e todos os seres: os que falam e os que são mudos, os que pensam e os que não são capazes de o fazer. Nela, o universo visível e invisível é considerado como um espaço de vida dos homens, mas também como um espaço de comunhão onde as gerações passadas estão, de maneira invisível, ao lado das gerações presentes, que, por sua vez, são mães das gerações futuras. Esta ampla abertura do coração e do espírito da tradição africana predispõe-vos, amados irmãos e irmãs, para ouvirdes e receberdes a mensagem de Cristo e compreenderdes o mistério da Igreja, a fim de dar todo o seu valor à vida humana e às condições para o seu pleno florescimento18.
Pedagoga, Autora do livro “Mulheres que o feminismo não vê - Classe e Raça”. Realizou pós-doutoramento em Sociologia pela UFRJ.
Durante muito tempo, a África foi tratada como desimportante por vários pesquisadores, de maneira tal que muitos ficam surpresos – e até desconfiam! – quando anunciamos as matrizes africanas do Cristianismo. Aos africanos, reservou-se na historiografia apenas o lugar de subalternidade e não de intelectualidade ou religiosidade.
O Brasil, tendo sido colonizado por Portugal, baluarte da Contrarreforma, contou com o Catolicismo como um pilar importante para sua formação social. Em razão desse histórico de colonização, aliás, o Catolicismo é visto por parte da militância política, da intelectualidade e, infelizmente, até mesmo por alguns membros do Clero como “uma religião branca e eurocêntrica” 1. Essa visão contraria os dados estatísticos oficiais, que deixam à mostra o fato que os negros brasileiros professam, majoritariamente, o Cristianismo. Contraria também a própria história do mundo: de acordo com a Tradição, no século I, São Mateus evangelizou a Etiópia 2. No século IV, muito antes do período de expansão marítima europeia, o Cristianismo virou religião oficial na Etiópia, fazendo deste país o segundo Estado do mundo a adotar a fé cristã; o primeiro foi a Armênia. O Cristianismo etíope tem um nível de desenvolvimento muito superior a qualquer nação europeia durante a Idade Antiga. O historiador David L. Eastman argumenta que
Ao pensar sobre a relação histórica geral entre o Cristianismo e a África, precisamos estar cientes do impacto no período colonial. (…) uma suposição adicional às vezes é feita: porque os missionários europeus trouxeram o Cristianismo com eles, o Cristianismo representa a opressão colonial e não é autenticamente africano. Essa suposição é categoricamente falsa. O Cristianismo está na África desde o início. De fato, é muito provável que houvesse cristãos na África antes de haver cristãos na Europa. 3.
Tomar a Europa como uma espécie de proprietária da história do Cristianismo é uma grande falácia que, infelizmente, tem sido utilizada para afastar um substantivo número de pessoas da Igreja Católica. Olavo de Carvalho afirma que “quatro quintos do prestígio das lendas terceiro-mundistas” 4 repousam sobre essa falácia. Para o bem da Santa Igreja, a verdade precisa ser revelada; graça a Deus, tal tarefa tem sido assumida por acadêmicos cristãos de várias regiões do mundo. Aliás, é conveniente recordar que a missão de trazer à tona a verdade sobre a história da Igreja na África aparece no texto da encíclica Ecclesia in Africa5, assinada em 1994 pelo Papa São João Paulo II, que diz:
É uma história que remonta à época do próprio nascimento da Igreja. A difusão do Evangelho deu-se em diversas fases. Os primeiros séculos do cristianismo viram a evangelização do Egito e da África do Norte. Uma segunda fase, envolvendo as regiões daquele Continente situadas ao sul do Saara, teve lugar nos séculos XV e XVI. Uma terceira fase, caracterizada por um extraordinário esforço missionário, teve início no século XIX.
Thomas C. Oden, um historiador americano dedicado à história africana do Cristianismo, clamou que jovens pesquisadores dessem continuidade a sua pesquisa: “será necessária uma geração de acadêmicos africanos para reavaliar os pressupostos imbuídos de preconceito que ignoram ou diminuem a história intelectual africana” 6. Bom, aqui tentaremos contribuir com nossos vinte centavos.
A história do Cristianismo é muito maior que sua expressão ocidental, que “carrega as marcas das análises filosóficas, da percepção moral, da disciplina e das interpretações das Escrituras que floresceram primeiro na África antes de chegarem a outro lugar.”7 Sobre as Sagradas Escrituras, é importante saber: a Etiópia tem sob sua guarda a Bíblia mais antiga do mundo e foi lá que o Reino de Axum, um poderoso reino cristão, se estabeleceu. Há diversas passagens do Antigo Testamento que evidenciam um relacionamento único entre Deus e o povo etíope. Ao lado da Libéria, a Etiópia é um dos únicos países africanos que não foi colonizado por europeus 8.
O evangelho de São Marcos, o primeiro a ser escrito, pode ser entendido como apresentação da missão apostólica na África; foi São Marcos que evangelizou o Egito e a Líbia, criando no primeiro a comunidade copta, uma das mais antigas do mundo. A passagem bíblica que registra Simão de Cirene9 ajudando Jesus Cristo a carregar a Cruz é uma das mais emocionantes do Evangelho. O Papa São João Paulo II afirma que a “Providência divina quis que a África estivesse presente, durante a Paixão de Cristo, na pessoa de Simão de Cirene, obrigado pelos soldados romanos a ajudar o Senhor a levar a Cruz”.
A Bíblia foi traduzida para o latim na África antes da Europa10, sob o papado de São Vitor I11, 14º bispo de Roma e o primeiro a vir da África12. Ou seja,
O Cristianismo apareceu no continente africano muito cedo em sua história. Em particular, o norte da África foi palco de uma efervescência da religião cristã, que foi fundamental para moldar a Igreja primitiva. A África é mencionada na narrativa bíblica várias vezes: quando criança, Jesus foi levado ao Egito para proteção; um dos episódios mais importantes do livro de Atos narra o batismo de um eunuco etíope por Filipe, o Evangelista (Atos 8); Santo Agostinho, um dos teólogos mais importantes do Cristianismo, foi bispo de Hipona (atual Argélia); e o escritor cristão Tertuliano era de Cartago (atual Tunísia). Notadamente, tanto Agostinho quanto Tertuliano falavam latim e viviam nas províncias romanas da África, o que mostra até que ponto a África era integrante do mundo da Antiguidade Clássica.13
O episódio do eunuco etíope mencionado no livro de Atos dos Apóstolos, em que Filipe evangeliza e batiza o eunuco, é associado ao início da fé cristã na região. De acordo com a Bíblia Sagrada Africana14, “O Livro dos Actos pode ser considerado um dos livros mais importante para a inculturação em África. (…) Actos legitima uma pesquisa profunda por toda a cultura africana”15.
Para além das Sagradas Escrituras, é importante sublinhar que a África influenciou a visão latina sobre pecado, criação, providência, expiação e escatologia. Nomes como Santo Antão, São Pacômio, São Paulo de Tebas, Santas Perpétua e Felicidade, São Cipriano de Cartago e Papa São Vitor I são exemplos de pensadores da África que se tornaram mestres espirituais imprescindíveis para o Cristianismo; seus escritos ainda hoje são fundamentais para o aprofundamento histórico da salvação, à luz da Palavra de Deus.
O Papa Paulo VI afirma que a vida cristã na África era tão intensa nos primeiros séculos que pode ser entendida como vanguarda, tanto no que se refere ao estudo teológico quanto ao que se refere à expressão literária 16. Considerando isso, Oden elenca, de maneira didática, sete maneiras que a África moldou a mente cristã17: 1) o nascimento da universidade europeia foi previsto pelo Cristianismo africano; 2) a exegese cristã histórica e espiritual das Sagradas Escrituras amadureceu na África; 3) os pensadores africanos moldaram o cerne dos dogmas mais básicos do Cristianismo primitivo; 4) as decisões ecumênicas primitivas seguiram os padrões conciliatórios da África; 5) a África moldou as formas ocidentais da formação espiritual através da disciplina monástica; 6) a filosofia neoplatônica da antiguidade tardia se transferiu da África para a Europa; 7) certas habilidades literárias e dialéticas influentes foram refinadas na África.
Cada um dos pontos supracitados merece uma análise atenciosa. São temas para outros textos. Encerro este texto com uma reflexão importante deixada pelo Papa Bento XVI na encíclica Africae munus:
Na concepção africana do mundo, a vida é entendida como uma realidade que engloba e inclui os antepassados, os vivos e as crianças por nascer, a criação inteira e todos os seres: os que falam e os que são mudos, os que pensam e os que não são capazes de o fazer. Nela, o universo visível e invisível é considerado como um espaço de vida dos homens, mas também como um espaço de comunhão onde as gerações passadas estão, de maneira invisível, ao lado das gerações presentes, que, por sua vez, são mães das gerações futuras. Esta ampla abertura do coração e do espírito da tradição africana predispõe-vos, amados irmãos e irmãs, para ouvirdes e receberdes a mensagem de Cristo e compreenderdes o mistério da Igreja, a fim de dar todo o seu valor à vida humana e às condições para o seu pleno florescimento18.