Colunistas

Quando um grupo católico se comporta como uma seita

Corruptio optimi pessima é um ditado em latim que significa que um grande bem se converte em um grande mal se se corrompe a si mesmo.

Quando um grupo católico se comporta como uma seita
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Quando um grupo católico se comporta como uma seita

Corruptio optimi pessima é um ditado em latim que significa que um grande bem se converte em um grande mal se se corrompe a si mesmo.

Data da Publicação: 16/04/2025
Tempo de leitura:
Autor: Rayhanne Zago
Data da Publicação: 16/04/2025
Tempo de leitura:
Autor: Rayhanne Zago

Corruptio optimi pessima é um ditado em latim que significa que um grande bem se converte em um grande mal se se corrompe a si mesmo. A corrupção das melhores coisas as transforma nas piores. Podemos aplicar essa premissa ao caso de grupos católicos que começam bem e acabam se corrompendo por diversos fatores, transformando-se em grupos com funcionamento sectário. O processo de adoecimento de um grupo que começa bem, com vigor e frutos é bem sutil. Ele vai se deteriorando e corrompendo conforme vai se fechando mais em si mesmo.

Alejandro Labajos em seu artigo ‘No os llamo siervos; sois mis amigos’, nos recorda o que disse o Papa Francisco: «Alguns institutos novos parecem uma grande novidade, mostram uma grande força apostólica, arrastando atrás de si a tantos e depois fracassando. Às vezes, há questões escandalosas por trás. (…) Eles nascem, não de um carisma do Espírito Santo, mas de um carisma humano que atrai por seus dons de fascinação”. No mesmo artigo também escreve citando Lopés em ‘La revolución oculta’ que “mesmo em nossos tempos temos visto algumas organizações apostólicas que pareciam muito bem-organizadas, que funcionavam bem… e depois descobrimos a corrupção que havia dentro, até inclusive dos fundadores”. 1

Nos últimos anos tornou-se evidente a problemática de muitas congregações e associações religiosas disfuncionais, uma vez que muitos de seus membros começaram a questionar a dinâmica destes sistemas e a trazerem à tona suas tristes experiências. É notória a similaridade entre os relatos destes indivíduos mesmo participantes de grupos distintos, destacando um padrão sistêmico comum a todos eles.

Infelizmente o padrão a que me refiro é uma dinâmica sistêmica doente, formada por características que corrompem as engrenagens institucionais e geram prejuízos avassaladores para seus membros e para a deformação do próprio grupo. São nestes ambientes que encontramos inúmeros casos de abusos de diferentes tipos e de comportamentos que devastam a saúde espiritual e psíquica dos indivíduos.

O contexto religioso acaba sendo um ambiente de ingenuidade onde presume-se que só há pessoas boas e bem-intencionadas. Onde se tem a ilusão que nada de mal pode acontecer, como se houvesse uma imunidade. O fato é que abuso é abuso em qualquer lugar – seja esse abuso físico, sexual, financeiro, emocional ou psicológico. Contudo, assim como o ambiente familiar, o religioso goza de uma grande proteção social. Falar de abusos nesses contextos parece uma ofensa e ainda é um grande tabu. Mas bem, justamente por serem essas zonas cinzas, a prevalência dos acontecimentos se torna maior. Quando fingimos que um problema não existe, abrimos uma brecha para que ele aconteça ainda mais. Quando uma pessoa não sabe do risco, a chance dela se tornar vítima é ainda maior.

1) O termo seita 

Histórias sobre seitas bizarras fazem parte do imaginário popular graças a casos trágicos que ganharam as páginas dos jornais e causaram grande espanto. Algumas são casos de charlatanismo enquanto outras terminaram em suicídio em massa, pedofilia e se tornaram um grande trauma na região. Se você assistir a documentários como ‘Keep Sweet, pray and obey’, ‘O cerco de Waco’, ‘Colonia dignidade’ ou ‘Wild, Wild Country’ conhecerá relatos assustadores e reais. 

O que você pensa quando ouve a palavra seita? Provavelmente o associa a uma conotação religiosa, a um grupo dissidente ou excêntrico. Esse termo costuma ser utilizado de forma pejorativa para ofender qualquer grupo que pense diferente ou que seja estranho. Isso aconteceu com o imaginário popular a partir da década de 70 quando escândalos envolvendo seitas como a de Jim Jones, Waco, Haven’s Gate ganharam projeção midiática devido aos acontecimentos assombrosos e trágicos envolvendo estes grupos. Desde então o imaginário coletivo tem associado o termo seita quase que exclusivamente ao contexto religioso ou a grupos muito bizarros. No inglês encontraremos a palavra ‘cult’ significando a mesma coisa.

O termo ‘seita’ é polissêmico e gera confusões. A etimologia da palavra seita significa “seguidor” e são considerados “grupos menores que se separaram de grupos maiores”. E mesmo o termo culto já havia sido associado antes disso a expressões de devoção, como cultos aos deuses gregos, por exemplo. Etimologicamente tanto a palavra seita quanto a palavra culto não apresentam uma conotação negativa. Por isso nem toda seita é preocupante; os grupos que causam preocupação são as seitas coercitivas, os grupos manipuladores e abusivos, por serem destrutivos.

Em nosso país nem seita nem culto são o termo mais adequado para denominar os grupos manipuladores ou coercitivos. Aqui em nossa cultura, no imaginário e linguagem popular, encontramos culto como uma palavra positiva associada a Deus ou usada pejorativamente para zombar da religião. Bem como seita é um termo pejorativo e ofensivo, utilizado tanto dentro quanto fora da religião, para desqualificar grupos com os quais não se tem simpatia.

Grupos manipuladores não são considerados assim baseados no que creem, mas em como funcionam e no que causam em seus membros. Então podem ser de diferentes focos: político, educacional, religioso, psicoterapêutico, comercial, esportivo e até existirem apenas virtualmente em torno de gurus ou ideologias. Esses grupos são destrutivos, sempre adoecem e prejudicam os seus membros. Eles se utilizam de mecanismos de manipulação e controle para aliciar e manter os membros dentro do grupo. É importante saber sobre esse assunto porque você ou alguém que você ama podem ter passado ou estar em um grupo manipulador sem se dar conta.  

Essa questão semântica faz com que vários grupos manipuladores existam sem serem notados e enganem as pessoas simplesmente porque não se encaixam no molde “grupos de fora” ou “grupos estranhos e bizarros que atraem gente louca”, especialmente aqueles que existem fora do contexto religioso ou espiritualizado. E isso, dentro do contexto religioso, dificulta que as pessoas reconheçam que estão em um ou que há a existência de grupos manipuladores dentro de sua religião, por exemplo.

Na história da humanidade são inúmeros os casos de grupos sectários abusivos e suas complicações significativas. Isso levou diversos pesquisadores a estudarem os mecanismos que estão envolvidos nessas formas de vida e de coerção psicológica. O ramo da Psicologia Social já apresenta muitos conhecimentos significativos a respeito do modus operandi das seitas. 

Dentro do contexto católico é especialmente na França que encontraremos estudos mais aprofundados a respeito do tema. Nesse contexto, os termos mais relacionados são desvios sectários, seitas intra-eclesiais ou comunidades com funcionamento sectário. 

2) Por que as pessoas entram nesses grupos

Antigamente pensava-se que apenas pessoas com alguma deficiência, carência ou fragilidade ingressavam em grupos abusivos. Até mesmo chegava-se a culpabilizar as vítimas por suas vulnerabilidades, como se elas tivessem sido fracas, frágeis, estúpidas ou procurado passar por isso por vontade própria. Contudo, a realidade é que qualquer um pode ser captado e atraído por esses grupos.

É importante entendermos por que todos somos vulneráveis a ingressar em grupos manipuladores. Existem tipos diferentes de vulnerabilidade. A vulnerabilidade especial diz respeito a pessoas em estado de enfermidade física ou psíquica, histórico de abusos ou traumas de desenvolvimento, entre outros. A social, refere-se a questões envolvendo necessidades básicas dos indivíduos, marginalização social, desorganização familiar, poder aquisitivo, acesso à educação, fatores socioeconômicos, culturais, até mesmo climáticos, entre outros. Temos também a vulnerabilidade temporária que são fases na vida de qualquer pessoa onde há um estresse maior ou vulnerabilidade psicológica como perda de emprego, luto, término de relacionamento, crises psíquicas, entre outros. A vulnerabilidade etária diz respeito a certos períodos cronológicos cujos indivíduos são mais visados, como aos menores de 14 anos, adolescentes e aos jovens em início da vida adulta, ou aos idosos para abuso financeiro.

Por fim, temos a vulnerabilidade radical ou geral que é um conceito antropológico. Todos nós somos vulneráveis, isso faz parte da condição humana. Não é uma carência de um determinado grupo ou pessoa, mas uma característica comum dos seres humanos. É ela que possibilita nos relacionarmos. Deriva do termo latino vulnus (ferida). A vulnerabilidade é uma possibilidade, não um fato. Indica a possibilidade de ser ferido quando me abro em uma relação de confiança. A abertura aos outros sempre envolve um risco. Ser receptivo e, portanto, vulnerável é uma condição necessária para uma autêntica vida humana. Ela não é algo ruim, mas sim necessária e que possibilita o autêntico desenvolvimento da vida humana no encontro com os outros. O problema é quando ela é explorada.

As pessoas entram nesses grupos manipuladores porque elas são enganadas. Eles não aparentam ser destrutivos. Especialmente dentro do contexto religioso eles apresentam muitos benefícios, frutos, além de gozarem de uma imunidade porque ninguém pensa que um grupo religioso pode ser abusivo e adoecer os seus membros. A maioria das pessoas que ingressam nesses grupos são de boa vontade, pessoas buscando a santidade, um bom relacionamento com Deus, uma comunidade para se sentir parte, um sentido para a vida, uma missão para desenvolver seus talentos, cansadas de como o mundo está vazio e deprimente, com desejo de fazer parte de uma mudança na sociedade, entre outras motivações que também são os atrativos em grupos saudáveis.

As pessoas são seduzidas através de love bombing, um mecanismo psicológico bem descrito onde o manipulador enche a vítima de atenção, carinho fazendo com que ela se sinta especial e pertencente a algo. Além disso, o grupo faz promessas de salvação, soluções mágicas, mostra-se como detentor de conhecimento, de que estar ali vai ajudar essas pessoas e aos de fora e fazem com que a pessoa se sinta segura, protegida e então ela abaixe suas defesas pessoais. É como uma fase de paixão onde há muita conexão afetiva, intensidade, ilusão e cegueira.

Grupos manipuladores estão interessados em pessoas que possam contribuir com a obra. Que sejam produtivos e submissos. Eles não querem cuidar de pessoas, eles querem se servir delas. Obviamente lideranças com traços psicopatológicos como narcisistas, psicopatias, borderlines entre outros, são pessoas que têm uma facilidade maior em identificar vulnerabilidades, seduzir as pessoas e se aproveitar delas para seus interesses (que podem ser financeiros ou simplesmente afetivos e egóicos). Assim como os charlatães, até mesmo estudam sobre formas de manipular as pessoas. Mas em geral, nos grupos manipuladores vamos encontrar pessoas engajadas com uma causa aparentemente boa dando testemunho de como essa obra mudou a sua vida e influenciando outras a ingressarem, muitas vezes tendo sido ensinadas pelo líder a como aliciar ou replicar as ferramentas desse sistema abusivo. 

No livro ‘Escapando del labirinto del abuso espiritual’, a autora Lisa Oakley nos traz uma hipótese que também é parcialmente satisfatória. Ela escreve que quando uma pessoa experimentou durante a sua infância e adolescência um ambiente de controle e coação, ela fica adaptada a este estilo de vida e relacionamento com autoridades. Dessa forma, inconscientemente quando encontra este ambiente que oferece todas as respostas, que toma decisões por ela, que não aceita questionamentos, que possui rigidez e regras sem compreensão lógica, que pune e castiga, enfim, um ambiente de autoritarismo e obediência cega, ela se sente confortável. 2

Esses são alguns dos motivos que levam tantas vítimas a ingressar nesses sistemas perversos. Engana-se quem pensa que jamais seria vítima de abuso relacionado à fé. Não há um perfil ideal para uma vítima. Qualquer pessoa pode ser enganada, manipulada e explorada em seu ambiente de espiritualidade. A maioria das vítimas só se dá conta do que passou quando a situação já está insustentável.

3) Características das derivas sectárias

Mesmo dentro da Igreja Católica nos deparamos com grupos com funcionamento sectário. O termo ‘desvios sectários’ foi proposto pelo prior da Grande Cartuxa, Dom Dysmas de Lassus, em seu livro ‘Los riesgos de la vida religiosa’.3 Este livro consagrou-se como um clássico devido à profundidade e à novidade que o autor discorre em sua obra, especialmente através do amplo trabalho de estudo e o acompanhamento das vítimas que o fundamenta. 

Muitos destes grupos, no contexto católico, possuem aprovação oficial da Igreja. Dessa forma não são em si mesmos associações rebeldes.4 São grupos de pessoas, seja de fiéis leigos ou de religiosos, que embora existam dentro do âmbito católico, apresentam o seu funcionamento com um padrão sectário. Podem ser ordens, movimentos, grupos, comunidades, paróquias, institutos, associações, escolas, congregações, ligados a paróquias, dioceses ou independentes. 

Essas comunidades apresentam problemas significativos na estrutura do grupo que possui um padrão disfuncional. A forma de atuar e de se organizar segue os mecanismos de funcionamento de uma seita. Todo o organismo comunitário replica e mantém este padrão. A própria engrenagem institucional está corrompida, doente e problemática, bem como a forma de se relacionar entre os membros. Inevitavelmente esses grupos sofrem de uma interpretação errônea a respeito de valores como obediência, respeito, autoridade, sofrimento, consciência, afetividade e acabam perpetuando um padrão abusivo e manipulador no modo de agir do grupo. 

Algumas das características comuns nestes grupos são a idolatria do fundador ou lideranças, considerando-as inerrantes e com poder absoluto (como se fossem o próprio Deus e decidindo quase tudo sobre a vida das vítimas). A presença de uma estrutura piramidal, onde os membros são desencorajados a nutrirem relações de amizade e abertura com os membros, sendo induzidos a se relacionarem mais profundamente apenas com as autoridades. O isolamento, onde aos poucos os membros passam a se relacionar apenas com as pessoas do próprio grupo e se isolam e alienam do mundo ao redor (de fora). A presença de uma uniformidade, onde os membros são reprogramados através de um molde de comportamento e pensamento e onde as críticas, dúvidas e diferenças são penalizadas. Um sistema lógico fechado que não aceita argumentos ou pensamentos diferentes, nem dúvidas ou questionamentos. Há a presença de elitismo (o grupo se acha o melhor e o único possuidor da verdade) e desobediência para com as outras autoridades da Igreja, como a Santa Sé, ao Bispo local. Há inúmeras manipulações psicológicas envolvidas. Os membros que saem do grupo são difamados e culpabilizados. Explicarei melhor essas e outras características em um texto vindouro.

4) Consequências para as vítimas

Alguns sintomas que as vítimas de abuso em contexto religioso ou espiritual podem apresentar incluem: confusão mental, dificuldade em tomar decisões e pensar por si mesmo, falta de sentido ou direção na vida, baixa autoestima, ansiedade de estar no mundo, ataques de pânico, medo da condenação, depressão, pensamentos suicidas, distúrbios do sono e alimentares, abuso de substâncias, pesadelos, perfeccionismo, desconforto com a sexualidade, imagem corporal negativa, problemas de controle de impulso, dificuldade de desfrutar o prazer ou estar presente aqui e agora, raiva, amargura, traição, culpa, sofrimento e perda, dificuldade em expressar emoções, ruptura da rede familiar e social, solidão, problemas relacionados com a sociedade e questões de relacionamento pessoal. Perfeccionismo compulsivo, crise de fé ou desilusão com a espiritualidade; abandono da religião; sentimentos constantes de vergonha ou culpa e hipervigilância. Ataques de pânico e uma profunda apatia e desconexão consigo mesmo e com o mundo ao redor também costumam estar presentes. Dificuldade em confiar nos outros; sentimentos generalizados de desesperança, especialmente em combinação com culpa, bem como culpar a si mesmo por todos os aspectos negativos da vida; depressão; comprometimento da identidade pessoal.5 6

As vítimas de abusos nesse contexto acabam se sentindo completamente desamparadas por não saberem dar nome ao que passaram e por não encontrarem algum espaço saudável onde possam relatar sua trágica experiência e receberem ajuda e reparação. E os perpetradores aproveitam da segurança de suas posições para cometerem abusos e saírem ilesos.

Como povo de Deus ainda guardamos um silêncio incrédulo a respeito desse tema. Não é mais possível se esconder atrás da ignorância ou espiritualizar o fenômeno do abuso, nem argumentar que são sempre fatos periféricos. O silêncio é cúmplice. Uma das maiores dificuldades das vítimas é encontrar acolhimento e compreensão especializada no tema. Como os abusos na Igreja Católica apresentam um contexto específico e afetam as vítimas de forma particular, tanto a escuta quanto o acompanhamento espiritual e psicológico precisam compreender as dinâmicas envolvidas. Um dos grandes riscos é minimizar o sofrimento ou desacreditar da vítima, além de poder conduzi-la a um estado de revolta contra Deus e a Igreja em vez de uma reconciliação e superação.

Referências

  1. https://rayhannezago.com/ja-nao-vos-chamo-servos-abusos-de-poder-e-consciencia-na-vida-consagrada/[]
  2. Escapando del labirinto del abuso espiritual’, Lisa Oakley[]
  3. https://lojacarmelitasmensageiras.com/collections/livros/products/livro-um-amor-ferido-abusos-na-vida-consagrada-e-caminhos-para-cura[]
  4. Órdenes y Movimientos católicos acusados de ser Derivas Sectarias (cult-like): ¿Sectas Intraeclesiales?, J. Paul Lennon[]
  5. Leaving the fold, Marllene Winell[]
  6. LA FORMAZIONE INIZIALE IN TEMPO DI ABUSI, PADRE AMEDEO CENCINI[]
Rayhanne Zago

Rayhanne Zago

Psicoterapeuta e escritora. Especialista em Saúde Mental, Dependência de Tecnologia e Abuso Espiritual. Autora do livro ‘A corrupção do bem: quando um grupo católico se comporta como uma seita”.

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Corruptio optimi pessima é um ditado em latim que significa que um grande bem se converte em um grande mal se se corrompe a si mesmo. A corrupção das melhores coisas as transforma nas piores. Podemos aplicar essa premissa ao caso de grupos católicos que começam bem e acabam se corrompendo por diversos fatores, transformando-se em grupos com funcionamento sectário. O processo de adoecimento de um grupo que começa bem, com vigor e frutos é bem sutil. Ele vai se deteriorando e corrompendo conforme vai se fechando mais em si mesmo.

Alejandro Labajos em seu artigo ‘No os llamo siervos; sois mis amigos’, nos recorda o que disse o Papa Francisco: «Alguns institutos novos parecem uma grande novidade, mostram uma grande força apostólica, arrastando atrás de si a tantos e depois fracassando. Às vezes, há questões escandalosas por trás. (…) Eles nascem, não de um carisma do Espírito Santo, mas de um carisma humano que atrai por seus dons de fascinação”. No mesmo artigo também escreve citando Lopés em ‘La revolución oculta’ que “mesmo em nossos tempos temos visto algumas organizações apostólicas que pareciam muito bem-organizadas, que funcionavam bem… e depois descobrimos a corrupção que havia dentro, até inclusive dos fundadores”. 1

Nos últimos anos tornou-se evidente a problemática de muitas congregações e associações religiosas disfuncionais, uma vez que muitos de seus membros começaram a questionar a dinâmica destes sistemas e a trazerem à tona suas tristes experiências. É notória a similaridade entre os relatos destes indivíduos mesmo participantes de grupos distintos, destacando um padrão sistêmico comum a todos eles.

Infelizmente o padrão a que me refiro é uma dinâmica sistêmica doente, formada por características que corrompem as engrenagens institucionais e geram prejuízos avassaladores para seus membros e para a deformação do próprio grupo. São nestes ambientes que encontramos inúmeros casos de abusos de diferentes tipos e de comportamentos que devastam a saúde espiritual e psíquica dos indivíduos.

O contexto religioso acaba sendo um ambiente de ingenuidade onde presume-se que só há pessoas boas e bem-intencionadas. Onde se tem a ilusão que nada de mal pode acontecer, como se houvesse uma imunidade. O fato é que abuso é abuso em qualquer lugar – seja esse abuso físico, sexual, financeiro, emocional ou psicológico. Contudo, assim como o ambiente familiar, o religioso goza de uma grande proteção social. Falar de abusos nesses contextos parece uma ofensa e ainda é um grande tabu. Mas bem, justamente por serem essas zonas cinzas, a prevalência dos acontecimentos se torna maior. Quando fingimos que um problema não existe, abrimos uma brecha para que ele aconteça ainda mais. Quando uma pessoa não sabe do risco, a chance dela se tornar vítima é ainda maior.

1) O termo seita 

Histórias sobre seitas bizarras fazem parte do imaginário popular graças a casos trágicos que ganharam as páginas dos jornais e causaram grande espanto. Algumas são casos de charlatanismo enquanto outras terminaram em suicídio em massa, pedofilia e se tornaram um grande trauma na região. Se você assistir a documentários como ‘Keep Sweet, pray and obey’, ‘O cerco de Waco’, ‘Colonia dignidade’ ou ‘Wild, Wild Country’ conhecerá relatos assustadores e reais. 

O que você pensa quando ouve a palavra seita? Provavelmente o associa a uma conotação religiosa, a um grupo dissidente ou excêntrico. Esse termo costuma ser utilizado de forma pejorativa para ofender qualquer grupo que pense diferente ou que seja estranho. Isso aconteceu com o imaginário popular a partir da década de 70 quando escândalos envolvendo seitas como a de Jim Jones, Waco, Haven’s Gate ganharam projeção midiática devido aos acontecimentos assombrosos e trágicos envolvendo estes grupos. Desde então o imaginário coletivo tem associado o termo seita quase que exclusivamente ao contexto religioso ou a grupos muito bizarros. No inglês encontraremos a palavra ‘cult’ significando a mesma coisa.

O termo ‘seita’ é polissêmico e gera confusões. A etimologia da palavra seita significa “seguidor” e são considerados “grupos menores que se separaram de grupos maiores”. E mesmo o termo culto já havia sido associado antes disso a expressões de devoção, como cultos aos deuses gregos, por exemplo. Etimologicamente tanto a palavra seita quanto a palavra culto não apresentam uma conotação negativa. Por isso nem toda seita é preocupante; os grupos que causam preocupação são as seitas coercitivas, os grupos manipuladores e abusivos, por serem destrutivos.

Em nosso país nem seita nem culto são o termo mais adequado para denominar os grupos manipuladores ou coercitivos. Aqui em nossa cultura, no imaginário e linguagem popular, encontramos culto como uma palavra positiva associada a Deus ou usada pejorativamente para zombar da religião. Bem como seita é um termo pejorativo e ofensivo, utilizado tanto dentro quanto fora da religião, para desqualificar grupos com os quais não se tem simpatia.

Grupos manipuladores não são considerados assim baseados no que creem, mas em como funcionam e no que causam em seus membros. Então podem ser de diferentes focos: político, educacional, religioso, psicoterapêutico, comercial, esportivo e até existirem apenas virtualmente em torno de gurus ou ideologias. Esses grupos são destrutivos, sempre adoecem e prejudicam os seus membros. Eles se utilizam de mecanismos de manipulação e controle para aliciar e manter os membros dentro do grupo. É importante saber sobre esse assunto porque você ou alguém que você ama podem ter passado ou estar em um grupo manipulador sem se dar conta.  

Essa questão semântica faz com que vários grupos manipuladores existam sem serem notados e enganem as pessoas simplesmente porque não se encaixam no molde “grupos de fora” ou “grupos estranhos e bizarros que atraem gente louca”, especialmente aqueles que existem fora do contexto religioso ou espiritualizado. E isso, dentro do contexto religioso, dificulta que as pessoas reconheçam que estão em um ou que há a existência de grupos manipuladores dentro de sua religião, por exemplo.

Na história da humanidade são inúmeros os casos de grupos sectários abusivos e suas complicações significativas. Isso levou diversos pesquisadores a estudarem os mecanismos que estão envolvidos nessas formas de vida e de coerção psicológica. O ramo da Psicologia Social já apresenta muitos conhecimentos significativos a respeito do modus operandi das seitas. 

Dentro do contexto católico é especialmente na França que encontraremos estudos mais aprofundados a respeito do tema. Nesse contexto, os termos mais relacionados são desvios sectários, seitas intra-eclesiais ou comunidades com funcionamento sectário. 

2) Por que as pessoas entram nesses grupos

Antigamente pensava-se que apenas pessoas com alguma deficiência, carência ou fragilidade ingressavam em grupos abusivos. Até mesmo chegava-se a culpabilizar as vítimas por suas vulnerabilidades, como se elas tivessem sido fracas, frágeis, estúpidas ou procurado passar por isso por vontade própria. Contudo, a realidade é que qualquer um pode ser captado e atraído por esses grupos.

É importante entendermos por que todos somos vulneráveis a ingressar em grupos manipuladores. Existem tipos diferentes de vulnerabilidade. A vulnerabilidade especial diz respeito a pessoas em estado de enfermidade física ou psíquica, histórico de abusos ou traumas de desenvolvimento, entre outros. A social, refere-se a questões envolvendo necessidades básicas dos indivíduos, marginalização social, desorganização familiar, poder aquisitivo, acesso à educação, fatores socioeconômicos, culturais, até mesmo climáticos, entre outros. Temos também a vulnerabilidade temporária que são fases na vida de qualquer pessoa onde há um estresse maior ou vulnerabilidade psicológica como perda de emprego, luto, término de relacionamento, crises psíquicas, entre outros. A vulnerabilidade etária diz respeito a certos períodos cronológicos cujos indivíduos são mais visados, como aos menores de 14 anos, adolescentes e aos jovens em início da vida adulta, ou aos idosos para abuso financeiro.

Por fim, temos a vulnerabilidade radical ou geral que é um conceito antropológico. Todos nós somos vulneráveis, isso faz parte da condição humana. Não é uma carência de um determinado grupo ou pessoa, mas uma característica comum dos seres humanos. É ela que possibilita nos relacionarmos. Deriva do termo latino vulnus (ferida). A vulnerabilidade é uma possibilidade, não um fato. Indica a possibilidade de ser ferido quando me abro em uma relação de confiança. A abertura aos outros sempre envolve um risco. Ser receptivo e, portanto, vulnerável é uma condição necessária para uma autêntica vida humana. Ela não é algo ruim, mas sim necessária e que possibilita o autêntico desenvolvimento da vida humana no encontro com os outros. O problema é quando ela é explorada.

As pessoas entram nesses grupos manipuladores porque elas são enganadas. Eles não aparentam ser destrutivos. Especialmente dentro do contexto religioso eles apresentam muitos benefícios, frutos, além de gozarem de uma imunidade porque ninguém pensa que um grupo religioso pode ser abusivo e adoecer os seus membros. A maioria das pessoas que ingressam nesses grupos são de boa vontade, pessoas buscando a santidade, um bom relacionamento com Deus, uma comunidade para se sentir parte, um sentido para a vida, uma missão para desenvolver seus talentos, cansadas de como o mundo está vazio e deprimente, com desejo de fazer parte de uma mudança na sociedade, entre outras motivações que também são os atrativos em grupos saudáveis.

As pessoas são seduzidas através de love bombing, um mecanismo psicológico bem descrito onde o manipulador enche a vítima de atenção, carinho fazendo com que ela se sinta especial e pertencente a algo. Além disso, o grupo faz promessas de salvação, soluções mágicas, mostra-se como detentor de conhecimento, de que estar ali vai ajudar essas pessoas e aos de fora e fazem com que a pessoa se sinta segura, protegida e então ela abaixe suas defesas pessoais. É como uma fase de paixão onde há muita conexão afetiva, intensidade, ilusão e cegueira.

Grupos manipuladores estão interessados em pessoas que possam contribuir com a obra. Que sejam produtivos e submissos. Eles não querem cuidar de pessoas, eles querem se servir delas. Obviamente lideranças com traços psicopatológicos como narcisistas, psicopatias, borderlines entre outros, são pessoas que têm uma facilidade maior em identificar vulnerabilidades, seduzir as pessoas e se aproveitar delas para seus interesses (que podem ser financeiros ou simplesmente afetivos e egóicos). Assim como os charlatães, até mesmo estudam sobre formas de manipular as pessoas. Mas em geral, nos grupos manipuladores vamos encontrar pessoas engajadas com uma causa aparentemente boa dando testemunho de como essa obra mudou a sua vida e influenciando outras a ingressarem, muitas vezes tendo sido ensinadas pelo líder a como aliciar ou replicar as ferramentas desse sistema abusivo. 

No livro ‘Escapando del labirinto del abuso espiritual’, a autora Lisa Oakley nos traz uma hipótese que também é parcialmente satisfatória. Ela escreve que quando uma pessoa experimentou durante a sua infância e adolescência um ambiente de controle e coação, ela fica adaptada a este estilo de vida e relacionamento com autoridades. Dessa forma, inconscientemente quando encontra este ambiente que oferece todas as respostas, que toma decisões por ela, que não aceita questionamentos, que possui rigidez e regras sem compreensão lógica, que pune e castiga, enfim, um ambiente de autoritarismo e obediência cega, ela se sente confortável. 2

Esses são alguns dos motivos que levam tantas vítimas a ingressar nesses sistemas perversos. Engana-se quem pensa que jamais seria vítima de abuso relacionado à fé. Não há um perfil ideal para uma vítima. Qualquer pessoa pode ser enganada, manipulada e explorada em seu ambiente de espiritualidade. A maioria das vítimas só se dá conta do que passou quando a situação já está insustentável.

3) Características das derivas sectárias

Mesmo dentro da Igreja Católica nos deparamos com grupos com funcionamento sectário. O termo ‘desvios sectários’ foi proposto pelo prior da Grande Cartuxa, Dom Dysmas de Lassus, em seu livro ‘Los riesgos de la vida religiosa’.3 Este livro consagrou-se como um clássico devido à profundidade e à novidade que o autor discorre em sua obra, especialmente através do amplo trabalho de estudo e o acompanhamento das vítimas que o fundamenta. 

Muitos destes grupos, no contexto católico, possuem aprovação oficial da Igreja. Dessa forma não são em si mesmos associações rebeldes.4 São grupos de pessoas, seja de fiéis leigos ou de religiosos, que embora existam dentro do âmbito católico, apresentam o seu funcionamento com um padrão sectário. Podem ser ordens, movimentos, grupos, comunidades, paróquias, institutos, associações, escolas, congregações, ligados a paróquias, dioceses ou independentes. 

Essas comunidades apresentam problemas significativos na estrutura do grupo que possui um padrão disfuncional. A forma de atuar e de se organizar segue os mecanismos de funcionamento de uma seita. Todo o organismo comunitário replica e mantém este padrão. A própria engrenagem institucional está corrompida, doente e problemática, bem como a forma de se relacionar entre os membros. Inevitavelmente esses grupos sofrem de uma interpretação errônea a respeito de valores como obediência, respeito, autoridade, sofrimento, consciência, afetividade e acabam perpetuando um padrão abusivo e manipulador no modo de agir do grupo. 

Algumas das características comuns nestes grupos são a idolatria do fundador ou lideranças, considerando-as inerrantes e com poder absoluto (como se fossem o próprio Deus e decidindo quase tudo sobre a vida das vítimas). A presença de uma estrutura piramidal, onde os membros são desencorajados a nutrirem relações de amizade e abertura com os membros, sendo induzidos a se relacionarem mais profundamente apenas com as autoridades. O isolamento, onde aos poucos os membros passam a se relacionar apenas com as pessoas do próprio grupo e se isolam e alienam do mundo ao redor (de fora). A presença de uma uniformidade, onde os membros são reprogramados através de um molde de comportamento e pensamento e onde as críticas, dúvidas e diferenças são penalizadas. Um sistema lógico fechado que não aceita argumentos ou pensamentos diferentes, nem dúvidas ou questionamentos. Há a presença de elitismo (o grupo se acha o melhor e o único possuidor da verdade) e desobediência para com as outras autoridades da Igreja, como a Santa Sé, ao Bispo local. Há inúmeras manipulações psicológicas envolvidas. Os membros que saem do grupo são difamados e culpabilizados. Explicarei melhor essas e outras características em um texto vindouro.

4) Consequências para as vítimas

Alguns sintomas que as vítimas de abuso em contexto religioso ou espiritual podem apresentar incluem: confusão mental, dificuldade em tomar decisões e pensar por si mesmo, falta de sentido ou direção na vida, baixa autoestima, ansiedade de estar no mundo, ataques de pânico, medo da condenação, depressão, pensamentos suicidas, distúrbios do sono e alimentares, abuso de substâncias, pesadelos, perfeccionismo, desconforto com a sexualidade, imagem corporal negativa, problemas de controle de impulso, dificuldade de desfrutar o prazer ou estar presente aqui e agora, raiva, amargura, traição, culpa, sofrimento e perda, dificuldade em expressar emoções, ruptura da rede familiar e social, solidão, problemas relacionados com a sociedade e questões de relacionamento pessoal. Perfeccionismo compulsivo, crise de fé ou desilusão com a espiritualidade; abandono da religião; sentimentos constantes de vergonha ou culpa e hipervigilância. Ataques de pânico e uma profunda apatia e desconexão consigo mesmo e com o mundo ao redor também costumam estar presentes. Dificuldade em confiar nos outros; sentimentos generalizados de desesperança, especialmente em combinação com culpa, bem como culpar a si mesmo por todos os aspectos negativos da vida; depressão; comprometimento da identidade pessoal.5 6

As vítimas de abusos nesse contexto acabam se sentindo completamente desamparadas por não saberem dar nome ao que passaram e por não encontrarem algum espaço saudável onde possam relatar sua trágica experiência e receberem ajuda e reparação. E os perpetradores aproveitam da segurança de suas posições para cometerem abusos e saírem ilesos.

Como povo de Deus ainda guardamos um silêncio incrédulo a respeito desse tema. Não é mais possível se esconder atrás da ignorância ou espiritualizar o fenômeno do abuso, nem argumentar que são sempre fatos periféricos. O silêncio é cúmplice. Uma das maiores dificuldades das vítimas é encontrar acolhimento e compreensão especializada no tema. Como os abusos na Igreja Católica apresentam um contexto específico e afetam as vítimas de forma particular, tanto a escuta quanto o acompanhamento espiritual e psicológico precisam compreender as dinâmicas envolvidas. Um dos grandes riscos é minimizar o sofrimento ou desacreditar da vítima, além de poder conduzi-la a um estado de revolta contra Deus e a Igreja em vez de uma reconciliação e superação.

Referências

  1. https://rayhannezago.com/ja-nao-vos-chamo-servos-abusos-de-poder-e-consciencia-na-vida-consagrada/[]
  2. Escapando del labirinto del abuso espiritual’, Lisa Oakley[]
  3. https://lojacarmelitasmensageiras.com/collections/livros/products/livro-um-amor-ferido-abusos-na-vida-consagrada-e-caminhos-para-cura[]
  4. Órdenes y Movimientos católicos acusados de ser Derivas Sectarias (cult-like): ¿Sectas Intraeclesiales?, J. Paul Lennon[]
  5. Leaving the fold, Marllene Winell[]
  6. LA FORMAZIONE INIZIALE IN TEMPO DI ABUSI, PADRE AMEDEO CENCINI[]

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