A Páscoa une liturgia, tradição e vida familiar, revelando-se como o grande banquete da família de Deus e o ápice do ano litúrgico.
A Páscoa une liturgia, tradição e vida familiar, revelando-se como o grande banquete da família de Deus e o ápice do ano litúrgico.
A Páscoa não goza, entre nós, do mesmo status que o Natal. No ano litúrgico, tem a precedência, é o seu ponto alto. Na vida familiar, eu acho que deve estar em quarto lugar, pois perde para o Natal, o dia das mães e o dia dos pais… O Natal é mais palpável: os seus símbolos abundam nas ruas já em outubro por conta de sua mercantilização voraz. Claro, a Páscoa também tem os seus símbolos e com livre exposição pública: ovos e coelhos. Duas coisas que, na ordem natural, não tem qualquer correlação (coelhos não põem ovos!). Na ordem do simbólico-religioso, se conectados ao evento máximo da ressurreição, recuperam o seu sentido. Sem tal referência, perdem toda a expressividade.
Um menino na manjedoura é bem mais fácil de representar e não exige grande explicação prévia para dele sacarmos algum significado, ao contrário da representação do Homem-Deus ressuscitado, glorioso. A concepção virginal e a encarnação são temas complicadíssimos, mas estão ali, descritos na Sagrada Escritura com grande plasticidade: o anjo aparece a Maria, aparece e fala em sonho a José… O nascimento na gruta. Anjos no céu, pastores no campo, magos a caminho vindos de muito longe com presentes caros. Temos simultaneamente um evento discreto (visto e vivido por poucos), mas muito colorido, intenso e cheio de movimento.
A Páscoa nos parece mais abstrata, menos tangível: já vimos muitos nascimentos, mas nenhuma ressurreição. O Natal pressupõe um parto, animais, uma manjedoura; a Páscoa pressupõe Paixão, dor, instrumentos de tortura máxima como a cruz. O mais visível da Páscoa é excruciante, doído. Os panos envoltos em Jesus são trocados pelo sudário. A criança Jesus – ainda envolta em completo mistério – é coberta de panos; Jesus adulto – já manifesto como Messias, como Rei, como Filho de Deus! – é despido de suas vestes. (Natal e Páscoa: duas grandes dores convertidas em vida!).
O Natal é um nascimento celebrado, em âmbito doméstico, por uma ceia com Peru, arroz com passas, rabanadas etc.; a Páscoa é uma ceia, em sua origem, mas como é celebrada em casa? Como ceia? Tem um prato característico? Uns poucos que eu conheço comem um cordeiro… Mas isso não é popular. Então, como podemos assimilar e aceitar a páscoa como celebração familiar, que deve orientar e dar o centro da nossa vida cristã?
O Natal nos aparece como algo profundamente familiar – como eu já aludi na minha reflexão sobre os pastores. As crianças sonham com ele. Os pais o preparam com cuidado e antecipação. A Páscoa parece algo muito mais conectado à liturgia, mais da sacristia e do altar do que da sala de jantar – como um grande acontecimento passado sem expectadores e que a Igreja “dramatiza” e visibiliza presentificando-o. Se é difícil de imaginá-lo acontecendo, mais difícil ainda é se sentir participante dele, interessado nele, envolvido no seu universo simbólico-sacramental, que requer uma iniciação, uma mistagogia, da qual somos quase todos deficitários.
O Natal, outrossim, tem menos símbolos estritamente litúrgicos. Presépio, pisca-piscas, bolas brilhantes, pinheiros, “personagens” de gesso: todos acréscimos piedosos, opcionais e quase didáticos ao espaço litúrgico. A liturgia natalina, em si, é “normal”, similar a qualquer outra dominical. A liturgia pascal, ao contrário, na tentativa de fazer brotar algo do invisível e quase indizível da Ressurreição, dá-nos uma profusão de símbolos: no domingo de Ramos, com procissões na rua, cantos sobre o reinado de Jesus, temos pessoas com ramos nas mãos; na quinta-feira santa, temos a Santa Missa com o lava-pés e a instituição da Eucaristia, seguida de uma solene adoração ao Santíssimo Sacramento com incenso e o recolhimento da hóstia alvíssima num sacrário à parte; na sexta-feira da Paixão, um clímax de tensão, de tristeza, de recolhimento: a Igreja se reveste de vermelho, com altares desnudados, cruzes cobertas e descobertas… padres prostrados no chão e descalços enquanto a Igreja reza em silêncio… uma procissão para beijos de adoração e, novamente, altares desnudados. No Sábado Santo, primeiro tudo silencia; é vigília, velório; depois, tudo vibra. Há expectativa, coração pulsante. A noite cai. Há o jogo de escuridão e luz. A assembleia se reúne do lado de fora da igreja, ao redor de uma fogueira. Tudo isso tem um quê de ancestralidade, de antiguidade. Estamos ali, como as tribos de Israel em peregrinação à terra prometida, sob o céu, o seu único teto permanente, ao redor de uma fogueira idêntica àquela que lhes dava o calor para vencer o frio noturno do deserto.
Entramos na igreja com o círio, feito de cera de abelha (ou deveria ser feito). O padre ou o diácono brada: “Eis a Luz de Cristo! ”. Na terceira vez, essa chama já tem tomado toda a igreja; é o fim da escuridão. Do ambão o ministro sagrado canta o precônio pascal, cheio de exultação. Ele se coloca como um levita da nova aliança: “Ele [Deus], que por seus dons nada reclama, quis que entre os seus levitas me encontrasse: para cantar a glória desta chama, de sua luz um raio me traspasse”1. Aquele que canta acrescenta um novo dado sobre o fogo que poderia nos escapar se ficarmos só com a sua função de aquecimento. O fogo é uma teofania.O precônio deixa bem claro que nós vivemos novamente o Êxodo, mas o da Morte para a Vida Ressurrecta. O Exsultet dirá que o Círio representa a coluna de fogo do Êxodo (cf. Ex 13, 21-22): isso nos ensina que aquele fogo lá fora da igreja era memória da presença de Deus no deserto, a Shekinah, a “glória de Deus”. O ministro sacro prossegue: “Ó noite em que a coluna luminosa, as trevas do pecado dissipou, e aos que creem no Cristo em toda a terra em novo povo eleito congregou!”2. O fogo novo, transmitido ao Círio, era anúncio de que a coluna de fogo do AT se converteu no círio da liturgia; de que a Shekinah do NT, da Nova Páscoa, é Jesus. O Círio é incensado: agora temos a coluna de fogo e a coluna de nuvem juntas… Está tudo ali, diante dos nossos olhos. No Natal, com o Apóstolo João, podemos dizer com afeto, como que abraçando o Menino Jesus: “E o Verbo se fez carne e habitou entre nós”; na Páscoa podemos completar com perfeição esse versículo, bradando com solenidade e estupor: “e nós vimos a sua glória, glória que ele tem junto ao Pai como Filho único, cheio de graça e de verdade” (Jo 1, 14).
Até aqui eu ressaltei o lado litúrgico e eclesial da Páscoa. Mas não nos esqueçamos que ela está radicalmente ligada à família. Esse é o meu ponto aqui. Nas suas origens agropastoris, a Páscoa estava conectada ao trabalho e à natureza. Era uma festa de nômades, que logo sairiam em peregrinação com os seus rebanhos(Joseph Ratzinger, Olhar para o Traspassado (Tubarão-Rio Bonito: Escola Ratzinger-Benedictus, p. 120.)): na primavera era preciso mudar de pastagens. Na primavera havia a festa dos ázimos, no início da colheita da cevada; depois, a oferta dos primeiros frutos, dos primeiros feixes.3
O Êxodo mudou tudo. “A Páscoa dominará todo o horizonte do culto de Israel”4. Agora ela seria historicizada: não falará dos ciclos da natureza, mas do que Deus fez pelo seu povo. No êxodo do Egito, tornou-se uma ceia familiar apressada, na iminência de uma fuga, comida em pé, presidida pelo pai de família. Todos estavam em vestes de peregrinos (cf. Ex 12, 11), mas desta vez a meta é a libertação e a liberdade permanente, que se realizará na terra onde mana leite e mel (cf. Ex 33, 3).
No tempo de Jesus, era celebrada ao redor de uma mesa festiva, com todos sentados. Pressupunha alguma paz e muita alegria. Lá havia sempre o sacrifício no templo e um banquete sacrificial de ação de graças em família. Templo e casa; sacerdócio levítico e família (e o “sacerdócio doméstico”, vamos dizer assim, por analogia, do pai). Brant Pitre acentua isso muito bem ao afirmar que o clímax da Páscoa era o sacrifício do cordeiro no Templo, no derramamento do seu sangue, realizado pelos sacerdotes de então. Só depois era levado para casa, crucificado: atravessado a partir da boca por um bastão de madeira e de ombro a ombro por um espeto de madeira de romã; assim ele poderia ser pendurado e poderia ser retirada a sua pele.5 Depois de assado, devia ser comido. Era uma refeição autêntica.
Tudo se desloca do altar do templo para a mesa da casa. Ou seja, a ceia pascal “não era uma refeição comum, mas um ritual sagrado de família. Apenas membros da aliança da família de Deus estavam aptos a participar”.6 O próprio Ratzinger nos recordava: “Jesus também celebrou a Páscoa seguindo essa prescrição: em casa, com a Sua família; ou seja, com os apóstolos, que haviam se tornado a Sua nova família”.7 Ratzinger recorda que na época de Jesus os peregrinos que iam a Jerusalém podiam formar companhias de peregrinação (chaburot), que se tornavam uma outra família naquele momento. Agora nós, ao redor da Eucaristia, celebramos na intimidade essa ceia: “Nós somos Sua chabura, Sua família, que Ele formou a partir de sua companhia de peregrinação…”.8
Ratzinger mesmo dá o ponto central do meu argumento: “Essa celebração deveria, também hoje, voltar a ser uma celebração da família, verdadeira muralha de proteção da Criação e da humanidade”.9 Devemos sentir, por um lado, que a celebração na Igreja é uma celebração familiar – da família de Deus, que é a Igreja. Precisamos saber que a Missa que ali acontece é um banquete sacrificial do qual não participam estranhos; estrangeiros, sim, mas não estranhos. Como consequência disso, precisamos saber que em nossa casa a ceia pascal – espero que todos possamos realizar uma – tem conexão direta com o templo, com a Igreja, com a liturgia. Na ceia, por mais simples que seja, realizamos a nossa liturgia doméstica. Trazemos a Páscoa para dentro de casa. Por isso, ainda temos muito a aprender com a liturgia judaica, dentro da qual Jesus instituiu a sua Páscoa, pois “[o] primeiro lugar sagrado da liturgia hebraica é a casa, tida como ‘um santuário’”. “Não se trata de exagero poético. Para o judeu a casa era realmente um templo. A mesa da família era considerada um altar; as refeições como um rito sagrado; e os pais como sacerdotes celebrantes. O culto familiar acompanhava muitas ocupações cotidianas e transformava as relações biológicas e sociais do grupo familiar em uma realeza espiritual”10. E eram três as principais celebrações domésticas, no santuário familiar: a refeição (cotidiana); o shabbat-sábado (semanal) e a pesah-páscoa (anual) 11. O séder12 era “uma solene refeição sacrificial pascal”13. “Esta festa familiar, celebrada pelo escolhido como um todo unânime, tinha todas as qualidades para poder ser transformada na grande festa da comunidade cristã…”14. E assim foi feito.
Portanto, o nosso séder principal acontece na Igreja, na Eucaristia. Mas porque nós fomos chamados, como família, a fazer parte da família maior de Deus, que é a Igreja. Somos parte, Igreja doméstica.
Como vimos, natureza, trabalho (até as abelhas operárias tiveram que trabalhar para termos o círio), sacrifício no templo, ceia familiar, tudo está interconectado na páscoa. Na Páscoa, culto público e privado se encontram. Portanto, o que eu quero deixar claro, transparente, transfigurado, é que na Páscoa Deus alinhavou tudo: as festas imemoriais agropastoris, nas quais homens e mulheres apresentavam ao Senhor Deus as primícias, os primeiros frutos de suas plantações e os primeiros filhotes dos seus rebanhos ao Senhor Deus (ou a outra figura divina); depois, essa festa natural, converteu-se numa festa histórica e salvífica, a Páscoa do Êxodo dos hebreus – guiados por Moisés, profeta de Javé – segunda peça dessa costura: o dom primeiro agora é a liberdade, é a condução operada por Deus, com prodígios, portentos, com mão forte e braço estendido, do seu povo em uma condição indigna, rebaixada, escrava para uma terra prometida de liberdade: “a festa da primavera torna-se, para estes escravos exilados no Egito, a festa da liberdade”, “primavera da história”15. A Páscoa foi coroada com o evento divisor da história do povo da Aliança: a maior potência do mundo é humilhada; os deuses egípcios nada podem contra Javé pois são falsos; a sarça ardente começou a incendiar o coração daquele que fora menino ameaçado, convertido em príncipe, que se fez assassino e, no fim – não o grande fim – em pastor acomodado, casado, quieto, escondido, que Javé levou a clamar, gaguejando, que o Deus dos hebreus lhes pedia que celebrassem a Páscoa fora do Egito, no deserto e que nem mesmo o Faraó poderia impedir. A Páscoa é o pretexto e o fim de tudo. Deus queria que as famílias do seu povo comessem o cordeiro, que o sangue desse cordeiro servisse de sacramental que lhes afastasse do flagelo da morte, antecipando como alegoria o sangue salvador de Seu Filho. Javé pensou a Páscoa para um povo eleito feito de pais, mães e filhos que deveriam conservar perenemente a sua memória. Mas Ele, como Deus, pensou longe. Seu Filho, Aquele que devia vir, depois de celebrar por décadas a Páscoa do seu povo, toma-a e renova-a; eleva-a. Agora, é a sua Páscoa. Nela, Ele se dá como Cordeiro. Nela, todos – prefigurados pelos apóstolos –, sim, todos são chamados à sua nova família, a Igreja. No fim das contas, Deus tomou o trabalho de pastores e agricultores do passado para fazer dele a festa de um povo liberto, o seu povo escolhido, salvo por Ele, para convertê-lo no banquete supremo de uma família alargada até os confins de toda terra, pois o cordeiro que lhe é oferecido é imenso, é grande e infinitamente suficiente para todos; é poderoso, é digno de honra, glória e poder; é o Seu Filho, cujo Corpo inclui todo aquele que nele crer e for batizado e, por isso, chamado a ser comensal de Deus na Eucaristia.
A Páscoa condensa tudo: sacrifício e ceia, liturgia pública e liturgia doméstica, Igreja e família. A tímida luz do Círio é o grande sol de um mundo que insiste em viver na noite.
É professor, palestrante, Dr. em Sociologia. Pós-Doc. em Teologia e autor coluna "Liturgia e Trabalho: pistas para uma espiritualidade laical".
A Páscoa não goza, entre nós, do mesmo status que o Natal. No ano litúrgico, tem a precedência, é o seu ponto alto. Na vida familiar, eu acho que deve estar em quarto lugar, pois perde para o Natal, o dia das mães e o dia dos pais… O Natal é mais palpável: os seus símbolos abundam nas ruas já em outubro por conta de sua mercantilização voraz. Claro, a Páscoa também tem os seus símbolos e com livre exposição pública: ovos e coelhos. Duas coisas que, na ordem natural, não tem qualquer correlação (coelhos não põem ovos!). Na ordem do simbólico-religioso, se conectados ao evento máximo da ressurreição, recuperam o seu sentido. Sem tal referência, perdem toda a expressividade.
Um menino na manjedoura é bem mais fácil de representar e não exige grande explicação prévia para dele sacarmos algum significado, ao contrário da representação do Homem-Deus ressuscitado, glorioso. A concepção virginal e a encarnação são temas complicadíssimos, mas estão ali, descritos na Sagrada Escritura com grande plasticidade: o anjo aparece a Maria, aparece e fala em sonho a José… O nascimento na gruta. Anjos no céu, pastores no campo, magos a caminho vindos de muito longe com presentes caros. Temos simultaneamente um evento discreto (visto e vivido por poucos), mas muito colorido, intenso e cheio de movimento.
A Páscoa nos parece mais abstrata, menos tangível: já vimos muitos nascimentos, mas nenhuma ressurreição. O Natal pressupõe um parto, animais, uma manjedoura; a Páscoa pressupõe Paixão, dor, instrumentos de tortura máxima como a cruz. O mais visível da Páscoa é excruciante, doído. Os panos envoltos em Jesus são trocados pelo sudário. A criança Jesus – ainda envolta em completo mistério – é coberta de panos; Jesus adulto – já manifesto como Messias, como Rei, como Filho de Deus! – é despido de suas vestes. (Natal e Páscoa: duas grandes dores convertidas em vida!).
O Natal é um nascimento celebrado, em âmbito doméstico, por uma ceia com Peru, arroz com passas, rabanadas etc.; a Páscoa é uma ceia, em sua origem, mas como é celebrada em casa? Como ceia? Tem um prato característico? Uns poucos que eu conheço comem um cordeiro… Mas isso não é popular. Então, como podemos assimilar e aceitar a páscoa como celebração familiar, que deve orientar e dar o centro da nossa vida cristã?
O Natal nos aparece como algo profundamente familiar – como eu já aludi na minha reflexão sobre os pastores. As crianças sonham com ele. Os pais o preparam com cuidado e antecipação. A Páscoa parece algo muito mais conectado à liturgia, mais da sacristia e do altar do que da sala de jantar – como um grande acontecimento passado sem expectadores e que a Igreja “dramatiza” e visibiliza presentificando-o. Se é difícil de imaginá-lo acontecendo, mais difícil ainda é se sentir participante dele, interessado nele, envolvido no seu universo simbólico-sacramental, que requer uma iniciação, uma mistagogia, da qual somos quase todos deficitários.
O Natal, outrossim, tem menos símbolos estritamente litúrgicos. Presépio, pisca-piscas, bolas brilhantes, pinheiros, “personagens” de gesso: todos acréscimos piedosos, opcionais e quase didáticos ao espaço litúrgico. A liturgia natalina, em si, é “normal”, similar a qualquer outra dominical. A liturgia pascal, ao contrário, na tentativa de fazer brotar algo do invisível e quase indizível da Ressurreição, dá-nos uma profusão de símbolos: no domingo de Ramos, com procissões na rua, cantos sobre o reinado de Jesus, temos pessoas com ramos nas mãos; na quinta-feira santa, temos a Santa Missa com o lava-pés e a instituição da Eucaristia, seguida de uma solene adoração ao Santíssimo Sacramento com incenso e o recolhimento da hóstia alvíssima num sacrário à parte; na sexta-feira da Paixão, um clímax de tensão, de tristeza, de recolhimento: a Igreja se reveste de vermelho, com altares desnudados, cruzes cobertas e descobertas… padres prostrados no chão e descalços enquanto a Igreja reza em silêncio… uma procissão para beijos de adoração e, novamente, altares desnudados. No Sábado Santo, primeiro tudo silencia; é vigília, velório; depois, tudo vibra. Há expectativa, coração pulsante. A noite cai. Há o jogo de escuridão e luz. A assembleia se reúne do lado de fora da igreja, ao redor de uma fogueira. Tudo isso tem um quê de ancestralidade, de antiguidade. Estamos ali, como as tribos de Israel em peregrinação à terra prometida, sob o céu, o seu único teto permanente, ao redor de uma fogueira idêntica àquela que lhes dava o calor para vencer o frio noturno do deserto.
Entramos na igreja com o círio, feito de cera de abelha (ou deveria ser feito). O padre ou o diácono brada: “Eis a Luz de Cristo! ”. Na terceira vez, essa chama já tem tomado toda a igreja; é o fim da escuridão. Do ambão o ministro sagrado canta o precônio pascal, cheio de exultação. Ele se coloca como um levita da nova aliança: “Ele [Deus], que por seus dons nada reclama, quis que entre os seus levitas me encontrasse: para cantar a glória desta chama, de sua luz um raio me traspasse”1. Aquele que canta acrescenta um novo dado sobre o fogo que poderia nos escapar se ficarmos só com a sua função de aquecimento. O fogo é uma teofania.O precônio deixa bem claro que nós vivemos novamente o Êxodo, mas o da Morte para a Vida Ressurrecta. O Exsultet dirá que o Círio representa a coluna de fogo do Êxodo (cf. Ex 13, 21-22): isso nos ensina que aquele fogo lá fora da igreja era memória da presença de Deus no deserto, a Shekinah, a “glória de Deus”. O ministro sacro prossegue: “Ó noite em que a coluna luminosa, as trevas do pecado dissipou, e aos que creem no Cristo em toda a terra em novo povo eleito congregou!”2. O fogo novo, transmitido ao Círio, era anúncio de que a coluna de fogo do AT se converteu no círio da liturgia; de que a Shekinah do NT, da Nova Páscoa, é Jesus. O Círio é incensado: agora temos a coluna de fogo e a coluna de nuvem juntas… Está tudo ali, diante dos nossos olhos. No Natal, com o Apóstolo João, podemos dizer com afeto, como que abraçando o Menino Jesus: “E o Verbo se fez carne e habitou entre nós”; na Páscoa podemos completar com perfeição esse versículo, bradando com solenidade e estupor: “e nós vimos a sua glória, glória que ele tem junto ao Pai como Filho único, cheio de graça e de verdade” (Jo 1, 14).
Até aqui eu ressaltei o lado litúrgico e eclesial da Páscoa. Mas não nos esqueçamos que ela está radicalmente ligada à família. Esse é o meu ponto aqui. Nas suas origens agropastoris, a Páscoa estava conectada ao trabalho e à natureza. Era uma festa de nômades, que logo sairiam em peregrinação com os seus rebanhos(Joseph Ratzinger, Olhar para o Traspassado (Tubarão-Rio Bonito: Escola Ratzinger-Benedictus, p. 120.)): na primavera era preciso mudar de pastagens. Na primavera havia a festa dos ázimos, no início da colheita da cevada; depois, a oferta dos primeiros frutos, dos primeiros feixes.3
O Êxodo mudou tudo. “A Páscoa dominará todo o horizonte do culto de Israel”4. Agora ela seria historicizada: não falará dos ciclos da natureza, mas do que Deus fez pelo seu povo. No êxodo do Egito, tornou-se uma ceia familiar apressada, na iminência de uma fuga, comida em pé, presidida pelo pai de família. Todos estavam em vestes de peregrinos (cf. Ex 12, 11), mas desta vez a meta é a libertação e a liberdade permanente, que se realizará na terra onde mana leite e mel (cf. Ex 33, 3).
No tempo de Jesus, era celebrada ao redor de uma mesa festiva, com todos sentados. Pressupunha alguma paz e muita alegria. Lá havia sempre o sacrifício no templo e um banquete sacrificial de ação de graças em família. Templo e casa; sacerdócio levítico e família (e o “sacerdócio doméstico”, vamos dizer assim, por analogia, do pai). Brant Pitre acentua isso muito bem ao afirmar que o clímax da Páscoa era o sacrifício do cordeiro no Templo, no derramamento do seu sangue, realizado pelos sacerdotes de então. Só depois era levado para casa, crucificado: atravessado a partir da boca por um bastão de madeira e de ombro a ombro por um espeto de madeira de romã; assim ele poderia ser pendurado e poderia ser retirada a sua pele.5 Depois de assado, devia ser comido. Era uma refeição autêntica.
Tudo se desloca do altar do templo para a mesa da casa. Ou seja, a ceia pascal “não era uma refeição comum, mas um ritual sagrado de família. Apenas membros da aliança da família de Deus estavam aptos a participar”.6 O próprio Ratzinger nos recordava: “Jesus também celebrou a Páscoa seguindo essa prescrição: em casa, com a Sua família; ou seja, com os apóstolos, que haviam se tornado a Sua nova família”.7 Ratzinger recorda que na época de Jesus os peregrinos que iam a Jerusalém podiam formar companhias de peregrinação (chaburot), que se tornavam uma outra família naquele momento. Agora nós, ao redor da Eucaristia, celebramos na intimidade essa ceia: “Nós somos Sua chabura, Sua família, que Ele formou a partir de sua companhia de peregrinação…”.8
Ratzinger mesmo dá o ponto central do meu argumento: “Essa celebração deveria, também hoje, voltar a ser uma celebração da família, verdadeira muralha de proteção da Criação e da humanidade”.9 Devemos sentir, por um lado, que a celebração na Igreja é uma celebração familiar – da família de Deus, que é a Igreja. Precisamos saber que a Missa que ali acontece é um banquete sacrificial do qual não participam estranhos; estrangeiros, sim, mas não estranhos. Como consequência disso, precisamos saber que em nossa casa a ceia pascal – espero que todos possamos realizar uma – tem conexão direta com o templo, com a Igreja, com a liturgia. Na ceia, por mais simples que seja, realizamos a nossa liturgia doméstica. Trazemos a Páscoa para dentro de casa. Por isso, ainda temos muito a aprender com a liturgia judaica, dentro da qual Jesus instituiu a sua Páscoa, pois “[o] primeiro lugar sagrado da liturgia hebraica é a casa, tida como ‘um santuário’”. “Não se trata de exagero poético. Para o judeu a casa era realmente um templo. A mesa da família era considerada um altar; as refeições como um rito sagrado; e os pais como sacerdotes celebrantes. O culto familiar acompanhava muitas ocupações cotidianas e transformava as relações biológicas e sociais do grupo familiar em uma realeza espiritual”10. E eram três as principais celebrações domésticas, no santuário familiar: a refeição (cotidiana); o shabbat-sábado (semanal) e a pesah-páscoa (anual) 11. O séder12 era “uma solene refeição sacrificial pascal”13. “Esta festa familiar, celebrada pelo escolhido como um todo unânime, tinha todas as qualidades para poder ser transformada na grande festa da comunidade cristã…”14. E assim foi feito.
Portanto, o nosso séder principal acontece na Igreja, na Eucaristia. Mas porque nós fomos chamados, como família, a fazer parte da família maior de Deus, que é a Igreja. Somos parte, Igreja doméstica.
Como vimos, natureza, trabalho (até as abelhas operárias tiveram que trabalhar para termos o círio), sacrifício no templo, ceia familiar, tudo está interconectado na páscoa. Na Páscoa, culto público e privado se encontram. Portanto, o que eu quero deixar claro, transparente, transfigurado, é que na Páscoa Deus alinhavou tudo: as festas imemoriais agropastoris, nas quais homens e mulheres apresentavam ao Senhor Deus as primícias, os primeiros frutos de suas plantações e os primeiros filhotes dos seus rebanhos ao Senhor Deus (ou a outra figura divina); depois, essa festa natural, converteu-se numa festa histórica e salvífica, a Páscoa do Êxodo dos hebreus – guiados por Moisés, profeta de Javé – segunda peça dessa costura: o dom primeiro agora é a liberdade, é a condução operada por Deus, com prodígios, portentos, com mão forte e braço estendido, do seu povo em uma condição indigna, rebaixada, escrava para uma terra prometida de liberdade: “a festa da primavera torna-se, para estes escravos exilados no Egito, a festa da liberdade”, “primavera da história”15. A Páscoa foi coroada com o evento divisor da história do povo da Aliança: a maior potência do mundo é humilhada; os deuses egípcios nada podem contra Javé pois são falsos; a sarça ardente começou a incendiar o coração daquele que fora menino ameaçado, convertido em príncipe, que se fez assassino e, no fim – não o grande fim – em pastor acomodado, casado, quieto, escondido, que Javé levou a clamar, gaguejando, que o Deus dos hebreus lhes pedia que celebrassem a Páscoa fora do Egito, no deserto e que nem mesmo o Faraó poderia impedir. A Páscoa é o pretexto e o fim de tudo. Deus queria que as famílias do seu povo comessem o cordeiro, que o sangue desse cordeiro servisse de sacramental que lhes afastasse do flagelo da morte, antecipando como alegoria o sangue salvador de Seu Filho. Javé pensou a Páscoa para um povo eleito feito de pais, mães e filhos que deveriam conservar perenemente a sua memória. Mas Ele, como Deus, pensou longe. Seu Filho, Aquele que devia vir, depois de celebrar por décadas a Páscoa do seu povo, toma-a e renova-a; eleva-a. Agora, é a sua Páscoa. Nela, Ele se dá como Cordeiro. Nela, todos – prefigurados pelos apóstolos –, sim, todos são chamados à sua nova família, a Igreja. No fim das contas, Deus tomou o trabalho de pastores e agricultores do passado para fazer dele a festa de um povo liberto, o seu povo escolhido, salvo por Ele, para convertê-lo no banquete supremo de uma família alargada até os confins de toda terra, pois o cordeiro que lhe é oferecido é imenso, é grande e infinitamente suficiente para todos; é poderoso, é digno de honra, glória e poder; é o Seu Filho, cujo Corpo inclui todo aquele que nele crer e for batizado e, por isso, chamado a ser comensal de Deus na Eucaristia.
A Páscoa condensa tudo: sacrifício e ceia, liturgia pública e liturgia doméstica, Igreja e família. A tímida luz do Círio é o grande sol de um mundo que insiste em viver na noite.