Colunistas

Santos de casa: as novenas na tradição, fé e cura espiritual

Conheça a tradição das novenas no Brasil, sua conexão com a fé popular, os santos mais venerados e suas raízes na cultura afro-brasileira.

Santos de casa: as novenas na tradição, fé e cura espiritual
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Santos de casa: as novenas na tradição, fé e cura espiritual

Conheça a tradição das novenas no Brasil, sua conexão com a fé popular, os santos mais venerados e suas raízes na cultura afro-brasileira.

Data da Publicação: 06/03/2025
Tempo de leitura:
Autor: Patricia Silva
Data da Publicação: 06/03/2025
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Autor: Patricia Silva

“A própria Vida se manifestou na carne, para que, nessa manifestação, aquilo que só podia ser visto com o coração fosse também visto com os olhos.” (Santo Agostinho de Hipona em “Reflexão patrística”)1

O Brasil, na posição de maior país católico do mundo, tem uma forte devoção a diversos santos católicos, que são venerados tanto nas igrejas quanto nas manifestações da religiosidade popular. As festas, procissões e novenas dedicadas a esses santos fazem parte do calendário cultural e religioso de muitas cidades brasileiras. É possível dizer que estes são os santos mais populares no nosso país: Nossa Senhora Aparecida, Nossa Senhora de Nazaré, Nossa Senhora do Rosário, São Sebastião, São Cosme e São Damião, Santa Bárbara, São José, São Jorge, São Francisco de Assis, Santo Antônio, São João Batista e São Pedro. Todos eles têm inúmeros registros de rezas, novenas e versos de devoção na cultura popular. 

São Cosme e São Damião, por exemplo, foram completamente absorvidos na cultura popular, que os associou com a distribuição familiar de doces em saquinhos de papel para crianças (essa distribuição acontece muitas vezes como pagamento de promessas feitas aos santos). A primeira igreja dedicada aos gêmeos, que eram médicos anárgiros de origem árabe e que viveram no século III, na região da atual Turquia, foi a Igreja Matriz dos Santos Cosme e Damião, erguida em 1530, em Igarassu, capitania de Pernambuco.2

As novenas fazem parte de uma rica tradição espiritual e cultural, especialmente presente em comunidades católicas e em regiões onde a religiosidade popular floresce de maneira espontânea e profunda. A prática expressa a fé, a devoção e a busca por cura e proteção, conectando o sagrado ao cotidiano das pessoas; as devoções intrinsecamente enlaçadas com as vidas humanas e demonstram uma das belezas do catolicismo.

Homem com as mãos no rosto

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Fotografia Religiosa/Renata Gabrielle (extraída de: https://idemais.com.br/noticias/nossa-senhora-aparecida-cubranos-com-seu-manto-de-amor/)

A palavra “novena” tem origem no latim novem, que significa “nove”. Essa tradição remonta aos primeiros cristãos, inspirados pelos nove dias que os apóstolos passaram em oração após a Ascensão de Jesus até a descida do Espírito Santo no Pentecostes. A novena é, portanto, uma prática devocional que consiste em nove dias consecutivos de orações, meditações, cânticos e rituais específicos, geralmente dedicados a Deus, à Virgem Maria ou a um santo particular.  Desde a Idade Média, as novenas são praticadas em vários momentos litúrgicos do calendário católico. No Brasil, a novena se integrou à vida religiosa desde o período colonial, antecedendo procissões e festas.3

As novenas podem ser realizadas para diversas intenções: pedidos de cura, superação de dificuldades, agradecimento por graças alcançadas ou preparação para festas religiosas, como o Natal e a Páscoa. Elas podem ser rezadas individualmente ou em comunidade e são fundamentadas nas liturgias de missas festivas da Igreja Católica. Os textos entoados vêm da Igreja, mas podem ser personalizados com decisões litúrgicas e melódicas familiares e rezas que reflitam as crenças locais sobre os santos.4

No contexto das devoções domiciliares em grupo, a novena pode não ser executada em nove noites:

Nas casas do Recôncavo, a novena dura uma só noite, não nove. Ou no dizer da rezadeira Dona Dé, “novena é nove noite, né?” Chama novena, mas não é né? (…) Supõe-se que o termo “novena”, no contexto familiar, teria vindo da recriação nos domicílios das novenas eclesiais, e é bem provável que, no passado, também nas residências as “novenas” durassem nove noites, da mesma forma que as trezenas e os tríduos domiciliares de Santo Antônio duram treze e três noites, respectivamente. Devido aos custos e à mão de obra necessária para realizar tantas noites consecutivas de reza, a “novena” talvez tenha sido reduzida, gradualmente, de nove noites para uma só, sem nunca ter perdido sua designação inicial.5

Mão de uma pessoa olhando para a câmera

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Imagem extraída de https://agora.folha.uol.com.br/sao-paulo/2019/05/benzedeiras-resistem-ao-tempo-e-a-modernidade-com-muita-fe.shtml

Michael Iyanaga, etnomusicólogo e professor associado de Música e Estudos Latino-Americanos no College of William & Mary, dedicou-se ao estudo das práticas religiosas afro-diaspóricas na Bahia, com ênfase nas novenas, denominando o catolicismo como religião afro-diaspórica.6 O pesquisador afirma que as evidências históricas insinuam que muitas práticas do catolicismo no Brasil são descendentes de vivências desenvolvidas primeiramente no catolicismo da África Central.7

Em seu livro Alegria é devoção: sambas, santos e novenas numa tradição afro-diaspórica da Bahia, Iyanaga apresenta uma análise detalhada das novenas enquanto eventos domésticos dedicados a santos padroeiros no Recôncavo Baiano, tais como São Bartolomeu, São Félix, Nossa Senhora do Rosário, Santa Bárbara e São Benedito. Há, por exemplo, inúmeros registros de rezas dedicadas a São Brás no repertório da cultura popular brasileira, tal como:

“São Brás, São Brás
Desafoga esse rapaz
Para frente e para trás.
São Brás, São Brás
Desafoga essa menina
Para baixo e para cima”8

Iyanaga aponta que qualquer novena tem um pré-requisito: alguém para conduzir a novena (também chamada de reza); essa tarefa é geralmente dada à pessoa popularmente conhecida como “rezadeira”:

A rezadeira é quase sempre mulher. Embora existam também rezadores, estes hoje são bem raros. A função da rezadeira é “puxar” ou “tirar” a reza. Para isso, ela precisa ter capacidade física para cantar toda a novena em voz alta. De fato, a qualidade da performance da rezadeira é, muitas vezes, avaliada de acordo com a força de sua voz; ela não pode cantar baixinho nem perder o fôlego jamais. É esperado que a rezadeira conduza as outras pessoas (…) A rezadeira pode ser qualquer pessoa: a dona da casa, uma parente, alguma vizinha, determinada amiga ou apenas uma conhecida. As rezadeiras geralmente não recebem pagamento por seu serviço (…).9

Durante sua pesquisa de doutoramento, entre 2008 e 2013, Iyanaga observou cerca de 40 celebrações no Recôncavo Baiano, principalmente nos municípios de Cachoeira e São Félix. Ele identificou que as novenas são eventos que refletem a rica herança religiosa afro-brasileira e argumenta que essas práticas religiosas são tradições que têm raízes no catolicismo praticado na África Central desde o final do século XV. Destaca que, aproximadamente, 45% dos africanos escravizados trazidos para as Américas eram originários da África Central e já possuíam familiaridade com práticas católicas, o que influenciou de forma profunda as manifestações religiosas no Brasil:

(…) os portugueses estabeleceram contato com o Reino do Congo pela primeira vez em 1483. Menos de uma década depois, em 1491, Nzinga a Nkuwu, o monarca do Congo, aceitou o batismo. No decorrer do século XVI, o catolicismo (isto é, as crenças, os ritos, o dogma e a cosmologia católicos) começou a influenciar toda a sociedade do Congo e seus reinos, vassalos e povos vizinhos, transformando a cultura material e as práticas e ideias imateriais (…) o catolicismo já tinha presença expressiva quando os povos africanos da região do Congo começaram a ser escravizados, pois foi só no último quartel do século XVI que os portos centro-africanos começaram a embarcar os cativos e cativas em números significativos. (…) Isso significa que uma parcela dos povos centro-africanos pode ter trazido ao Brasil o que já conhecia e praticava do seu catolicismo congolês. Assim, as velhas práticas católicas africanas teriam se instalado, o que já teria preparado o terreno para a elaboração de novas práticas católicas americanas/baianas. Vale notar que as estéticas centro-africanas fazem parte de festivais católicos no Brasil desde a época colonial.10

Essa influência também é registrada pelo historiador Luiz Antônio Simas, no livro Almanaque brasilidades: um inventário do Brasil popular:

Do encontro entre as tradições de Angola e do Congo redefinidas no Brasil, as devoções ibéricas aos santos católicos e as representações dramáticas de escaramuças medievais surgiram, com os primeiros registros localizados no Recife, em meados do século XVII, os autos dramáticos das congadas. (…) Há ainda, com forte ligação com as congadas, sobretudo em Minas Gerais, os Moçambiques. Estes se organizam dramaticamente a partir de uma tradição católica africana ligada a Nossa Senhora do Rosário e reelaborada no Brasil – devoção que teria sido introduzida na África pelos dominicanos durante missões de catequese ainda no século XVI.11

Iyanaga explora, ainda, a relação intrínseca entre as novenas e o samba de roda, uma expressão musical e dançante de origem africana. Em muitas dessas celebrações, o samba de roda simboliza a alegria coletiva e fortalece os laços comunitários. Essa conexão entre música, e devoção religiosa atesta a fusão cultural que caracteriza a identidade afro-brasileira no Recôncavo Baiano e no Brasil, de uma forma geral. 

As novenas, como sua devoção aos santos de casa, representam, portanto, uma rica expressão da espiritualidade popular e fundamentalmente católica no Brasil, conectando gerações através da fé, da tradição e do senso de comunidade. As novenas oferecem conforto, esperança e fortalecimento espiritual, especialmente em tempos de desafio. Ao reunir famílias em oração e manter viva a memória dos santos padroeiros, as novenas, enquanto manifestações domésticas da fé, reforçam o elo entre o sagrado e o cotidiano, promovendo uma vivência da fé que consegue ser ao mesmo tempo íntima e coletiva. Para quem vive a espiritualidade através das novenas, o efeito dessa prática vai muito além do religioso, pois oferece acolhimento, esperança e um senso de continuidade das nossas tradições; o homem nobre sempre dedica esforços às suas raízes.12 Na vida cotidiana, esses momentos de oração podem ajudar a aliviar ansiedades, promover reflexões e fortalecer a confiança na providência divina.

Referências

  1. Apud Luiz Antônio Simas. Santos de casa: fé, crenças e festas de cada dia. Rio de Janeiro: Bazar do Tempo, 2022, p.4.[]
  2. Luiz Antônio Simas. Santos de casa: fé, crenças e festas de cada dia. Rio de Janeiro: Bazar do Tempo, 2022, p.176.[]
  3. Michael Iyanaga. Alegria é devoção: sambas, santos e novenas numa tradição afro-diaspórica da Bahia. Campinas: Editora da UNICAMP, 2023, p.152.[]
  4. Michael Iyanaga. Alegria é devoção: sambas, santos e novenas numa tradição afro-diaspórica da Bahia. Campinas: Editora da UNICAMP, 2023, p.151.[]
  5.  Michael Iyanaga. Alegria é devoção: sambas, santos e novenas numa tradição afro-diaspórica da Bahia. Campinas: Editora da UNICAMP, 2023, p.152.[]
  6.  Michael Iyanaga. Alegria é devoção: sambas, santos e novenas numa tradição afro-diaspórica da Bahia. Campinas: Editora da UNICAMP, 2023, p.37.[]
  7. Michael Iyanaga. Alegria é devoção: sambas, santos e novenas numa tradição afro-diaspórica da Bahia. Campinas: Editora da UNICAMP, 2023, p.39.[]
  8. Luiz Antônio Simas. Santos de casa: fé, crenças e festas de cada dia. Rio de Janeiro: Bazar do Tempo, 2022, p.86.[]
  9.  Michael Iyanaga. Alegria é devoção: sambas, santos e novenas numa tradição afro-diaspórica da Bahia. Campinas: Editora da UNICAMP, 2023, p.165.[]
  10. Michael Iyanaga. Alegria é devoção: sambas, santos e novenas numa tradição afro-diaspórica da Bahia. Campinas: Editora da UNICAMP, 2023, p.36-38.[]
  11. Luiz Antônio Simas. Almanaque brasilidades: um inventário do Brasil popular. Rio de Janeiro: Bazar do Tempo, 2018, p.17-18.[]
  12.  C.S.Lewis. A abolição do homem. Rio de Janeiro: Thomas Nelson Brasil, 2017, p.31.[]
Patricia Silva

Patricia Silva

Pedagoga, Autora do livro “Mulheres que o feminismo não vê - Classe e Raça”. Realizou pós-doutoramento em Sociologia pela UFRJ.

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“A própria Vida se manifestou na carne, para que, nessa manifestação, aquilo que só podia ser visto com o coração fosse também visto com os olhos.” (Santo Agostinho de Hipona em “Reflexão patrística”)1

O Brasil, na posição de maior país católico do mundo, tem uma forte devoção a diversos santos católicos, que são venerados tanto nas igrejas quanto nas manifestações da religiosidade popular. As festas, procissões e novenas dedicadas a esses santos fazem parte do calendário cultural e religioso de muitas cidades brasileiras. É possível dizer que estes são os santos mais populares no nosso país: Nossa Senhora Aparecida, Nossa Senhora de Nazaré, Nossa Senhora do Rosário, São Sebastião, São Cosme e São Damião, Santa Bárbara, São José, São Jorge, São Francisco de Assis, Santo Antônio, São João Batista e São Pedro. Todos eles têm inúmeros registros de rezas, novenas e versos de devoção na cultura popular. 

São Cosme e São Damião, por exemplo, foram completamente absorvidos na cultura popular, que os associou com a distribuição familiar de doces em saquinhos de papel para crianças (essa distribuição acontece muitas vezes como pagamento de promessas feitas aos santos). A primeira igreja dedicada aos gêmeos, que eram médicos anárgiros de origem árabe e que viveram no século III, na região da atual Turquia, foi a Igreja Matriz dos Santos Cosme e Damião, erguida em 1530, em Igarassu, capitania de Pernambuco.2

As novenas fazem parte de uma rica tradição espiritual e cultural, especialmente presente em comunidades católicas e em regiões onde a religiosidade popular floresce de maneira espontânea e profunda. A prática expressa a fé, a devoção e a busca por cura e proteção, conectando o sagrado ao cotidiano das pessoas; as devoções intrinsecamente enlaçadas com as vidas humanas e demonstram uma das belezas do catolicismo.

Homem com as mãos no rosto

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Fotografia Religiosa/Renata Gabrielle (extraída de: https://idemais.com.br/noticias/nossa-senhora-aparecida-cubranos-com-seu-manto-de-amor/)

A palavra “novena” tem origem no latim novem, que significa “nove”. Essa tradição remonta aos primeiros cristãos, inspirados pelos nove dias que os apóstolos passaram em oração após a Ascensão de Jesus até a descida do Espírito Santo no Pentecostes. A novena é, portanto, uma prática devocional que consiste em nove dias consecutivos de orações, meditações, cânticos e rituais específicos, geralmente dedicados a Deus, à Virgem Maria ou a um santo particular.  Desde a Idade Média, as novenas são praticadas em vários momentos litúrgicos do calendário católico. No Brasil, a novena se integrou à vida religiosa desde o período colonial, antecedendo procissões e festas.3

As novenas podem ser realizadas para diversas intenções: pedidos de cura, superação de dificuldades, agradecimento por graças alcançadas ou preparação para festas religiosas, como o Natal e a Páscoa. Elas podem ser rezadas individualmente ou em comunidade e são fundamentadas nas liturgias de missas festivas da Igreja Católica. Os textos entoados vêm da Igreja, mas podem ser personalizados com decisões litúrgicas e melódicas familiares e rezas que reflitam as crenças locais sobre os santos.4

No contexto das devoções domiciliares em grupo, a novena pode não ser executada em nove noites:

Nas casas do Recôncavo, a novena dura uma só noite, não nove. Ou no dizer da rezadeira Dona Dé, “novena é nove noite, né?” Chama novena, mas não é né? (…) Supõe-se que o termo “novena”, no contexto familiar, teria vindo da recriação nos domicílios das novenas eclesiais, e é bem provável que, no passado, também nas residências as “novenas” durassem nove noites, da mesma forma que as trezenas e os tríduos domiciliares de Santo Antônio duram treze e três noites, respectivamente. Devido aos custos e à mão de obra necessária para realizar tantas noites consecutivas de reza, a “novena” talvez tenha sido reduzida, gradualmente, de nove noites para uma só, sem nunca ter perdido sua designação inicial.5

Mão de uma pessoa olhando para a câmera

O conteúdo gerado por IA pode estar incorreto.
Imagem extraída de https://agora.folha.uol.com.br/sao-paulo/2019/05/benzedeiras-resistem-ao-tempo-e-a-modernidade-com-muita-fe.shtml

Michael Iyanaga, etnomusicólogo e professor associado de Música e Estudos Latino-Americanos no College of William & Mary, dedicou-se ao estudo das práticas religiosas afro-diaspóricas na Bahia, com ênfase nas novenas, denominando o catolicismo como religião afro-diaspórica.6 O pesquisador afirma que as evidências históricas insinuam que muitas práticas do catolicismo no Brasil são descendentes de vivências desenvolvidas primeiramente no catolicismo da África Central.7

Em seu livro Alegria é devoção: sambas, santos e novenas numa tradição afro-diaspórica da Bahia, Iyanaga apresenta uma análise detalhada das novenas enquanto eventos domésticos dedicados a santos padroeiros no Recôncavo Baiano, tais como São Bartolomeu, São Félix, Nossa Senhora do Rosário, Santa Bárbara e São Benedito. Há, por exemplo, inúmeros registros de rezas dedicadas a São Brás no repertório da cultura popular brasileira, tal como:

“São Brás, São Brás
Desafoga esse rapaz
Para frente e para trás.
São Brás, São Brás
Desafoga essa menina
Para baixo e para cima”8

Iyanaga aponta que qualquer novena tem um pré-requisito: alguém para conduzir a novena (também chamada de reza); essa tarefa é geralmente dada à pessoa popularmente conhecida como “rezadeira”:

A rezadeira é quase sempre mulher. Embora existam também rezadores, estes hoje são bem raros. A função da rezadeira é “puxar” ou “tirar” a reza. Para isso, ela precisa ter capacidade física para cantar toda a novena em voz alta. De fato, a qualidade da performance da rezadeira é, muitas vezes, avaliada de acordo com a força de sua voz; ela não pode cantar baixinho nem perder o fôlego jamais. É esperado que a rezadeira conduza as outras pessoas (…) A rezadeira pode ser qualquer pessoa: a dona da casa, uma parente, alguma vizinha, determinada amiga ou apenas uma conhecida. As rezadeiras geralmente não recebem pagamento por seu serviço (…).9

Durante sua pesquisa de doutoramento, entre 2008 e 2013, Iyanaga observou cerca de 40 celebrações no Recôncavo Baiano, principalmente nos municípios de Cachoeira e São Félix. Ele identificou que as novenas são eventos que refletem a rica herança religiosa afro-brasileira e argumenta que essas práticas religiosas são tradições que têm raízes no catolicismo praticado na África Central desde o final do século XV. Destaca que, aproximadamente, 45% dos africanos escravizados trazidos para as Américas eram originários da África Central e já possuíam familiaridade com práticas católicas, o que influenciou de forma profunda as manifestações religiosas no Brasil:

(…) os portugueses estabeleceram contato com o Reino do Congo pela primeira vez em 1483. Menos de uma década depois, em 1491, Nzinga a Nkuwu, o monarca do Congo, aceitou o batismo. No decorrer do século XVI, o catolicismo (isto é, as crenças, os ritos, o dogma e a cosmologia católicos) começou a influenciar toda a sociedade do Congo e seus reinos, vassalos e povos vizinhos, transformando a cultura material e as práticas e ideias imateriais (…) o catolicismo já tinha presença expressiva quando os povos africanos da região do Congo começaram a ser escravizados, pois foi só no último quartel do século XVI que os portos centro-africanos começaram a embarcar os cativos e cativas em números significativos. (…) Isso significa que uma parcela dos povos centro-africanos pode ter trazido ao Brasil o que já conhecia e praticava do seu catolicismo congolês. Assim, as velhas práticas católicas africanas teriam se instalado, o que já teria preparado o terreno para a elaboração de novas práticas católicas americanas/baianas. Vale notar que as estéticas centro-africanas fazem parte de festivais católicos no Brasil desde a época colonial.10

Essa influência também é registrada pelo historiador Luiz Antônio Simas, no livro Almanaque brasilidades: um inventário do Brasil popular:

Do encontro entre as tradições de Angola e do Congo redefinidas no Brasil, as devoções ibéricas aos santos católicos e as representações dramáticas de escaramuças medievais surgiram, com os primeiros registros localizados no Recife, em meados do século XVII, os autos dramáticos das congadas. (…) Há ainda, com forte ligação com as congadas, sobretudo em Minas Gerais, os Moçambiques. Estes se organizam dramaticamente a partir de uma tradição católica africana ligada a Nossa Senhora do Rosário e reelaborada no Brasil – devoção que teria sido introduzida na África pelos dominicanos durante missões de catequese ainda no século XVI.11

Iyanaga explora, ainda, a relação intrínseca entre as novenas e o samba de roda, uma expressão musical e dançante de origem africana. Em muitas dessas celebrações, o samba de roda simboliza a alegria coletiva e fortalece os laços comunitários. Essa conexão entre música, e devoção religiosa atesta a fusão cultural que caracteriza a identidade afro-brasileira no Recôncavo Baiano e no Brasil, de uma forma geral. 

As novenas, como sua devoção aos santos de casa, representam, portanto, uma rica expressão da espiritualidade popular e fundamentalmente católica no Brasil, conectando gerações através da fé, da tradição e do senso de comunidade. As novenas oferecem conforto, esperança e fortalecimento espiritual, especialmente em tempos de desafio. Ao reunir famílias em oração e manter viva a memória dos santos padroeiros, as novenas, enquanto manifestações domésticas da fé, reforçam o elo entre o sagrado e o cotidiano, promovendo uma vivência da fé que consegue ser ao mesmo tempo íntima e coletiva. Para quem vive a espiritualidade através das novenas, o efeito dessa prática vai muito além do religioso, pois oferece acolhimento, esperança e um senso de continuidade das nossas tradições; o homem nobre sempre dedica esforços às suas raízes.12 Na vida cotidiana, esses momentos de oração podem ajudar a aliviar ansiedades, promover reflexões e fortalecer a confiança na providência divina.

Referências

  1. Apud Luiz Antônio Simas. Santos de casa: fé, crenças e festas de cada dia. Rio de Janeiro: Bazar do Tempo, 2022, p.4.[]
  2. Luiz Antônio Simas. Santos de casa: fé, crenças e festas de cada dia. Rio de Janeiro: Bazar do Tempo, 2022, p.176.[]
  3. Michael Iyanaga. Alegria é devoção: sambas, santos e novenas numa tradição afro-diaspórica da Bahia. Campinas: Editora da UNICAMP, 2023, p.152.[]
  4. Michael Iyanaga. Alegria é devoção: sambas, santos e novenas numa tradição afro-diaspórica da Bahia. Campinas: Editora da UNICAMP, 2023, p.151.[]
  5.  Michael Iyanaga. Alegria é devoção: sambas, santos e novenas numa tradição afro-diaspórica da Bahia. Campinas: Editora da UNICAMP, 2023, p.152.[]
  6.  Michael Iyanaga. Alegria é devoção: sambas, santos e novenas numa tradição afro-diaspórica da Bahia. Campinas: Editora da UNICAMP, 2023, p.37.[]
  7. Michael Iyanaga. Alegria é devoção: sambas, santos e novenas numa tradição afro-diaspórica da Bahia. Campinas: Editora da UNICAMP, 2023, p.39.[]
  8. Luiz Antônio Simas. Santos de casa: fé, crenças e festas de cada dia. Rio de Janeiro: Bazar do Tempo, 2022, p.86.[]
  9.  Michael Iyanaga. Alegria é devoção: sambas, santos e novenas numa tradição afro-diaspórica da Bahia. Campinas: Editora da UNICAMP, 2023, p.165.[]
  10. Michael Iyanaga. Alegria é devoção: sambas, santos e novenas numa tradição afro-diaspórica da Bahia. Campinas: Editora da UNICAMP, 2023, p.36-38.[]
  11. Luiz Antônio Simas. Almanaque brasilidades: um inventário do Brasil popular. Rio de Janeiro: Bazar do Tempo, 2018, p.17-18.[]
  12.  C.S.Lewis. A abolição do homem. Rio de Janeiro: Thomas Nelson Brasil, 2017, p.31.[]

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