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A vida consagrada e a saúde mental

A vida consagrada e a saúde mental: desafios, espiritualidade, sofrimento psíquico e a urgência do cuidado humano e pastoral.

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A vida consagrada e a saúde mental

A vida consagrada e a saúde mental: desafios, espiritualidade, sofrimento psíquico e a urgência do cuidado humano e pastoral.

Data da Publicação: 26/06/2025
Tempo de leitura:
Autor: Rayhanne Zago
Data da Publicação: 26/06/2025
Tempo de leitura:
Autor: Rayhanne Zago

Espiritualidade e religião são amplamente reconhecidas como fatores protetivos e de bem-estar. Inúmeros estudos apontam que a espiritualidade traz benefícios para a saúde física e mental.  A transcendência ajuda a dar sentido ao mundo respondendo às grandes questões da existência e trazendo um sentimento de segurança diante da experiência da vida. Ela também pode trazer sentimentos de conforto, cura e pertencimento. 

A espiritualidade está ligada à manutenção e ao fortalecimento da saúde física, mental e social, havendo estudos cada vez mais qualificados nos últimos anos apontando efeitos positivos como redução de estresse, ansiedade e depressão, diminuição no uso de substâncias e tentativas de suicídio, além de melhor qualidade de vida e prognóstico psiquiátrico, bem como aumento da expectativa de vida global em até 7 anos adicionais e diminuição do estresse oxidativo, contribuindo para enfrentamento de doenças degenerativas, como o Alzheimer. Não obstante, há diversos impactos indiretos da espiritualidade e religiosidade, como o aumento da resiliência – isto é, estratégias subjetivas para lidar com os desafios da vida –, do convívio social e de uma visão positiva do mundo, compartilhada por uma comunidade que pode oferecer suporte.1

Contudo, nem sempre a experiência espiritual ou religiosa é benéfica para o indivíduo. Lamentavelmente há uma ampla variedade de grupos ou líderes que utilizam a fé das pessoas para perpetrarem uma série de abusos psicológicos, físicos, sexuais, financeiros etc – especialmente quando o tipo de grupo é manipulador, coercitivo e de alto controle, com vivência marcadamente fanática, autoritária, causando alienação e isolamento do indivíduo, controlando e anulando a personalidade da pessoa. Quando o grupo leva o membro a um estilo de vida que adoece, a viver um estado de estresse constante e progressivo, o indivíduo pode desenvolver a Síndrome do Trauma Religioso.

“Depois de 27 anos tentando viver uma vida perfeita, eu achei que tinha falhado… Eu tinha vergonha de mim durante todo o dia. Minha mente lutava contra ela mesma, sem alívio. Eu sempre acreditei em tudo que me foi ensinado, mas ainda assim pensava que não tinha a aprovação de Deus. Durante anos, eu me machucava literalmente, cortava e queimava meus braços, para me punir antes que Deus o fizesse. Levei anos para me sentir curada.” Esse relato é de um paciente de Marlene Winell, autora do Leaving the Fold. 2

Ao contrário do que se costuma esperar ou imaginar, problemas de saúde mental também atingem as pessoas que vivem uma espiritualidade saudável, inclusive os religiosos. Uma pessoa com religião ou espiritualidade não está imune a uma miríade de situações como burnout, depressão, ansiedade, crises de pânico, compulsões, vícios, crises afetivas, questões relativas à sexualidade, ideação suicida, suicídio, doenças psicossomáticas, alucinações, neuroses, exaustão, estresse agudo, TOC (transtorno obsessivo-compulsivo) religioso, fobias, abusos, transtornos de personalidade, entre outros.

Segundo as pesquisas do Pe. Lício, de agosto de 2016 a junho de 2023, 40 padres se suicidaram no Brasil. O suicídio é um fenômeno complexo e multifatorial. No caso dos padres, vários estudos apontam que os principais fatores de risco são o estresse, a solidão e a cobrança excessiva. 3

Sanagiotto em uma de suas pesquisas, identifica que a síndrome de burnout entre as religiosas consagradas brasileiras se define por médios níveis de exaurimento emotivo que, basicamente se caracteriza pela sensação de estar em contínua tensão e emotivamente “vazio” no relacionamento com os outros e com o próprio trabalho; por altos índices de despersonalização, que se caracteriza pela atitude negativa no relacionamento com as pessoas destinatárias do serviço prestado; enfim, mesmo diante do exaurimento emotivo e da despersonalização, as religiosas consagradas se descrevem com altos índices de realização pessoal.4

Uma pesquisa da Universidade de Salamanca, na Espanha, ouviu 881 sacerdotes de três países (México, Costa Rica e Porto Rico) e identificou incidência alta de transtornos relacionados à atividade. “Três em cada cinco experimentavam graus médios ou avançados de burnout, a síndrome do esgotamento profissional”, registrou a autora da pesquisa, Helena de Mézerville, no livro O Desgaste na Vida Sacerdotal.5

A vocação à vida religiosa consagrada e presbiteral é desafiadora nos seus diversos aspectos, principalmente no que diz respeito à práxis pastoral. A missão confiada a um presbítero ou a um religioso consagrado representa muito mais que um trabalho – é um compromisso vocacional com aqueles que lhe foram confiados. Porém, além do aspecto teológico que caracteriza a vocação, historicamente é possível individuar uma preocupação em torno da saúde mental do clero e dos religiosos consagrados 6. Existe um determinado tipo de envolvimento pastoral que pode ser desadaptativo e, em certos casos, pode desencadear comportamentos disfuncionais e até mesmo certas psicopatologias 7.8

Há um contexto complexo que circunda a dimensão psicológica dos consagrados. Sejam padres, bispos, freiras, religiosos ou leigos consagrados, todos eles apontam para uma questão primariamente simbólica sobre a imagem que ocupam como consagrados tanto no próprio imaginário, quanto no da sociedade e da comunidade eclesial. Essa imagem diz respeito ao papel que simbolicamente se atribui aos indivíduos religiosos: o de pessoas perfeitas, que resolvem tudo com a espiritualidade, que não apresentam fraquezas nem problemas, que são impassíveis de dilemas humanos, que suportam tudo, enfim, um papel de super-heróis ou semideuses.

Esse papel desumaniza os consagrados retirando deles a sua preciosa e real humanidade. Por isso pesam sobre estes indivíduos um perfeccionismo, uma alta pressão, além de expectativas surreais (como a da disponibilidade 24h por dia e da ausência de falhas). Dessa forma, estão sempre vivendo sob uma alta cobrança, tanto sobre si mesmo, quanto a respeito da comunidade eclesial e da sociedade. Espera-se dessas pessoas que sejam de determinado modo, que se encaixem em um padrão arquetípico que desconsidera a sua humanidade (logo, todas as suas fragilidades e vulnerabilidades naturais).

A busca pelo caminho da perfeição evangélica e os inúmeros compromissos missionários tendem a ocultar a figura humana, frágil e necessitada que há em todo homem e mulher, independentemente da sua vocação. Quanto mais forte essa imagem, mais difícil torna-se reconhecer alguma questão de saúde mental. Há diversos motivos para que isso aconteça. Em primeiro lugar, pela dificuldade que o consagrado tem de assumir para si mesmo que está passando por algum problema psicológico. Isso envolve a concepção que ele tem a respeito do ser consagrado. Problemas de saúde mental acabam trazendo sentimentos desafiadores como medo, vergonha, culpa e humilhação, por serem considerados uma fraqueza em vez de uma questão humana.

Muitas vezes, por estar inserido em uma estrutura comunitária muito exigente e que negligencia completamente a dimensão psicológica dos membros, o consagrado não encontra espaço acolhedor que lhe permita compartilhar suas dificuldades e dores. Infelizmente, há estruturas comunitárias em que se negam os problemas da ordem da saúde mental ou os classificam como “espirituais”. Por exemplo, consideram a depressão como ‘falta de Deus’, classificam outros sintomas e psicopatologias como ‘falta de conversão’, ‘preguiça’, ‘necessidade de rezar mais’, ‘tentações demoníacas’, ‘falta de virtude’, entre outros. Chegando até mesmo a incorrer em casos de abuso de autoridade e poder, quando privam o indivíduo de medicamentos e atendimento psicológico necessário e adequado.

É inegável que as exigências próprias da vida consagrada e a linguagem religiosa podem favorecer irrevogavelmente o sofrimento mental quando são interpretadas e praticadas de forma disfuncional. Entendo como forma disfuncional quando não levam em conta a dignidade do indivíduo, negligenciando a atenção e o cuidado para com ele. Ou quando colocam as necessidades institucionais acima das do indivíduo. Assim, por exemplo, recusam-se a promover acompanhamento terapêutico adequado aos que manifestam sintomas na esfera psicológica, utilizam-se da linguagem religiosa para manipular as consciências levando-as cada vez mais acima do limite pessoal e justificando até mesmo práticas abusivas ou pensamentos neuróticos e que deformam a autoestima do consagrado.

A falta de um espaço acolhedor e de atenção cuidadosa ao indivíduo acabam retardando a procura por ajuda psicoterapêutica, agravando o estado e, infelizmente, muitas vezes levando o indivíduo a se envolver em escândalos e acontecimentos limítrofes. É o que relata o psicoterapeuta Ênio Brito Pinto,  especialista em atendimento à consagrados, em seu livro ‘Os padres em psicoterapia’. Esta situação demonstra claramente que no âmbito da vida consagrada ainda existe um preconceito latente com a necessidade de encarar a dimensão psicológica dos consagrados, com o processo psicoterapêutico e com a promoção da saúde mental através da formação humano-afetiva dos membros.  

Toda a comunidade eclesial precisa conscientizar-se a este respeito. Dessa forma, conseguiremos diminuir as expectativas desleais sobre os consagrados, diminuindo também a pressão que existe sobre eles. Além disso, é preciso dar apoio a estes irmãos através da amizade e do cuidado. É necessário também fazer as devidas ressalvas, porque há muitos casos em que as problemáticas psicológicas são devidamente acolhidas, amparadas, encaminhadas e trabalhadas. Há ambientes eclesiais comprometidos com a saúde mental e com olhar atento sobre os seus membros consagrados.

Em uma entrevista concedida ao Vatican News, o Frei Vagner, especialista em Saúde Mental, sinalizou: “Percebo que as Dioceses e Congregações Religiosas estão mais atentas à saúde mental dos padres e dos/as religiosos/as consagrados/as. Porém, precisamos entender que cuidar não é somente quando se tem um diagnóstico. Precisamos avançar na direção da prevenção das psicopatologias e da promoção da saúde mental, isto é, agir antecipadamente.” 9

Como relembra o padre Lício, a cultura religiosa pode ser um fator que inibe o diálogo sobre a saúde mental. Em muitas tradições religiosas, a ênfase está na espiritualidade e no crescimento pessoal, e as questões de saúde mental podem ser vistas como menos importantes ou até como um enternecedor desvio da missão espiritual. É urgente abrir o diálogo sobre saúde mental e integrar o apoio psicológico. Há muitos religiosos presos em um ciclo de silêncio e sofrimento, sentindo-se desamparados e confusos.

Por serem humanos, os consagrados também enfrentam problemas de saúde mental e isso não deve ser normalizado como algo positivo dentro da vida consagrada. Isso é um problema que precisa ser tratado e solucionado. Não podemos partir de uma lógica de que isso é esperado para uma vocação religiosa, como desculpa para um conformismo negligente. Para trabalhar de forma preventiva, os consagrados precisam encontrar inicialmente uma formação adequada para sua dimensão psicológica, humano-afetiva. Inteligência emocional, afetividade e autoconhecimento são indispensáveis. Além disso, precisa-se promover uma cultura do cuidado que olhe com atenção para cada indivíduo, com toda a dignidade que ele tem. Dessa forma, inseridos em um ambiente acolhedor, os consagrados poderão exercer ainda melhor a alta vocação a qual estão chamados, sentindo-se ainda mais realizados.

Quando pensamos em saúde mental precisamos ter em mente que ela é um aspecto integral do bem-estar e de uma doação de si eficaz. Falar de saúde psicológica e autocuidado não podem ser tratados como sinônimos de egoísmo, mas sim de uma cultura do cuidado. É imperativo que tanto os indivíduos quanto as instituições religiosas reconheçam a importância do cuidado psicológico e espiritual.

O documento do Dicastério para os Institutos de Vida Consagrada e as Sociedades de Vida Apostólica, ressalta que “às vezes o sincero desejo de servir à Igreja, o apego às obras do instituto, bem como as prementes solicitações da Igreja particular podem facilmente levar religiosos e religiosas a sobrecarregar-se de trabalho”. O documento prossegue afirmando que “o recurso a tais intervenções [acompanhamento profissional] tem se revelado útil não só no momento terapêutico em casos de psicopatologia mais ou menos manifesta, mas também no momento preventivo para ajudar a uma adequada seleção dos candidatos e para acompanhar, em alguns casos, a equipe de formadores a afrontar específicos problemas pedagógico-formativos”. 10

Como reitera o padre Lício, “é relevante reconhecer a importância e urgência de uma melhor formação inicial nos seminários e noviciados (trabalhando mais efetivamente a dimensão humano-afetiva), a criação de estratégias pastorais mais apropriadas não só para a formação permanente, mas também para o cuidado dos próprios sacerdotes, como também enfrentar o medo e o preconceito em relação à saúde mental dos presbíteros.” E não apenas dos sacerdotes, mas em toda a vasta realidade que compõe a vida consagrada.

Referências

  1. https://www.sbmfc.org.br/noticias/como-a-espiritualidade-pode-influenciar-a-saude-das-pessoas/[]
  2. Marlene Winell, Leaving the fold[]
  3. Padre Lício: O suicídio de padres no Brasil – Vatican News[]
  4. A síndrome de burnout na Vida Religiosa Consagrada feminina brasileira – Vatican News[]
  5. Depressão no altar: quando padres e sacerdotes precisam de ajuda – BBC News Brasil[]
  6. Moore, 1936; Segreteria di Stato del Vaticano, 1938[]
  7. Knox et al., 2007; Pinkus, 2010[]
  8. A relação entre inteligência emocional e os domínios de personalidade psicopatológicos entre os padres e religiosos brasileiros. Vagner Sanagiotto e Aureliano Pacciolla, 2022.[]
  9. https://www.vaticannews.va/pt/igreja/news/2025-01/frei-vagner-sanagiotto-saude-mental-padres-religiosos.html[]
  10. A VIDA FRATERNA EM COMUNIDADE (vatican.va)[]
Rayhanne Zago

Rayhanne Zago

Psicoterapeuta e escritora. Especialista em Saúde Mental, Dependência de Tecnologia e Abuso Espiritual. Autora do livro ‘A corrupção do bem: quando um grupo católico se comporta como uma seita”.

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Espiritualidade e religião são amplamente reconhecidas como fatores protetivos e de bem-estar. Inúmeros estudos apontam que a espiritualidade traz benefícios para a saúde física e mental.  A transcendência ajuda a dar sentido ao mundo respondendo às grandes questões da existência e trazendo um sentimento de segurança diante da experiência da vida. Ela também pode trazer sentimentos de conforto, cura e pertencimento. 

A espiritualidade está ligada à manutenção e ao fortalecimento da saúde física, mental e social, havendo estudos cada vez mais qualificados nos últimos anos apontando efeitos positivos como redução de estresse, ansiedade e depressão, diminuição no uso de substâncias e tentativas de suicídio, além de melhor qualidade de vida e prognóstico psiquiátrico, bem como aumento da expectativa de vida global em até 7 anos adicionais e diminuição do estresse oxidativo, contribuindo para enfrentamento de doenças degenerativas, como o Alzheimer. Não obstante, há diversos impactos indiretos da espiritualidade e religiosidade, como o aumento da resiliência – isto é, estratégias subjetivas para lidar com os desafios da vida –, do convívio social e de uma visão positiva do mundo, compartilhada por uma comunidade que pode oferecer suporte.1

Contudo, nem sempre a experiência espiritual ou religiosa é benéfica para o indivíduo. Lamentavelmente há uma ampla variedade de grupos ou líderes que utilizam a fé das pessoas para perpetrarem uma série de abusos psicológicos, físicos, sexuais, financeiros etc – especialmente quando o tipo de grupo é manipulador, coercitivo e de alto controle, com vivência marcadamente fanática, autoritária, causando alienação e isolamento do indivíduo, controlando e anulando a personalidade da pessoa. Quando o grupo leva o membro a um estilo de vida que adoece, a viver um estado de estresse constante e progressivo, o indivíduo pode desenvolver a Síndrome do Trauma Religioso.

“Depois de 27 anos tentando viver uma vida perfeita, eu achei que tinha falhado… Eu tinha vergonha de mim durante todo o dia. Minha mente lutava contra ela mesma, sem alívio. Eu sempre acreditei em tudo que me foi ensinado, mas ainda assim pensava que não tinha a aprovação de Deus. Durante anos, eu me machucava literalmente, cortava e queimava meus braços, para me punir antes que Deus o fizesse. Levei anos para me sentir curada.” Esse relato é de um paciente de Marlene Winell, autora do Leaving the Fold. 2

Ao contrário do que se costuma esperar ou imaginar, problemas de saúde mental também atingem as pessoas que vivem uma espiritualidade saudável, inclusive os religiosos. Uma pessoa com religião ou espiritualidade não está imune a uma miríade de situações como burnout, depressão, ansiedade, crises de pânico, compulsões, vícios, crises afetivas, questões relativas à sexualidade, ideação suicida, suicídio, doenças psicossomáticas, alucinações, neuroses, exaustão, estresse agudo, TOC (transtorno obsessivo-compulsivo) religioso, fobias, abusos, transtornos de personalidade, entre outros.

Segundo as pesquisas do Pe. Lício, de agosto de 2016 a junho de 2023, 40 padres se suicidaram no Brasil. O suicídio é um fenômeno complexo e multifatorial. No caso dos padres, vários estudos apontam que os principais fatores de risco são o estresse, a solidão e a cobrança excessiva. 3

Sanagiotto em uma de suas pesquisas, identifica que a síndrome de burnout entre as religiosas consagradas brasileiras se define por médios níveis de exaurimento emotivo que, basicamente se caracteriza pela sensação de estar em contínua tensão e emotivamente “vazio” no relacionamento com os outros e com o próprio trabalho; por altos índices de despersonalização, que se caracteriza pela atitude negativa no relacionamento com as pessoas destinatárias do serviço prestado; enfim, mesmo diante do exaurimento emotivo e da despersonalização, as religiosas consagradas se descrevem com altos índices de realização pessoal.4

Uma pesquisa da Universidade de Salamanca, na Espanha, ouviu 881 sacerdotes de três países (México, Costa Rica e Porto Rico) e identificou incidência alta de transtornos relacionados à atividade. “Três em cada cinco experimentavam graus médios ou avançados de burnout, a síndrome do esgotamento profissional”, registrou a autora da pesquisa, Helena de Mézerville, no livro O Desgaste na Vida Sacerdotal.5

A vocação à vida religiosa consagrada e presbiteral é desafiadora nos seus diversos aspectos, principalmente no que diz respeito à práxis pastoral. A missão confiada a um presbítero ou a um religioso consagrado representa muito mais que um trabalho – é um compromisso vocacional com aqueles que lhe foram confiados. Porém, além do aspecto teológico que caracteriza a vocação, historicamente é possível individuar uma preocupação em torno da saúde mental do clero e dos religiosos consagrados 6. Existe um determinado tipo de envolvimento pastoral que pode ser desadaptativo e, em certos casos, pode desencadear comportamentos disfuncionais e até mesmo certas psicopatologias 7.8

Há um contexto complexo que circunda a dimensão psicológica dos consagrados. Sejam padres, bispos, freiras, religiosos ou leigos consagrados, todos eles apontam para uma questão primariamente simbólica sobre a imagem que ocupam como consagrados tanto no próprio imaginário, quanto no da sociedade e da comunidade eclesial. Essa imagem diz respeito ao papel que simbolicamente se atribui aos indivíduos religiosos: o de pessoas perfeitas, que resolvem tudo com a espiritualidade, que não apresentam fraquezas nem problemas, que são impassíveis de dilemas humanos, que suportam tudo, enfim, um papel de super-heróis ou semideuses.

Esse papel desumaniza os consagrados retirando deles a sua preciosa e real humanidade. Por isso pesam sobre estes indivíduos um perfeccionismo, uma alta pressão, além de expectativas surreais (como a da disponibilidade 24h por dia e da ausência de falhas). Dessa forma, estão sempre vivendo sob uma alta cobrança, tanto sobre si mesmo, quanto a respeito da comunidade eclesial e da sociedade. Espera-se dessas pessoas que sejam de determinado modo, que se encaixem em um padrão arquetípico que desconsidera a sua humanidade (logo, todas as suas fragilidades e vulnerabilidades naturais).

A busca pelo caminho da perfeição evangélica e os inúmeros compromissos missionários tendem a ocultar a figura humana, frágil e necessitada que há em todo homem e mulher, independentemente da sua vocação. Quanto mais forte essa imagem, mais difícil torna-se reconhecer alguma questão de saúde mental. Há diversos motivos para que isso aconteça. Em primeiro lugar, pela dificuldade que o consagrado tem de assumir para si mesmo que está passando por algum problema psicológico. Isso envolve a concepção que ele tem a respeito do ser consagrado. Problemas de saúde mental acabam trazendo sentimentos desafiadores como medo, vergonha, culpa e humilhação, por serem considerados uma fraqueza em vez de uma questão humana.

Muitas vezes, por estar inserido em uma estrutura comunitária muito exigente e que negligencia completamente a dimensão psicológica dos membros, o consagrado não encontra espaço acolhedor que lhe permita compartilhar suas dificuldades e dores. Infelizmente, há estruturas comunitárias em que se negam os problemas da ordem da saúde mental ou os classificam como “espirituais”. Por exemplo, consideram a depressão como ‘falta de Deus’, classificam outros sintomas e psicopatologias como ‘falta de conversão’, ‘preguiça’, ‘necessidade de rezar mais’, ‘tentações demoníacas’, ‘falta de virtude’, entre outros. Chegando até mesmo a incorrer em casos de abuso de autoridade e poder, quando privam o indivíduo de medicamentos e atendimento psicológico necessário e adequado.

É inegável que as exigências próprias da vida consagrada e a linguagem religiosa podem favorecer irrevogavelmente o sofrimento mental quando são interpretadas e praticadas de forma disfuncional. Entendo como forma disfuncional quando não levam em conta a dignidade do indivíduo, negligenciando a atenção e o cuidado para com ele. Ou quando colocam as necessidades institucionais acima das do indivíduo. Assim, por exemplo, recusam-se a promover acompanhamento terapêutico adequado aos que manifestam sintomas na esfera psicológica, utilizam-se da linguagem religiosa para manipular as consciências levando-as cada vez mais acima do limite pessoal e justificando até mesmo práticas abusivas ou pensamentos neuróticos e que deformam a autoestima do consagrado.

A falta de um espaço acolhedor e de atenção cuidadosa ao indivíduo acabam retardando a procura por ajuda psicoterapêutica, agravando o estado e, infelizmente, muitas vezes levando o indivíduo a se envolver em escândalos e acontecimentos limítrofes. É o que relata o psicoterapeuta Ênio Brito Pinto,  especialista em atendimento à consagrados, em seu livro ‘Os padres em psicoterapia’. Esta situação demonstra claramente que no âmbito da vida consagrada ainda existe um preconceito latente com a necessidade de encarar a dimensão psicológica dos consagrados, com o processo psicoterapêutico e com a promoção da saúde mental através da formação humano-afetiva dos membros.  

Toda a comunidade eclesial precisa conscientizar-se a este respeito. Dessa forma, conseguiremos diminuir as expectativas desleais sobre os consagrados, diminuindo também a pressão que existe sobre eles. Além disso, é preciso dar apoio a estes irmãos através da amizade e do cuidado. É necessário também fazer as devidas ressalvas, porque há muitos casos em que as problemáticas psicológicas são devidamente acolhidas, amparadas, encaminhadas e trabalhadas. Há ambientes eclesiais comprometidos com a saúde mental e com olhar atento sobre os seus membros consagrados.

Em uma entrevista concedida ao Vatican News, o Frei Vagner, especialista em Saúde Mental, sinalizou: “Percebo que as Dioceses e Congregações Religiosas estão mais atentas à saúde mental dos padres e dos/as religiosos/as consagrados/as. Porém, precisamos entender que cuidar não é somente quando se tem um diagnóstico. Precisamos avançar na direção da prevenção das psicopatologias e da promoção da saúde mental, isto é, agir antecipadamente.” 9

Como relembra o padre Lício, a cultura religiosa pode ser um fator que inibe o diálogo sobre a saúde mental. Em muitas tradições religiosas, a ênfase está na espiritualidade e no crescimento pessoal, e as questões de saúde mental podem ser vistas como menos importantes ou até como um enternecedor desvio da missão espiritual. É urgente abrir o diálogo sobre saúde mental e integrar o apoio psicológico. Há muitos religiosos presos em um ciclo de silêncio e sofrimento, sentindo-se desamparados e confusos.

Por serem humanos, os consagrados também enfrentam problemas de saúde mental e isso não deve ser normalizado como algo positivo dentro da vida consagrada. Isso é um problema que precisa ser tratado e solucionado. Não podemos partir de uma lógica de que isso é esperado para uma vocação religiosa, como desculpa para um conformismo negligente. Para trabalhar de forma preventiva, os consagrados precisam encontrar inicialmente uma formação adequada para sua dimensão psicológica, humano-afetiva. Inteligência emocional, afetividade e autoconhecimento são indispensáveis. Além disso, precisa-se promover uma cultura do cuidado que olhe com atenção para cada indivíduo, com toda a dignidade que ele tem. Dessa forma, inseridos em um ambiente acolhedor, os consagrados poderão exercer ainda melhor a alta vocação a qual estão chamados, sentindo-se ainda mais realizados.

Quando pensamos em saúde mental precisamos ter em mente que ela é um aspecto integral do bem-estar e de uma doação de si eficaz. Falar de saúde psicológica e autocuidado não podem ser tratados como sinônimos de egoísmo, mas sim de uma cultura do cuidado. É imperativo que tanto os indivíduos quanto as instituições religiosas reconheçam a importância do cuidado psicológico e espiritual.

O documento do Dicastério para os Institutos de Vida Consagrada e as Sociedades de Vida Apostólica, ressalta que “às vezes o sincero desejo de servir à Igreja, o apego às obras do instituto, bem como as prementes solicitações da Igreja particular podem facilmente levar religiosos e religiosas a sobrecarregar-se de trabalho”. O documento prossegue afirmando que “o recurso a tais intervenções [acompanhamento profissional] tem se revelado útil não só no momento terapêutico em casos de psicopatologia mais ou menos manifesta, mas também no momento preventivo para ajudar a uma adequada seleção dos candidatos e para acompanhar, em alguns casos, a equipe de formadores a afrontar específicos problemas pedagógico-formativos”. 10

Como reitera o padre Lício, “é relevante reconhecer a importância e urgência de uma melhor formação inicial nos seminários e noviciados (trabalhando mais efetivamente a dimensão humano-afetiva), a criação de estratégias pastorais mais apropriadas não só para a formação permanente, mas também para o cuidado dos próprios sacerdotes, como também enfrentar o medo e o preconceito em relação à saúde mental dos presbíteros.” E não apenas dos sacerdotes, mas em toda a vasta realidade que compõe a vida consagrada.

Referências

  1. https://www.sbmfc.org.br/noticias/como-a-espiritualidade-pode-influenciar-a-saude-das-pessoas/[]
  2. Marlene Winell, Leaving the fold[]
  3. Padre Lício: O suicídio de padres no Brasil – Vatican News[]
  4. A síndrome de burnout na Vida Religiosa Consagrada feminina brasileira – Vatican News[]
  5. Depressão no altar: quando padres e sacerdotes precisam de ajuda – BBC News Brasil[]
  6. Moore, 1936; Segreteria di Stato del Vaticano, 1938[]
  7. Knox et al., 2007; Pinkus, 2010[]
  8. A relação entre inteligência emocional e os domínios de personalidade psicopatológicos entre os padres e religiosos brasileiros. Vagner Sanagiotto e Aureliano Pacciolla, 2022.[]
  9. https://www.vaticannews.va/pt/igreja/news/2025-01/frei-vagner-sanagiotto-saude-mental-padres-religiosos.html[]
  10. A VIDA FRATERNA EM COMUNIDADE (vatican.va)[]

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