Colunistas, Destaque

O trabalho de Deus: fazer muito a partir do nosso pouco

Nós não apenas trabalhamos pela salvação; a salvação é trabalho. De Deus, em primeiríssimo lugar, mas que reclama a nossa cooperação.

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O trabalho de Deus: fazer muito a partir do nosso pouco

Nós não apenas trabalhamos pela salvação; a salvação é trabalho. De Deus, em primeiríssimo lugar, mas que reclama a nossa cooperação.

Data da Publicação: 12/09/2024
Tempo de leitura:
Autor: Rudy Albino
Data da Publicação: 12/09/2024
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Autor: Rudy Albino

“Liturgia do cargo”

Antes do séc. XX o termo liturgia nem aparecia nas atas oficiais da Igreja. No século de valorização do trabalho, em que a doutrina social da Igreja começa a ser explicitada pelo magistério papal (veja a Rerum novarum de Leão XIII) o conceito de liturgia ganha cidadania na teologia1.

Ainda assim, liturgia é uma palavra que pouco usamos em nosso cotidiano, a não ser que você seja dos âmbitos político e jurídico, nos quais se fala invariavelmente da tão pouco respeitada “liturgia do cargo”: esta se referiria a um comportamento esperado de quem exerce uma função pública; implicaria decoro, prudência, um fleuma ou impassibilidade frente a arroubos impróprios para os espaços formais, uma certa etiqueta institucional e até uma medida dosada de cerimoniosidade no falar e no agir daquele que detém cargo público, eletivo ou não. Na sensibilidade geral, se é público, o cargo exige uma ritualidade, uma formalidade. Por hora vou deixar de lado a associação de liturgia com cerimônia ou rito. Agora o que nos interessa é o aspecto inerentemente laboral e público do termo liturgia desde os seus primeiros usos.

Umas das coisas que sempre me chamou atenção estudando teologia foi, precisamente, a relação do termo liturgia-leitourgía com “obra”, “trabalho”, “serviço”, sempre de caráter “público”. Para entender tais conexões, sobretudo para podermos lê-las em termos de espiritualidade laical, creio que devemos retroceder um pouco: devemos voltar no tempo, saindo do significado explicitamente cultual e cristão atual, para a sua origem civil, política, que nos leva para a Grécia clássica.

Liturgia de poucos (com muito) em favor de muitos (com pouco)

No contexto do mundo grego antigo 2, liturgia era um serviço público realizado sobretudo por pessoas ou famílias com um posição social de destaque – e (muito) dinheiro, claro. Sem qualquer elitismo ou pedantismo é bom lembrar que, embora entendamos hoje liturgia como “ação do povo” ou ainda mais exatamente como “ação popular”, algo como um trabalho comum feito da união popular (mutirão?), isso está distante do conceito original. O próprio Catecismo da Igreja (trad. portuguesa da Santa Sé) nos dá margem para relembrá-lo: “Originariamente, a palavra ‘liturgia’ significa ‘obra pública’, ‘serviço por parte dele em favor do povo’ (n. 1068; em latim: “in nomine Populi/pro populo servitium”3 ). Aqui coexistem a natureza popular da ação, quanto o fato de que parte do povo (parcela) – alguns dos seus cidadãos – age em favor de todo o povo, em nome do povo (representação). Quem tem muito, reparte; quem sabe mais ou é mais habilidoso, aplica seu conhecimento ou sua habilidade em benefício de outros, como riqueza compartilhada. De modo geral, são cidadãos (πολίτης, polites) trabalhando em favor da cidade (πόλις, pólis), lembrando que o conceito grego de cidadania está longe do nosso.

Quem tinha certa renda era “chamado” (para não falar que, muitas vezes, era verdadeira imposição) a prestar serviços onerosos para a pólis. Preste atenção nessas três características: a liturgia era uma obra (trabalho) – onerosa (o que pode implicar tanto dinheiro quanto tempo) – pública (em benefício da coletividade). Claro que as motivações podiam ser diversas, virtuosas ou não: amor à pátria, desejo de glória ou a simples ambição. As liturgias eram de dois tipos: as cíclicas (preparação de jogos e festas) e as extraordinárias (armamento-equipamento para guerras)4.

Gostaria de deixar falar o filósofo Giorgio Agamben, que explorou precisamente esta concepção em sua obra chamada Opus Dei (no cap. 1 sobre liturgia e política), enumerando os tipos de liturgias:

… que vão da organização dos ginásios e dos jogos gímnicos (gymnasiarchia) à preparação de um coro para as festas da cidade (chorēgia, a exemplo dos coros trágicos para as Dionisíacas), da aquisição de cereais e óleos (sitēgia) a armar e comandar uma trirreme (triērarchia) em caso de guerra, de dirigir a representação da cidade nos jogos olímpicos ou délficos (architheōria) ao adiantamento que os quinze cidadãos mais ricos deviam pagar à cidade sobre as taxas de todos os cidadãos tributáveis (proeisfora). Tratava-se de prestações de caráter tanto pessoal quanto real (“cada um”, escreve Demóstenes, “liturgiza, seja com o próprio corpo, seja com as próprias sustâncias”, “tois sōmasi kai tais ousiais lēitourgēsai”), que, ainda que não fossem elencadas entre as magistraturas (archai), faziam parte do “cuidado das coisas comuns” (“tōn koinōn epimeleian”). Embora a prestação das liturgias pudesse ser extremamente onerosa (o verbo kataleitourgeō significava “arruinar-se em liturgia”) e houvesse cidadãos (chamados assim diadrasipolitai, “cidadãos latentes”) que buscavam com todos os meios subtrair-se dela, o cumprimento das liturgias era visto como um modo de proporcionar honra e reputação para si, de maneira que muitos (o caso exemplar é aquele, referente à Lísia, de um cidadão que em nove anos gastou com as liturgias mais de 20 mil dracmas) não hesitavam em renunciar ao direito de não prestar a liturgia por dois anos consecutivos. Aristóteles, na Política, coloca-se assim em guarda contra o hábito, típico das democracias, de “prestar custosas e inúteis liturgias, como as coregias, as lampadarquias e outras desse gênero”. 5
Teatro de Dionísio, um dos mais importantes da Grécia antiga.

Tudo acaba englobado na ação litúrgica original: cultura, esporte, alimentação, impostos. Claro que tudo isso tem sempre relação com a religião grega (afinal, os jogos eram olímpicos e délficos; o teatro acontecia nas festas dedicadas ao deus Dionísio…). Além disso, o financiamento dos atos de culto também aparecia como liturgia; afinal, eram eles realizados para o benefício da pólis. Portanto, o sentido político-civil tinha o seu correlato, embora com menor frequência, no uso religioso-cultual, o que pode ser encontrado na “religião dos mistérios”. Foi esse sentido que entrou na Septuaginta, a tradução grega da Bíblia. Nessa versão, leitourgía era o culto levítico, enquanto o culto do povo era latreía. No Novo Testamento o sentido técnico do termo se atenua e prevalece o sentido de culto espiritual, embora sem excluir o culto especificamente cristão (em termos de celebração litúrgica como a entendemos hoje). Mas essas são cenas dos próximos capítulos…

Não deixe de rezar a Novena do Trabalho de São Josemaría Escrivá.

Deus nos dá tudo a partir do pouco que lhe oferecemos

Não é interessante o fato de que liturgia inicialmente estivesse ligada a um trabalho com benefício comunitário, público e só depois de uma longa evolução, tenha ganhado um sentido estritamente cultual? Liturgia, primeiro trabalho, depois culto (ou os dois em conexão). Mas não um trabalho qualquer; antes, aquele voltado para a coletividade. Os motivos podiam ser egoístas, claro, como vimos. Mas o cristianismo veio purificar isso, como parte do grande movimento de elevação e plenificação – aquilo que a teologia chama de praeparatio evangelica6 – que o cristianismo operou na história. Na plenitude representada pelo evento de Cristo as intenções mais nobres e elevadas do trabalho se manifestam e são tornadas possíveis. O estímulo a gastar energias, esforços, pelos outros, não se perdeu no cristianismo; foi levado a radicalidade. O cristianismo não é uma religião de gente que pensa só em si mesma e está longe de ser individualista, unicamente centrada no além, numa “busca egoísta da salvação que se recusa a servir os outros”7. Nós não apenas trabalhamos pela salvação; a salvação é trabalho. De Deus, em primeiríssimo lugar, mas que reclama a nossa cooperação.

Por isso Deus quis que uma palavrinha como liturgia ganhasse tanta importância a ponto de chegar a ser uma forma rápida de explicar que ele realiza a sua obra no meio de nós e conosco: às vezes como operários, às vezes como ferramentas. Deus obra, atua, trabalha na história da salvação e continua a sua ação na liturgia, na economia sacramental. Lembrando que economia já nos remete à administração da casa…  Deus nos dá o muito que nós não obtemos por nossas próprias forças. Na liturgia nós entregamos a Ele um pouco, um quase nada do que Ele mesmo nos deu: pão e vinho. E ele nos “devolve” o seu próprio Filho. Essa é, de fato, uma grande obra! Opus Dei! Obra de Deus!

Jean-Pierre Vernant nos ajuda a entender as nuances das ideias de trabalho na Grécia. Ele recorda que o grego não tinha uma palavra propriamente dita para o trabalho. Ponos era o trabalho braçal, desgastante, penoso8. Ergon, embora remente ao trabalho agrícola, “é, para cada coisa e para cada ser, o produto de sua própria virtude, de seu  ἀρετή [areté, virtude]”9. Ou seja, remete à realização da própria essência. Quem faz uma obra, realiza a si memo, a sua “vocação” originária. Para o cristão, o trabalho não é um apêndice em sua vida. É o lugar da sua oferta. É a sua liturgia primeira. É a sua autorrealização.

Leia também O trabalho é liturgia, a liturgia é trabalho

Referências

  1. Cf. Aimé-Georges Martimort, “Noções preliminares” in Aimé-Georges Martimort (org.), A Igreja em oração. Introdução à liturgia (Singeverga: Ora et Labora, 1965), pp. 3-5.[]
  2. Salvatore Marsili, “A Liturgia, momento histórico da salvação” in Burkhard Neunheuser (et. al.), A Liturgia, momento histórico da salvação, Anámnesis 1 (São Paulo: Edições Paulinas, 1987), pp.  39-41.[]
  3. Catechismus Catholicae Ecclesiae (Città del Vaticano: LEV, 1997), p. 293.[]
  4. Matias Augé, Liturgia. História – Celebração – Teologia – Espiritualidade, 2ª ed. (São Paulo: Ave Maria, 1998), p. 12.[]
  5. Giorgio Agamben, Opus Dei (São Paulo: Boitempo, 2013), p. 17.[]
  6. Cf. Comissão Teológica Internacional, O Cristianismo e as religiões (1997), n. 85.[]
  7. Bento XVI, Spe salvi, n. 16.[]
  8. De poena, pena, castigo.[]
  9. Jean-Pierre Vernant – Pierre Vidal-Naquet, Trabalho e escravidão na Grécia antiga (Campinas: Papirus, 1989), p. 10.[]
Rudy Albino

Rudy Albino

É professor, palestrante, Dr. em Sociologia. Pós-Doc. em Teologia e autor coluna "Liturgia e Trabalho: pistas para uma espiritualidade laical".

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“Liturgia do cargo”

Antes do séc. XX o termo liturgia nem aparecia nas atas oficiais da Igreja. No século de valorização do trabalho, em que a doutrina social da Igreja começa a ser explicitada pelo magistério papal (veja a Rerum novarum de Leão XIII) o conceito de liturgia ganha cidadania na teologia1.

Ainda assim, liturgia é uma palavra que pouco usamos em nosso cotidiano, a não ser que você seja dos âmbitos político e jurídico, nos quais se fala invariavelmente da tão pouco respeitada “liturgia do cargo”: esta se referiria a um comportamento esperado de quem exerce uma função pública; implicaria decoro, prudência, um fleuma ou impassibilidade frente a arroubos impróprios para os espaços formais, uma certa etiqueta institucional e até uma medida dosada de cerimoniosidade no falar e no agir daquele que detém cargo público, eletivo ou não. Na sensibilidade geral, se é público, o cargo exige uma ritualidade, uma formalidade. Por hora vou deixar de lado a associação de liturgia com cerimônia ou rito. Agora o que nos interessa é o aspecto inerentemente laboral e público do termo liturgia desde os seus primeiros usos.

Umas das coisas que sempre me chamou atenção estudando teologia foi, precisamente, a relação do termo liturgia-leitourgía com “obra”, “trabalho”, “serviço”, sempre de caráter “público”. Para entender tais conexões, sobretudo para podermos lê-las em termos de espiritualidade laical, creio que devemos retroceder um pouco: devemos voltar no tempo, saindo do significado explicitamente cultual e cristão atual, para a sua origem civil, política, que nos leva para a Grécia clássica.

Liturgia de poucos (com muito) em favor de muitos (com pouco)

No contexto do mundo grego antigo 2, liturgia era um serviço público realizado sobretudo por pessoas ou famílias com um posição social de destaque – e (muito) dinheiro, claro. Sem qualquer elitismo ou pedantismo é bom lembrar que, embora entendamos hoje liturgia como “ação do povo” ou ainda mais exatamente como “ação popular”, algo como um trabalho comum feito da união popular (mutirão?), isso está distante do conceito original. O próprio Catecismo da Igreja (trad. portuguesa da Santa Sé) nos dá margem para relembrá-lo: “Originariamente, a palavra ‘liturgia’ significa ‘obra pública’, ‘serviço por parte dele em favor do povo’ (n. 1068; em latim: “in nomine Populi/pro populo servitium”3 ). Aqui coexistem a natureza popular da ação, quanto o fato de que parte do povo (parcela) – alguns dos seus cidadãos – age em favor de todo o povo, em nome do povo (representação). Quem tem muito, reparte; quem sabe mais ou é mais habilidoso, aplica seu conhecimento ou sua habilidade em benefício de outros, como riqueza compartilhada. De modo geral, são cidadãos (πολίτης, polites) trabalhando em favor da cidade (πόλις, pólis), lembrando que o conceito grego de cidadania está longe do nosso.

Quem tinha certa renda era “chamado” (para não falar que, muitas vezes, era verdadeira imposição) a prestar serviços onerosos para a pólis. Preste atenção nessas três características: a liturgia era uma obra (trabalho) – onerosa (o que pode implicar tanto dinheiro quanto tempo) – pública (em benefício da coletividade). Claro que as motivações podiam ser diversas, virtuosas ou não: amor à pátria, desejo de glória ou a simples ambição. As liturgias eram de dois tipos: as cíclicas (preparação de jogos e festas) e as extraordinárias (armamento-equipamento para guerras)4.

Gostaria de deixar falar o filósofo Giorgio Agamben, que explorou precisamente esta concepção em sua obra chamada Opus Dei (no cap. 1 sobre liturgia e política), enumerando os tipos de liturgias:

… que vão da organização dos ginásios e dos jogos gímnicos (gymnasiarchia) à preparação de um coro para as festas da cidade (chorēgia, a exemplo dos coros trágicos para as Dionisíacas), da aquisição de cereais e óleos (sitēgia) a armar e comandar uma trirreme (triērarchia) em caso de guerra, de dirigir a representação da cidade nos jogos olímpicos ou délficos (architheōria) ao adiantamento que os quinze cidadãos mais ricos deviam pagar à cidade sobre as taxas de todos os cidadãos tributáveis (proeisfora). Tratava-se de prestações de caráter tanto pessoal quanto real (“cada um”, escreve Demóstenes, “liturgiza, seja com o próprio corpo, seja com as próprias sustâncias”, “tois sōmasi kai tais ousiais lēitourgēsai”), que, ainda que não fossem elencadas entre as magistraturas (archai), faziam parte do “cuidado das coisas comuns” (“tōn koinōn epimeleian”). Embora a prestação das liturgias pudesse ser extremamente onerosa (o verbo kataleitourgeō significava “arruinar-se em liturgia”) e houvesse cidadãos (chamados assim diadrasipolitai, “cidadãos latentes”) que buscavam com todos os meios subtrair-se dela, o cumprimento das liturgias era visto como um modo de proporcionar honra e reputação para si, de maneira que muitos (o caso exemplar é aquele, referente à Lísia, de um cidadão que em nove anos gastou com as liturgias mais de 20 mil dracmas) não hesitavam em renunciar ao direito de não prestar a liturgia por dois anos consecutivos. Aristóteles, na Política, coloca-se assim em guarda contra o hábito, típico das democracias, de “prestar custosas e inúteis liturgias, como as coregias, as lampadarquias e outras desse gênero”. 5
Teatro de Dionísio, um dos mais importantes da Grécia antiga.

Tudo acaba englobado na ação litúrgica original: cultura, esporte, alimentação, impostos. Claro que tudo isso tem sempre relação com a religião grega (afinal, os jogos eram olímpicos e délficos; o teatro acontecia nas festas dedicadas ao deus Dionísio…). Além disso, o financiamento dos atos de culto também aparecia como liturgia; afinal, eram eles realizados para o benefício da pólis. Portanto, o sentido político-civil tinha o seu correlato, embora com menor frequência, no uso religioso-cultual, o que pode ser encontrado na “religião dos mistérios”. Foi esse sentido que entrou na Septuaginta, a tradução grega da Bíblia. Nessa versão, leitourgía era o culto levítico, enquanto o culto do povo era latreía. No Novo Testamento o sentido técnico do termo se atenua e prevalece o sentido de culto espiritual, embora sem excluir o culto especificamente cristão (em termos de celebração litúrgica como a entendemos hoje). Mas essas são cenas dos próximos capítulos…

Não deixe de rezar a Novena do Trabalho de São Josemaría Escrivá.

Deus nos dá tudo a partir do pouco que lhe oferecemos

Não é interessante o fato de que liturgia inicialmente estivesse ligada a um trabalho com benefício comunitário, público e só depois de uma longa evolução, tenha ganhado um sentido estritamente cultual? Liturgia, primeiro trabalho, depois culto (ou os dois em conexão). Mas não um trabalho qualquer; antes, aquele voltado para a coletividade. Os motivos podiam ser egoístas, claro, como vimos. Mas o cristianismo veio purificar isso, como parte do grande movimento de elevação e plenificação – aquilo que a teologia chama de praeparatio evangelica6 – que o cristianismo operou na história. Na plenitude representada pelo evento de Cristo as intenções mais nobres e elevadas do trabalho se manifestam e são tornadas possíveis. O estímulo a gastar energias, esforços, pelos outros, não se perdeu no cristianismo; foi levado a radicalidade. O cristianismo não é uma religião de gente que pensa só em si mesma e está longe de ser individualista, unicamente centrada no além, numa “busca egoísta da salvação que se recusa a servir os outros”7. Nós não apenas trabalhamos pela salvação; a salvação é trabalho. De Deus, em primeiríssimo lugar, mas que reclama a nossa cooperação.

Por isso Deus quis que uma palavrinha como liturgia ganhasse tanta importância a ponto de chegar a ser uma forma rápida de explicar que ele realiza a sua obra no meio de nós e conosco: às vezes como operários, às vezes como ferramentas. Deus obra, atua, trabalha na história da salvação e continua a sua ação na liturgia, na economia sacramental. Lembrando que economia já nos remete à administração da casa…  Deus nos dá o muito que nós não obtemos por nossas próprias forças. Na liturgia nós entregamos a Ele um pouco, um quase nada do que Ele mesmo nos deu: pão e vinho. E ele nos “devolve” o seu próprio Filho. Essa é, de fato, uma grande obra! Opus Dei! Obra de Deus!

Jean-Pierre Vernant nos ajuda a entender as nuances das ideias de trabalho na Grécia. Ele recorda que o grego não tinha uma palavra propriamente dita para o trabalho. Ponos era o trabalho braçal, desgastante, penoso8. Ergon, embora remente ao trabalho agrícola, “é, para cada coisa e para cada ser, o produto de sua própria virtude, de seu  ἀρετή [areté, virtude]”9. Ou seja, remete à realização da própria essência. Quem faz uma obra, realiza a si memo, a sua “vocação” originária. Para o cristão, o trabalho não é um apêndice em sua vida. É o lugar da sua oferta. É a sua liturgia primeira. É a sua autorrealização.

Leia também O trabalho é liturgia, a liturgia é trabalho

Referências

  1. Cf. Aimé-Georges Martimort, “Noções preliminares” in Aimé-Georges Martimort (org.), A Igreja em oração. Introdução à liturgia (Singeverga: Ora et Labora, 1965), pp. 3-5.[]
  2. Salvatore Marsili, “A Liturgia, momento histórico da salvação” in Burkhard Neunheuser (et. al.), A Liturgia, momento histórico da salvação, Anámnesis 1 (São Paulo: Edições Paulinas, 1987), pp.  39-41.[]
  3. Catechismus Catholicae Ecclesiae (Città del Vaticano: LEV, 1997), p. 293.[]
  4. Matias Augé, Liturgia. História – Celebração – Teologia – Espiritualidade, 2ª ed. (São Paulo: Ave Maria, 1998), p. 12.[]
  5. Giorgio Agamben, Opus Dei (São Paulo: Boitempo, 2013), p. 17.[]
  6. Cf. Comissão Teológica Internacional, O Cristianismo e as religiões (1997), n. 85.[]
  7. Bento XVI, Spe salvi, n. 16.[]
  8. De poena, pena, castigo.[]
  9. Jean-Pierre Vernant – Pierre Vidal-Naquet, Trabalho e escravidão na Grécia antiga (Campinas: Papirus, 1989), p. 10.[]

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