Colunistas

A vida de oração entre panelas

A vida espiritual do leigo é possível. É bela. É possível amar Deus sem sair do mundo. É possível viver em oração enquanto se vive em missão.

A vida de oração entre panelas
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A vida de oração entre panelas

A vida espiritual do leigo é possível. É bela. É possível amar Deus sem sair do mundo. É possível viver em oração enquanto se vive em missão.

Data da Publicação: 28/03/2025
Tempo de leitura:
Autor: Dayane Dal Vesco Cardoso
Data da Publicação: 28/03/2025
Tempo de leitura:
Autor: Dayane Dal Vesco Cardoso

Todo bom católico é chamado a ter uma vida de oração que leve a uma intimidade profunda com Deus. É o que nos ensina a Santa Mãe Igreja por meio de sua doutrina e da vida dos santos.

O Catecismo da Igreja Católica, entre os parágrafos 2558 e 2565, descreve de forma pontual e assertiva como se dá essa vida de oração e quais seus efeitos para a alma do fiel. Dentre esses parágrafos, encontramos a belíssima afirmação:

“A oração, saibamo-la ou não, é o encontro da sede de Deus com a nossa. Deus tem sede de que nós tenhamos sede d’Ele.”

Sim, temos sede de Deus. As Escrituras nos comparam a terras secas e ansiosas por aquilo que só Ele pode nos dar1. “Tu é que Lhe terias pedido, e Ele te daria água viva” (Jo 4,10).

O próprio Catecismo aprofunda:

“Paradoxalmente, a nossa oração de súplica é uma resposta. Resposta ao lamento do Deus vivo: ‘Abandonou-Me a Mim, nascente de águas vivas, e foi escavar cisternas fendidas’ (Jr 2,13); resposta de fé à promessa gratuita da salvação; resposta de amor à sede do Filho Único”2.

Os santos, cada um com suas palavras, apontam para a mesma verdade: a oração é alimento, impulso, chave, resposta. É o “meio pelo qual Deus nos concede todas as graças necessárias para nossa salvação”, como dizia Santa Catarina de Sena.

Santa Teresa d’Ávila compara a alma a um jardim, cuja vida de oração é como a água retirada com esforço do poço. O balde machuca as mãos, parte da água se perde no caminho, mas as flores — a alma — são revigoradas. Ainda assim, precisamos romper com a ideia de que vida de oração se resume a longas horas de contemplação, rosários infindáveis ou retiros contínuos. Especialmente nós, leigos, que somos chamados a viver no mundo a prática da nossa fé, em meio as obrigações cotidianas, com panelas no fogo e prazos para cumprir. “Os deveres de cada momento são as sombras sob as quais se esconde a operação divina.”3

A vida espiritual do leigo não é uma imitação barata da vida monástica. E muito menos uma tentativa frustrada de viver como se fosse padre ou freira em tempo integral. Não. A vida espiritual do leigo — da mãe com três filhos pequenos, do professor exausto no fim do expediente, do empresário que tenta manter a ética num mercado sedento por lucro — é diferente. E é bela. E é possível.

O leigo não precisa fugir do mundo para ser de Deus. Não precisa abandonar o trabalho, a família, a rotina ou as responsabilidades para ter vida interior. Na verdade, seria até uma traição da própria vocação se o fizesse.

A fidelidade a Deus se expressa nos dois movimentos: o ativo, de cumprir bem nossas tarefas; e o passivo, de acolher com amor aquilo que Deus nos envia em cada instante, sendo fiel aos deveres e santificando os afazeres diários, somos também sustentados pela nossa vida de oração pessoal.

Não se engane, essa vida de intimidade com Deus não precisa ser complexa, comece com algo simples, uma oração mental ao acordar, ofereça seu dia e as boas obras a Deus logo pela manhã, leia o Evangelho do dia, reze o terço a caminho do trabalho, e caso não o terminar, espalhe algumas dezenas de amor pelo dia, pelos trechos de carro até a academia, retorno para casa, enfim… Aos poucos, e conforme a intimidade foi virando um hábito e o amor for dilatando, você poderá acrescentar outras práticas com a ajuda de um bom diretor ou confessor.

O caminho do leigo não é o claustro. É o coração do mundo. É ali que Deus também quer ser encontrado. No barulho. No trânsito. Na fila do banco. Na louça acumulada. No boleto vencido. No cansaço depois de um dia inteiro resolvendo tudo para todos. “Na realidade, a santidade pode ser reduzida a uma única prática: a fidelidade aos deveres designados por Deus.” 4 A vida de oração do leigo não é menos profunda porque é entrecortada por prazos, prantos e panelas. Ela é outra. E é igualmente fecunda.

Segundo o Catecismo5, o papel dos leigos é: “Procurar o Reino de Deus tratando das realidades temporais e ordenando-as segundo Deus.” Ou seja, transformar o mundo por dentro, sem sair dele. Ser sal da terra e luz do mundo (Mt 5,13-16). A espiritualidade do leigo, portanto, é encarnada, concreta e cotidiana. Um dos nossos deveres está em seguir o conselho de São Josemaria Escrivá: “Converte o teu trabalho em oração: oferece-o a Deus, faz com que seja hóstia agradável ao Senhor, santifica-o, e santificar-te-ás.”6 Diferente da vida monástica ou clerical, que é regida por regramentos espirituais específicos, a vida espiritual do leigo é como a água que corre nos vales: silenciosa, constante, mas profundamente necessária.

Cada tarefa — por mais simples — é incenso que sobe ao céu. A oração do leigo tem cheiro de café recém-passado, barulho de máquina de lavar, e a leveza de um colo ofertado no fim de um dia difícil.

Sim, precisamos de momentos de silêncio, de adoração, de meditação da Palavra. Mas a oração contínua de que fala a Escritura (1Ts 5,17) não se resume a palavras: é a presença de Deus no ordinário, é fazer tudo por Ele, com Ele e n’Ele.

Não devemos cair no erro de tentar inserir uma vida monástica dentro da vida laical. O monastério do leigo é o mundo. A casa, o trabalho, a rua, a escola, o hospital — ali está o nosso mosteiro. Ali somos chamados a rezar com a vida. 

Isso não quer dizer que estamos dispensados da oração estruturada. Pelo contrário: uma vida laical sem vida interior vira ativismo. Assim como uma espiritualidade sem encarnação vira fuga.

Tenhamos uma vida sacramental abundante, cultivemos momentos de oração real, de joelhos, de adoração a Jesus no Sacrário, de todas as Santas Missas que pudermos participar, de meditação. Mas sem desprezar o altar da rotina. Porque o serviço ao outro — marido, esposa, filhos, clientes, chefes — também é serviço de Deus. “Deves manter – ao longo do dia – uma constante conversa com o Senhor, que se alimente também das próprias ocorrências da tua tarefa profissional.” 7

Na dúvida entre o terço na paróquia e o cuidado da casa, da planilha, da criança que chora… saiba onde você deve estar. Não vacile. Sua vocação define sua prioridade. E a sua santidade será construída aí.

Rezamos com um olho no céu e outro no fogão. Rezamos entre uma reunião e uma mensagem no WhatsApp. Rezamos com o terço no carro e com o coração em silêncio diante da correria. Rezamos enquanto cuidamos. Enquanto lutamos. Enquanto amamos.

“Ou sabemos encontrar o Senhor na nossa vida ordinária, ou nunca O encontraremos.”8

Mas que essa conversa com Deus não seja apenas como quem manda uma mensagem: “lembrei de você” ao longo do dia, mas sim como quem faz refeições completas, jantares longos de alma e espírito, onde se derrama em verdade diante do Senhor.

A vida espiritual do leigo é possível. É bela. É urgente. É possível amar Deus sem sair do mundo. É possível viver em oração enquanto se vive em missão. É possível ser santo com boletos a serem pagos, roupa por lavar e agenda cheia.

A vida espiritual do leigo é a do sacrifício escondido. Do ofertório diário: “Senhor, recebei e santificai este meu trabalho feito com sono, com pressa, mas com amor.”

A espiritualidade do leigo não é uma adaptação da do claustro. É outra forma de doação. É ser monge por dentro, enquanto se é pai, mãe, profissional, cidadão por fora.

E é perfeitamente possível ter vida espiritual sem ter tempo livre, sem ter tudo sob controle, sem precisar “sentir” nada místico. Afinal, não são os hábitos religiosos que fazem os santos — mas a fidelidade ao chamado específico que Deus fez a cada um.

Referências

  1. Salmos 63 e 143[]
  2. CIC §2561[]
  3. Abandono à Divina Providência, pág. 18[]
  4. Abandono à Divina Providência, pág 20[]
  5. §897-913[]
  6. Forja, n. 702[]
  7. Forja, n. 745[]
  8. É Cristo que passa, n. 114[]
Dayane Dal Vesco Cardoso

Dayane Dal Vesco Cardoso

Psicoterapeuta com foco em simbólica, mapa natal e temperamentos, casada, mãe de 6 filhos, 3 aqui e 3 no céu.

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Todo bom católico é chamado a ter uma vida de oração que leve a uma intimidade profunda com Deus. É o que nos ensina a Santa Mãe Igreja por meio de sua doutrina e da vida dos santos.

O Catecismo da Igreja Católica, entre os parágrafos 2558 e 2565, descreve de forma pontual e assertiva como se dá essa vida de oração e quais seus efeitos para a alma do fiel. Dentre esses parágrafos, encontramos a belíssima afirmação:

“A oração, saibamo-la ou não, é o encontro da sede de Deus com a nossa. Deus tem sede de que nós tenhamos sede d’Ele.”

Sim, temos sede de Deus. As Escrituras nos comparam a terras secas e ansiosas por aquilo que só Ele pode nos dar1. “Tu é que Lhe terias pedido, e Ele te daria água viva” (Jo 4,10).

O próprio Catecismo aprofunda:

“Paradoxalmente, a nossa oração de súplica é uma resposta. Resposta ao lamento do Deus vivo: ‘Abandonou-Me a Mim, nascente de águas vivas, e foi escavar cisternas fendidas’ (Jr 2,13); resposta de fé à promessa gratuita da salvação; resposta de amor à sede do Filho Único”2.

Os santos, cada um com suas palavras, apontam para a mesma verdade: a oração é alimento, impulso, chave, resposta. É o “meio pelo qual Deus nos concede todas as graças necessárias para nossa salvação”, como dizia Santa Catarina de Sena.

Santa Teresa d’Ávila compara a alma a um jardim, cuja vida de oração é como a água retirada com esforço do poço. O balde machuca as mãos, parte da água se perde no caminho, mas as flores — a alma — são revigoradas. Ainda assim, precisamos romper com a ideia de que vida de oração se resume a longas horas de contemplação, rosários infindáveis ou retiros contínuos. Especialmente nós, leigos, que somos chamados a viver no mundo a prática da nossa fé, em meio as obrigações cotidianas, com panelas no fogo e prazos para cumprir. “Os deveres de cada momento são as sombras sob as quais se esconde a operação divina.”3

A vida espiritual do leigo não é uma imitação barata da vida monástica. E muito menos uma tentativa frustrada de viver como se fosse padre ou freira em tempo integral. Não. A vida espiritual do leigo — da mãe com três filhos pequenos, do professor exausto no fim do expediente, do empresário que tenta manter a ética num mercado sedento por lucro — é diferente. E é bela. E é possível.

O leigo não precisa fugir do mundo para ser de Deus. Não precisa abandonar o trabalho, a família, a rotina ou as responsabilidades para ter vida interior. Na verdade, seria até uma traição da própria vocação se o fizesse.

A fidelidade a Deus se expressa nos dois movimentos: o ativo, de cumprir bem nossas tarefas; e o passivo, de acolher com amor aquilo que Deus nos envia em cada instante, sendo fiel aos deveres e santificando os afazeres diários, somos também sustentados pela nossa vida de oração pessoal.

Não se engane, essa vida de intimidade com Deus não precisa ser complexa, comece com algo simples, uma oração mental ao acordar, ofereça seu dia e as boas obras a Deus logo pela manhã, leia o Evangelho do dia, reze o terço a caminho do trabalho, e caso não o terminar, espalhe algumas dezenas de amor pelo dia, pelos trechos de carro até a academia, retorno para casa, enfim… Aos poucos, e conforme a intimidade foi virando um hábito e o amor for dilatando, você poderá acrescentar outras práticas com a ajuda de um bom diretor ou confessor.

O caminho do leigo não é o claustro. É o coração do mundo. É ali que Deus também quer ser encontrado. No barulho. No trânsito. Na fila do banco. Na louça acumulada. No boleto vencido. No cansaço depois de um dia inteiro resolvendo tudo para todos. “Na realidade, a santidade pode ser reduzida a uma única prática: a fidelidade aos deveres designados por Deus.” 4 A vida de oração do leigo não é menos profunda porque é entrecortada por prazos, prantos e panelas. Ela é outra. E é igualmente fecunda.

Segundo o Catecismo5, o papel dos leigos é: “Procurar o Reino de Deus tratando das realidades temporais e ordenando-as segundo Deus.” Ou seja, transformar o mundo por dentro, sem sair dele. Ser sal da terra e luz do mundo (Mt 5,13-16). A espiritualidade do leigo, portanto, é encarnada, concreta e cotidiana. Um dos nossos deveres está em seguir o conselho de São Josemaria Escrivá: “Converte o teu trabalho em oração: oferece-o a Deus, faz com que seja hóstia agradável ao Senhor, santifica-o, e santificar-te-ás.”6 Diferente da vida monástica ou clerical, que é regida por regramentos espirituais específicos, a vida espiritual do leigo é como a água que corre nos vales: silenciosa, constante, mas profundamente necessária.

Cada tarefa — por mais simples — é incenso que sobe ao céu. A oração do leigo tem cheiro de café recém-passado, barulho de máquina de lavar, e a leveza de um colo ofertado no fim de um dia difícil.

Sim, precisamos de momentos de silêncio, de adoração, de meditação da Palavra. Mas a oração contínua de que fala a Escritura (1Ts 5,17) não se resume a palavras: é a presença de Deus no ordinário, é fazer tudo por Ele, com Ele e n’Ele.

Não devemos cair no erro de tentar inserir uma vida monástica dentro da vida laical. O monastério do leigo é o mundo. A casa, o trabalho, a rua, a escola, o hospital — ali está o nosso mosteiro. Ali somos chamados a rezar com a vida. 

Isso não quer dizer que estamos dispensados da oração estruturada. Pelo contrário: uma vida laical sem vida interior vira ativismo. Assim como uma espiritualidade sem encarnação vira fuga.

Tenhamos uma vida sacramental abundante, cultivemos momentos de oração real, de joelhos, de adoração a Jesus no Sacrário, de todas as Santas Missas que pudermos participar, de meditação. Mas sem desprezar o altar da rotina. Porque o serviço ao outro — marido, esposa, filhos, clientes, chefes — também é serviço de Deus. “Deves manter – ao longo do dia – uma constante conversa com o Senhor, que se alimente também das próprias ocorrências da tua tarefa profissional.” 7

Na dúvida entre o terço na paróquia e o cuidado da casa, da planilha, da criança que chora… saiba onde você deve estar. Não vacile. Sua vocação define sua prioridade. E a sua santidade será construída aí.

Rezamos com um olho no céu e outro no fogão. Rezamos entre uma reunião e uma mensagem no WhatsApp. Rezamos com o terço no carro e com o coração em silêncio diante da correria. Rezamos enquanto cuidamos. Enquanto lutamos. Enquanto amamos.

“Ou sabemos encontrar o Senhor na nossa vida ordinária, ou nunca O encontraremos.”8

Mas que essa conversa com Deus não seja apenas como quem manda uma mensagem: “lembrei de você” ao longo do dia, mas sim como quem faz refeições completas, jantares longos de alma e espírito, onde se derrama em verdade diante do Senhor.

A vida espiritual do leigo é possível. É bela. É urgente. É possível amar Deus sem sair do mundo. É possível viver em oração enquanto se vive em missão. É possível ser santo com boletos a serem pagos, roupa por lavar e agenda cheia.

A vida espiritual do leigo é a do sacrifício escondido. Do ofertório diário: “Senhor, recebei e santificai este meu trabalho feito com sono, com pressa, mas com amor.”

A espiritualidade do leigo não é uma adaptação da do claustro. É outra forma de doação. É ser monge por dentro, enquanto se é pai, mãe, profissional, cidadão por fora.

E é perfeitamente possível ter vida espiritual sem ter tempo livre, sem ter tudo sob controle, sem precisar “sentir” nada místico. Afinal, não são os hábitos religiosos que fazem os santos — mas a fidelidade ao chamado específico que Deus fez a cada um.

Referências

  1. Salmos 63 e 143[]
  2. CIC §2561[]
  3. Abandono à Divina Providência, pág. 18[]
  4. Abandono à Divina Providência, pág 20[]
  5. §897-913[]
  6. Forja, n. 702[]
  7. Forja, n. 745[]
  8. É Cristo que passa, n. 114[]

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