Colunistas

O trabalho é liturgia, a liturgia é trabalho

Qual o meio ordinário pelo qual você vive de forma plena o seu ser leigo? A nossa vida cotidiana deve estar centrada na liturgia.

O trabalho é liturgia, a liturgia é trabalho
Colunistas

O trabalho é liturgia, a liturgia é trabalho

Qual o meio ordinário pelo qual você vive de forma plena o seu ser leigo? A nossa vida cotidiana deve estar centrada na liturgia.

Data da Publicação: 08/08/2024
Tempo de leitura:
Autor: Rudy Albino
Data da Publicação: 08/08/2024
Tempo de leitura:
Autor: Rudy Albino

Os meus primeiros anos de vida eclesial foram vividos dentro do espaço sagrado da liturgia: dentro de um Santuário dedicado ao S. Coração de Jesus (Gravatal, SC), metido numa sacristia, em meio a centenas de membros do Apostolado da Oração. Fui um coroinha disciplinado, rigoroso, bem ao estilo do choir boy Cameron (Josh Flitter) em Licença para casar, auxiliar implacável do Rev. Frank (Robin Williams).

Foram horas polindo vasos sagrados, passando e dobrando alfaiais, organizando os (pobres, paupérrimos!) paramentos do meu pároco. Aprendi as primeiras lições de “decoro” litúrgico com algumas freiras espanholas – Carmelitas Missionárias Teresianas 1 –, que ensinaram a um menino brasileiro pobre de 7 anos os rudimentos de liturgia prática por meio de um português incipiente, acompanhado da eloquência do afeto e do zelo pela Igreja dessas freiras de hábito marrom-claro, das quais tenho as melhores e as mais (ma)ternas recordações.

Da pizza espanhola ao pão do céu

Nunca me esquecerei de uma delas, Ir. Ester, que fazia a melhor promoção vocacional do mundo, dizendo-me que, quando eu fosse padre, eu iria para a Espanha e comeria pizza com muito queijo. De fato, à época eu pensava em ser padre, mas não gostava muito de queijo. Além disso, até então eu não tinha comido um só pedaço de pizza. Polenta, sim, muita polenta.

Passou o tempo e algumas coisas transformaram-se: aprendi a gostar de queijo e deixei a caminhada ao sacerdócio. Curiosamente, quando fui fazer parte dos meus estudos doutorais justamente na Espanha (Universidade de Navarra), na primeira noite na cidade de Pamplona, a parte gastronômica da “profecia” da Ir. Ester se cumpriu. Depois de uma viagem extenuante, coroada com o extravio da minha bagagem, eu saboreei aquela refeição com um prazer inaudito, abraçado e consolado pelas memórias daquelas Carmelitas Teresianas do meu passado pueril.

Mas eu realmente me senti acolhido e integrado do outro lado do mundo quando participei da minha primeira missa na cidade navarra. Naquela celebração todos os meus esforços para chegar tão longe de casa tinham sentido. Ali eu estava realmente em casa.

Universidade de Navarra.

Nos meses que passei em Pamplona, num longo retiro acadêmico, eu pude participar diariamente das Missas na Universidade de Navarra – sobretudo na Clínica universitária –, período no qual eu estava longe de tudo e de todos que eu amava, exceto da liturgia e dos livros. Nesse período eu começava a rascunhar o meu livro sobre a Missa em Bento XVI 2).

Em Pamplona, no silêncio de uma bela capela – em que se misturam o dourado, o marrom e o verde oliva sob uma luz tímida –, na sobriedade dos gestos e na parcimônia das palavras dos sacerdotes, eu me vi diante de uma liturgia sóbria, sem arroubos, sem invencionices, sem verborragia, sem entretenimento. Vi uma igreja sempre cheia de gente trabalhadora, que tira o exíguo tempo livre do dia para estar com o Senhor, com a comunidade viva da Igreja. O alimento diário daquelas pessoas comuns era também e, em primeiro lugar, o pão do céu. Não eram monges nem padres, mas leigos que viviam da e a partir da liturgia. Não envergavam sotainas, mas jalecos.

A nossa Missa da vida diária

No Ano do Laicato (2018) eu me detive no tema da teologia e espiritualidade laicais. E me dei conta que temos a impressão, em nossas paróquias, de que o nosso “protagonismo” eclesial, na prática, passa por assumir funções que antes eram exclusivas dos padres: mais ministérios, mais dignidade. J. Ratzinger me ensinou justamente o contrário 3. E eu encontrei tal mentalidade contraposta já pelo Vaticano II, sobretudo no decreto Apostolicam Actuositatem: nossa missão como leigos está radicada no Batismo e na Confirmação e está orientada para a Eucaristia 4.

Isso me permite um esclarecimento. Quando você se torna ministro extraordinário da S. Comunhão, por exemplo, assume uma função que ordinariamente pertence aos ministros ordenados, mas isso não te faz mais leigo ou um católico melhor. Sei que há muitos sentimentos envolvidos nisso, mas um ministério não é uma promoção. Um ministério é uma função admirável – a serviço de uma necessidade da comunidade a partir do discernimento de um carisma pessoal – vivida por muitos com uma entrega invejável, mas a minha pergunta permanente é: qual o meio ordinário pelo qual você vive de forma plena o seu ser leigo?

Parto de um ponto: a nossa vida cotidiana deve estar centrada na liturgia. A liturgia é – deveria ser – a principal fonte da nossa espiritualidade como pais, mães… e como profissionais (algo bonito na teoria, mas difícil numa prática pouco formada doutrinariamente). Não sou eu quem o digo, mas a Sacrosanctum Concilium: “A liturgia, por sua vez, impele os fiéis, saciados pelos ‘mistérios pascais’, a viverem ‘em união perfeita’, e pede que ‘sejam fiéis na vida a quanto receberam pela fé’” (n. 10)5. Importa dizer sempre, sinteticamente, que a vida é liturgia. Por isso mesmo é que a SC pede aos fiéis leigos que “aprendam a oferecer-se a si mesmos, ao oferecer juntamente com o sacerdote, não só pelas mãos dele, a hóstia imaculada” (n. 48)6. Na liturgia nos exercitamos: nela aprendemos a exercer o nosso sacerdócio comum. Quando olhamos o sacerdote elevar a hóstia na patena, somos instados a elevar a nossa vida, diariamente, a Deus, do mesmo modo. Como? Quando olhamos a nossa família, ao redor da mesa, apresentamo-la a Deus em ação de graças na oração. Pai e mãe rezando com os filhos na hora do almoço estão exercendo o seu sacerdócio; quando vemos um filho doente na cama, oferecemos o nosso sofrimento também como ação de graças por podemos suportar a nossa dor em união com Cristo, sabendo que Deus nos abandonou (cf. Rm 8, 31-32); a escrivaninha, o balcão da loja, o caixa do supermercado são os nossos altares; nossas panelas, nossos copos e xícaras são os nossos cálices; nossas toalhas, lençóis e roupas empilhadas são nossos purificatórios; nossos uniformes, nossos aventais, são nossas estolas e casulas. O nosso dia a dia… o nosso trabalho… São as nossas Missas. E na Missa dominical (ou diária) levamos tudo isso conosco. Transformamos o nosso trabalho em liturgia, para que a nossa vida seja liturgia. A Missa na igreja possibilita a nossa Missa no mundo.

A Missa é Obra de Deus

Recentemente, dentre as minhas leituras espirituais, deparei-me com uma passagem de uma belíssima biografia de São Josemaría Escrivá, a qual narrava como o santo espanhol viveu os anos do Concílio Vaticano II e de sua aplicação, sobretudo no tocante à reforma conciliar. Fiquei muito surpreendido com a honestidade de São Josemaría, já sexagenário, ao contar as suas dificuldades em celebrar a Missa reformada, dado que tinha nutrido todo o seu sacerdócio na meditação de cada gesto e de cada palavra da forma do Santo Sacrifício tal como fora celebrado até o Vaticano II. Ele dizia: “Vi que a Missa é verdadeiramente Opus Dei, trabalho, como foi trabalho para Jesus Cristo a sua primeira Missa, a Cruz” 7.

Isso, para muitos, formados na péssima escola da “criatividade litúrgica”, é difícil de entender, pois parece sempre que somos nós a fazer a liturgia. Ensinaram-nos de modo errado um mal compreendido protagonismo da comunidade vivido como um coletivismo absoluto, que difere em muito da forma comunitária da celebração litúrgica. Há décadas vemos procissões com símbolos diversos, sobretudo com a Bíblia (até dentro um coco!); encenações do Evangelho durante a Missa; danças de todo tipo; estratégias de indução da emotividade ou a pirotecnias de todo tipo: gelo seco, jogos de luzes e até um ostensório planando num drone. E isso deve nos preocupar.

A afirmação de S. Josemaria é datada de 1966, ou seja, do ano seguinte à conclusão do Vaticano II. Quando resolvi aprofundar no tema, dois outros nomes importantes se impunham: São João Maria Vianney e Bento XVI. Na carta convocatória do Ano Sacerdotal, o papa Bento XVI citava precisamente o Cura d’Ars:

O Santo Cura ensinava os seus paroquianos sobretudo com o testemunho da vida. Pelo seu exemplo, os fiéis aprendiam a rezar, detendo-se de bom grado diante do sacrário para uma visita a Jesus Eucaristia. “Para rezar bem – explicava-lhes o Cura –, não há necessidade de falar muito. Sabe-se que Jesus está ali, no tabernáculo sagrado: abramos-Lhe o nosso coração, alegremo-nos pela sua presença sagrada. Esta é a melhor oração”. E exortava: “Vinde à comunhão, meus irmãos, vinde a Jesus. Vinde viver d’Ele para poderdes viver com Ele”. “É verdade que não sois dignos, mas tendes necessidade!”. Esta educação dos fiéis para a presença eucarística e para a comunhão adquiria uma eficácia muito particular, quando o viam celebrar o Santo Sacrifício da Missa. Quem ao mesmo assistia afirmava que “não era possível encontrar uma figura que exprimisse melhor a adoração. (…) Contemplava a Hóstia amorosamente”. Dizia ele: “Todas as boas obras reunidas não igualam o valor do sacrifício da Missa, porque aquelas são obra de homens, enquanto a Santa Missa é obra de Deus” 8.

Em termos simples: Deus fez a Missa para nós, Ele é o seu autor, seu primeiro ator, o seu primeiro sujeito.

Bento XVI insistia quase no fim do seu pontificado: “Onde o olhar sobre Deus não é determinante, todas as outras realidades perdem a sua orientação. O critério fundamental para a liturgia é a sua orientação para Deus, para poder assim participar na sua própria obra”9. Nós somos convidados, atraídos, assimilados, abarcados, abraçados por Ele, que age em primeiro lugar: “A Eucaristia arrasta-nos no ato oblativo de Jesus. Não é só de modo estático que recebemos o Logos encarnado, mas ficamos envolvidos na dinâmica da sua doação”10. Por nossas próprias forças nunca conseguiríamos oferecer o Santo Sacrifício. Seria uma pretensão babélica pretender fazer uma obra como a Eucaristia. Deus preparou tudo antes de nós e nos convidou a participar da sua obra. Somo cooperadores. Participamos da obra dele. Que graça, que privilégio!

O que fazemos em nosso cotidiano não é estranho ao sacrifício de Jesus. A obra das nossas mãos na vida diária tem sentido quando integrada na obra das mãos d’Ele. Nada de bom que a nossa vida tem é excluído da oferta do Filho de Deus. A patena e o cálice de Jesus são suficientemente largos para as nossas fadigas e as nossas alegrias.

Referências

  1. Congregação fundada pelo Beato espanhol Francisco Palau (1810-1871).[]
  2. Rudy Albino de Assunção, O Sacrifício da Palavra. A liturgia da Missa segundo Bento XVI (Campinas: Ecclesiae, 2016[]
  3. Cf. Id., A espiritualidade dos leigos à luz do magistério eclesial desde o Vaticano II (São Paulo: Paulus, 2018), p. 117[]
  4. Cf. Ibid., pp. 56-72[]
  5. Concílio Vaticano II, Documentos do Concílio Vaticano II (São Paulo: Paulus, 1997), p. 39.[]
  6. Ibid., p. 53.[]
  7. Hugo de Azevedo, São Josemaría Escrivá. Uma luz no mundo (Dois Irmãos: Minha Biblioteca Católica), p. 346.[]
  8. Bento XVI, Carta para a proclamação de um Ano Sacerdotal por ocasião do 150º aniversário do dies natalis do Santo Cura D’Ars, 16 de junho de 2009.[]
  9. Bento XVI, Audiência geral, 26 de setembro de 2012.[]
  10. Bento XVI, Carta Encíclica Deus caritas est sobre o amor cristão, n. 13.[]
Rudy Albino

Rudy Albino

É professor, palestrante, Dr. em Sociologia. Pós-Doc. em Teologia e autor coluna "Liturgia e Trabalho: pistas para uma espiritualidade laical".

Garanta seu box

O que você vai encontrar neste artigo?

Os meus primeiros anos de vida eclesial foram vividos dentro do espaço sagrado da liturgia: dentro de um Santuário dedicado ao S. Coração de Jesus (Gravatal, SC), metido numa sacristia, em meio a centenas de membros do Apostolado da Oração. Fui um coroinha disciplinado, rigoroso, bem ao estilo do choir boy Cameron (Josh Flitter) em Licença para casar, auxiliar implacável do Rev. Frank (Robin Williams).

Foram horas polindo vasos sagrados, passando e dobrando alfaiais, organizando os (pobres, paupérrimos!) paramentos do meu pároco. Aprendi as primeiras lições de “decoro” litúrgico com algumas freiras espanholas – Carmelitas Missionárias Teresianas 1 –, que ensinaram a um menino brasileiro pobre de 7 anos os rudimentos de liturgia prática por meio de um português incipiente, acompanhado da eloquência do afeto e do zelo pela Igreja dessas freiras de hábito marrom-claro, das quais tenho as melhores e as mais (ma)ternas recordações.

Da pizza espanhola ao pão do céu

Nunca me esquecerei de uma delas, Ir. Ester, que fazia a melhor promoção vocacional do mundo, dizendo-me que, quando eu fosse padre, eu iria para a Espanha e comeria pizza com muito queijo. De fato, à época eu pensava em ser padre, mas não gostava muito de queijo. Além disso, até então eu não tinha comido um só pedaço de pizza. Polenta, sim, muita polenta.

Passou o tempo e algumas coisas transformaram-se: aprendi a gostar de queijo e deixei a caminhada ao sacerdócio. Curiosamente, quando fui fazer parte dos meus estudos doutorais justamente na Espanha (Universidade de Navarra), na primeira noite na cidade de Pamplona, a parte gastronômica da “profecia” da Ir. Ester se cumpriu. Depois de uma viagem extenuante, coroada com o extravio da minha bagagem, eu saboreei aquela refeição com um prazer inaudito, abraçado e consolado pelas memórias daquelas Carmelitas Teresianas do meu passado pueril.

Mas eu realmente me senti acolhido e integrado do outro lado do mundo quando participei da minha primeira missa na cidade navarra. Naquela celebração todos os meus esforços para chegar tão longe de casa tinham sentido. Ali eu estava realmente em casa.

Universidade de Navarra.

Nos meses que passei em Pamplona, num longo retiro acadêmico, eu pude participar diariamente das Missas na Universidade de Navarra – sobretudo na Clínica universitária –, período no qual eu estava longe de tudo e de todos que eu amava, exceto da liturgia e dos livros. Nesse período eu começava a rascunhar o meu livro sobre a Missa em Bento XVI 2).

Em Pamplona, no silêncio de uma bela capela – em que se misturam o dourado, o marrom e o verde oliva sob uma luz tímida –, na sobriedade dos gestos e na parcimônia das palavras dos sacerdotes, eu me vi diante de uma liturgia sóbria, sem arroubos, sem invencionices, sem verborragia, sem entretenimento. Vi uma igreja sempre cheia de gente trabalhadora, que tira o exíguo tempo livre do dia para estar com o Senhor, com a comunidade viva da Igreja. O alimento diário daquelas pessoas comuns era também e, em primeiro lugar, o pão do céu. Não eram monges nem padres, mas leigos que viviam da e a partir da liturgia. Não envergavam sotainas, mas jalecos.

A nossa Missa da vida diária

No Ano do Laicato (2018) eu me detive no tema da teologia e espiritualidade laicais. E me dei conta que temos a impressão, em nossas paróquias, de que o nosso “protagonismo” eclesial, na prática, passa por assumir funções que antes eram exclusivas dos padres: mais ministérios, mais dignidade. J. Ratzinger me ensinou justamente o contrário 3. E eu encontrei tal mentalidade contraposta já pelo Vaticano II, sobretudo no decreto Apostolicam Actuositatem: nossa missão como leigos está radicada no Batismo e na Confirmação e está orientada para a Eucaristia 4.

Isso me permite um esclarecimento. Quando você se torna ministro extraordinário da S. Comunhão, por exemplo, assume uma função que ordinariamente pertence aos ministros ordenados, mas isso não te faz mais leigo ou um católico melhor. Sei que há muitos sentimentos envolvidos nisso, mas um ministério não é uma promoção. Um ministério é uma função admirável – a serviço de uma necessidade da comunidade a partir do discernimento de um carisma pessoal – vivida por muitos com uma entrega invejável, mas a minha pergunta permanente é: qual o meio ordinário pelo qual você vive de forma plena o seu ser leigo?

Parto de um ponto: a nossa vida cotidiana deve estar centrada na liturgia. A liturgia é – deveria ser – a principal fonte da nossa espiritualidade como pais, mães… e como profissionais (algo bonito na teoria, mas difícil numa prática pouco formada doutrinariamente). Não sou eu quem o digo, mas a Sacrosanctum Concilium: “A liturgia, por sua vez, impele os fiéis, saciados pelos ‘mistérios pascais’, a viverem ‘em união perfeita’, e pede que ‘sejam fiéis na vida a quanto receberam pela fé’” (n. 10)5. Importa dizer sempre, sinteticamente, que a vida é liturgia. Por isso mesmo é que a SC pede aos fiéis leigos que “aprendam a oferecer-se a si mesmos, ao oferecer juntamente com o sacerdote, não só pelas mãos dele, a hóstia imaculada” (n. 48)6. Na liturgia nos exercitamos: nela aprendemos a exercer o nosso sacerdócio comum. Quando olhamos o sacerdote elevar a hóstia na patena, somos instados a elevar a nossa vida, diariamente, a Deus, do mesmo modo. Como? Quando olhamos a nossa família, ao redor da mesa, apresentamo-la a Deus em ação de graças na oração. Pai e mãe rezando com os filhos na hora do almoço estão exercendo o seu sacerdócio; quando vemos um filho doente na cama, oferecemos o nosso sofrimento também como ação de graças por podemos suportar a nossa dor em união com Cristo, sabendo que Deus nos abandonou (cf. Rm 8, 31-32); a escrivaninha, o balcão da loja, o caixa do supermercado são os nossos altares; nossas panelas, nossos copos e xícaras são os nossos cálices; nossas toalhas, lençóis e roupas empilhadas são nossos purificatórios; nossos uniformes, nossos aventais, são nossas estolas e casulas. O nosso dia a dia… o nosso trabalho… São as nossas Missas. E na Missa dominical (ou diária) levamos tudo isso conosco. Transformamos o nosso trabalho em liturgia, para que a nossa vida seja liturgia. A Missa na igreja possibilita a nossa Missa no mundo.

A Missa é Obra de Deus

Recentemente, dentre as minhas leituras espirituais, deparei-me com uma passagem de uma belíssima biografia de São Josemaría Escrivá, a qual narrava como o santo espanhol viveu os anos do Concílio Vaticano II e de sua aplicação, sobretudo no tocante à reforma conciliar. Fiquei muito surpreendido com a honestidade de São Josemaría, já sexagenário, ao contar as suas dificuldades em celebrar a Missa reformada, dado que tinha nutrido todo o seu sacerdócio na meditação de cada gesto e de cada palavra da forma do Santo Sacrifício tal como fora celebrado até o Vaticano II. Ele dizia: “Vi que a Missa é verdadeiramente Opus Dei, trabalho, como foi trabalho para Jesus Cristo a sua primeira Missa, a Cruz” 7.

Isso, para muitos, formados na péssima escola da “criatividade litúrgica”, é difícil de entender, pois parece sempre que somos nós a fazer a liturgia. Ensinaram-nos de modo errado um mal compreendido protagonismo da comunidade vivido como um coletivismo absoluto, que difere em muito da forma comunitária da celebração litúrgica. Há décadas vemos procissões com símbolos diversos, sobretudo com a Bíblia (até dentro um coco!); encenações do Evangelho durante a Missa; danças de todo tipo; estratégias de indução da emotividade ou a pirotecnias de todo tipo: gelo seco, jogos de luzes e até um ostensório planando num drone. E isso deve nos preocupar.

A afirmação de S. Josemaria é datada de 1966, ou seja, do ano seguinte à conclusão do Vaticano II. Quando resolvi aprofundar no tema, dois outros nomes importantes se impunham: São João Maria Vianney e Bento XVI. Na carta convocatória do Ano Sacerdotal, o papa Bento XVI citava precisamente o Cura d’Ars:

O Santo Cura ensinava os seus paroquianos sobretudo com o testemunho da vida. Pelo seu exemplo, os fiéis aprendiam a rezar, detendo-se de bom grado diante do sacrário para uma visita a Jesus Eucaristia. “Para rezar bem – explicava-lhes o Cura –, não há necessidade de falar muito. Sabe-se que Jesus está ali, no tabernáculo sagrado: abramos-Lhe o nosso coração, alegremo-nos pela sua presença sagrada. Esta é a melhor oração”. E exortava: “Vinde à comunhão, meus irmãos, vinde a Jesus. Vinde viver d’Ele para poderdes viver com Ele”. “É verdade que não sois dignos, mas tendes necessidade!”. Esta educação dos fiéis para a presença eucarística e para a comunhão adquiria uma eficácia muito particular, quando o viam celebrar o Santo Sacrifício da Missa. Quem ao mesmo assistia afirmava que “não era possível encontrar uma figura que exprimisse melhor a adoração. (…) Contemplava a Hóstia amorosamente”. Dizia ele: “Todas as boas obras reunidas não igualam o valor do sacrifício da Missa, porque aquelas são obra de homens, enquanto a Santa Missa é obra de Deus” 8.

Em termos simples: Deus fez a Missa para nós, Ele é o seu autor, seu primeiro ator, o seu primeiro sujeito.

Bento XVI insistia quase no fim do seu pontificado: “Onde o olhar sobre Deus não é determinante, todas as outras realidades perdem a sua orientação. O critério fundamental para a liturgia é a sua orientação para Deus, para poder assim participar na sua própria obra”9. Nós somos convidados, atraídos, assimilados, abarcados, abraçados por Ele, que age em primeiro lugar: “A Eucaristia arrasta-nos no ato oblativo de Jesus. Não é só de modo estático que recebemos o Logos encarnado, mas ficamos envolvidos na dinâmica da sua doação”10. Por nossas próprias forças nunca conseguiríamos oferecer o Santo Sacrifício. Seria uma pretensão babélica pretender fazer uma obra como a Eucaristia. Deus preparou tudo antes de nós e nos convidou a participar da sua obra. Somo cooperadores. Participamos da obra dele. Que graça, que privilégio!

O que fazemos em nosso cotidiano não é estranho ao sacrifício de Jesus. A obra das nossas mãos na vida diária tem sentido quando integrada na obra das mãos d’Ele. Nada de bom que a nossa vida tem é excluído da oferta do Filho de Deus. A patena e o cálice de Jesus são suficientemente largos para as nossas fadigas e as nossas alegrias.

Referências

  1. Congregação fundada pelo Beato espanhol Francisco Palau (1810-1871).[]
  2. Rudy Albino de Assunção, O Sacrifício da Palavra. A liturgia da Missa segundo Bento XVI (Campinas: Ecclesiae, 2016[]
  3. Cf. Id., A espiritualidade dos leigos à luz do magistério eclesial desde o Vaticano II (São Paulo: Paulus, 2018), p. 117[]
  4. Cf. Ibid., pp. 56-72[]
  5. Concílio Vaticano II, Documentos do Concílio Vaticano II (São Paulo: Paulus, 1997), p. 39.[]
  6. Ibid., p. 53.[]
  7. Hugo de Azevedo, São Josemaría Escrivá. Uma luz no mundo (Dois Irmãos: Minha Biblioteca Católica), p. 346.[]
  8. Bento XVI, Carta para a proclamação de um Ano Sacerdotal por ocasião do 150º aniversário do dies natalis do Santo Cura D’Ars, 16 de junho de 2009.[]
  9. Bento XVI, Audiência geral, 26 de setembro de 2012.[]
  10. Bento XVI, Carta Encíclica Deus caritas est sobre o amor cristão, n. 13.[]

Cadastre-se para receber nossos conteúdos exclusivos e fique por dentro de todas as novidades!

Insira seu nome e e-mail para receber atualizações da MBC.
Selecione os conteúdos que mais te interessam e fique por dentro de todas as novidades!

Ao clicar em quero assinar você declara aceita receber conteúdos em seu email e concorda com a nossa política de privacidade.