Colunistas, Destaque

Autocontrole e senhorio: ordenando os afetos

Saber a importância dessa formação dos afetos ajuda tanto a valorizar como a aprofundar bons sentimentos. Saiba sobre autocontrole e senhorio.

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Autocontrole e senhorio: ordenando os afetos

Saber a importância dessa formação dos afetos ajuda tanto a valorizar como a aprofundar bons sentimentos. Saiba sobre autocontrole e senhorio.

Data da Publicação: 07/10/2024
Tempo de leitura:
Autor: Laise Sales
Data da Publicação: 07/10/2024
Tempo de leitura:
Autor: Laise Sales

Para sermos felizes, precisamos cuidar de todas as dimensões da alma e do corpo. A afetividade é a zona da alma que nos ajuda a coordenar, integrar a natureza pessoal. Ela vincula a sensibilidade em sentido estrito (natureza orgânica) à razão, entendida como a potência superior do homem, que comporta sua memória, inteligência e vontade.

A afetividade é o nosso “coração”, o locus da alma que se relaciona com os outros e com o mundo por meio da compaixão, da empatia e da alegria. Também é o lugar onde habitam a antipatia, a irritação, o medo. É importante não confundir afetividade com vontade. Elas são dimensões distintas da alma.

A afetividade é a zona intermediária da alma, que se comunica com a sensibilidade e a razão, integrando-as. É a dimensão anímica em que se unem o sensível e o intelectual, e na qual podemos experimentar pessoalmente que o homem é verdadeiramente unidade de corpo e alma. É como se fosse a sensibilidade interior.

A vontade, por sua vez, é intelectiva. Está para o intelecto como a afetividade está para os sentidos. O “querer” da vontade é deliberativo, fruto de uma decisão livre e racional; já o movimento próprio da afetividade é mais próximo do que, em português, traduzimos com a expressão “estar a fim” de algo.

“Querer” é diferente de “estar a fim”.

O “querer” tem raízes mais profundas; expressa um esclarecimento maior acerca da ação e do bem que se almeja com a atitude.

O “estar a fim” da afetividade diz respeito a um apetite, a uma inclinação dos sentidos, ainda que seja uma sensibilidade interior, imaterial. É todo o mundo das paixões, emoções, que está muito ligado à sensibilidade corpórea, à influência dos hormônios e dos estados fisiológicos.

Na afetividade habitam diferentes formas de perturbação da subjetividade. Os sentimentos são formas de perturbação da subjetividade que definem o modo de sentir as tendências e abrem o homem à apreciação do que o rodeia, gerando uma conduta, mobilizando uma ação que se distende no tempo.

É diferente da sensação, que é uma reação mais francamente sensível, uma manifestação corporal. A sensação exprime a consciência do próprio corpo e termina com o fim da experiência.

Os afetos podem ser emoções, perturbações mais circunscritas, momentâneas e organicamente mais intensas que o sentimento; ao passo que as paixões são afetos especialmente intensos e arrebatadores, que costumam roubar a capacidade intelectual do homem de deliberar sobre as ações adequadas a serem tomadas ante o estímulo ambiental ou psicológico.

A educação dos afetos

O homem é um ser livre, que, por sua dimensão intelectiva, é capaz de romper a necessidade do circuito estímulo-resposta. Ele não realiza fins próprios da espécie. Não existem, na verdade, tais fins. Os homens se movem em direção a um fim que eles mesmos se fixam.

A humanidade representa um grau superior da vida (acima dos vegetais e dos animais), mas que não se dá de forma unilateral. Não basta “saber” nem “querer” – é necessário adquirir um modo de ser, adquirir hábitos que apliquem o saber e concretizem o “querer”. Esses hábitos são as virtudes.

O controle dos instintos é algo propriamente humano. Por meio de nossa inteligência ou razão, temos a capacidade de identificar o bem. Esse discernimento é uma atividade intelectual. Por isso a formação dos afetos precisa se apoiar em uma boa formação intelectual. Saber a importância dessa formação ajuda tanto a valorizar como a aprofundar bons sentimentos.

A vontade, ao lado da inteligência, também é fundamental na educação dos afetos, porque é a capacidade de querer o bem (não de querer qualquer coisa). É um apetite intelectual, uma inclinação racional para o bem: um “querer” movido pela razão.

O papel da afetividade humana na busca do bem é impulsionar ou retrair a ação, levar-nos ou afastar-nos de uma vivência subjetiva da felicidade e plenitude. Por exemplo: quando sentimos “vontade” de sermos mais piedosas; quando “queremos” ser mais amorosas com os filhos; quando experimentamos um sentimento forte na Missa; ou quando nos empolgamos em uma formação e queremos ser mais cultas ou mais virtuosas.

Usei as aspas de modo intencional para frisar que o “querer” experimentado não se refere necessariamente aos atos da vontade. A natureza dessa inclinação depende da profundidade e da racionalidade do “querer”.

De todo modo, nossos bons sentimentos precisam de raízes, precisam se fincar em dimensões mais profundas da alma, como a vontade e a razão. “Queres de verdade?”, pergunta São Josemaria no ponto 316 de Caminho. É uma decisão que precisa passar pela compreensão de qual é o seu verdadeiro fundamento.

Por outro lado, também temos que saber desviar os sentimentos ruins. Se uma ideia ruim fica passando pela nossa cabeça, não podemos alimentar vinganças, ciúmes, afetos desordenados por outras pessoas.

A vida humana é encarnada, dotada de emotividade. Só seremos íntegros quando razão e vontade estiverem alinhadas aos nossos afetos. É necessário que a contemplação das verdades espirituais, morais e intelectuais penetre nos nossos corações. Por isso uma linha que negue os sentimentos estará incompleta.

A escola racionalista é um exemplo desse equívoco, que considera os sentimentos próprios de seres frágeis. Ela repousa em um falso dualismo (corpo versus alma) que desnatura o humano, negando a verdadeira antropologia. Essa indiferença fria ao núcleo caloroso, ardente da nossa alma, provoca a morte do que é animado, vivo.

Ao mesmo tempo, a via do sentimentalismo, muito em voga na nossa sociedade hoje em dia, especialmente na sensibilidade latina, enfatiza de maneira excessiva a importância dos sentimentos, atribuindo aos afetos até mesmo o fundamento de instituições e vínculos. Essa abordagem equivocada da afetividade reforça a desordem da nossa alma, porque não temos domínio dos sentimentos e não podemos considerá-los a base de estruturas ordenadoras da sociedade, como o casamento, a paternidade, a família ou o Estado.

Se os sentimentos não podem ser o fundamento de instituições ou estruturas sociais, qual a sua finalidade? Os sentimentos devem ser dirigidos para favorecer o fim último, superior do ser humano. Devem ser educados para predispor as condutas em um sentido ou em outro, na medida em que produzem valorizações sobre pessoas, coisas ou situações.

Os sentimentos reforçam as convicções e lhes dão força: quando sentimos as coisas, elas se tornam mais nossas. Envolver as coisas com paixão é enchê-las de sentido. Percebemos que quem desfruta do que realiza torna-se atraente, mobiliza o impulso vital de quem faz o que acredita.

A educação dos afetos nos oferece a possibilidade de administrar a sensibilidade, corrigindo os impulsos que contrariam a vontade mais profunda, que está intelectualmente amparada.  Quem não vive segundo as suas convicções, acabará acreditando no modo como vive, e isso acarretará o que os psicólogos chamam de dissonância cognitiva, algo que gera muito sofrimento psíquico e, no limite, impede a nossa felicidade. Trair-se é a pior forma de traição. Devo guiar meus sentimentos e não ser guiada por eles.

Como toda forma de educação, a da afetividade é contínua e requer perseverança. Para conquistar o senhorio de si mesmo é primordial conhecer adequadamente a realidade e o mecanismo afetivo subjacente às nossas reações. Isso exige luta; requer tempo, esforço e paciência, para que cheguemos a amar a virtude, a comprazer-nos em fazer o bem.

A luta nunca é definitiva, pois o surgimento e desaparecimento dos sentimentos não é totalmente voluntário. Devemos saber viver sem nos deixar dominar por um pathos. Os sentimentos são irracionais na sua origem, mas harmonizáveis pela razão.

O melhor modo de educar o homem, de maneira que se consiga nele a harmonia das diferentes partes de sua alma, consiste em saber canalizar e orientar os sentimentos. É preciso mostrar como se consegue que os sentimentos colaborem com as tendências e a vontade, sem deixar com que atuem sozinhos, de modo a causar anomalias e patologias na alma.

Isso se alcança pelo exercício de virtudes, como a prudência (sofrosyne) – a moderação, o sossego, o autodomínio e a temperança, de que falarei mais adiante. A temperança atua na primeira camada, que é o corpo, na força irracional dos nossos apetites corpóreos, especialmente da gula e da sexualidade desordenada.

Podemos refletir ainda sobre os objetivos da educação da afetividade. O primeiro deles é alcançar proporção, simetria entre os sentimentos e a realidade, compreendendo o modo, o momento e a intensidade de expressar um sentimento. Pela educação da afetividade também evitamos dissonâncias por excesso (sentimentalismo) ou por defeito (cerebral, frio).

A prática das virtudes não é uma mera negação das nossas inclinações. O nosso ideal não é de indiferentismo. Inteligência, vontade e afeto devem crescer juntos, de mãos dadas. A integridade do ser humano exige essa aproximação, a unidade da personalidade que nos leva a ordenar os interesses e afetos.

A formação da personalidade deve encher o nosso coração de um amor tão forte que nos capacite a considerar os sentimentos em um contexto mais amplo, dando-nos recursos para enfrentar os desafios diários e ajudando-nos a captar o sentido positivo e transcendente dos acontecimentos mais agradáveis (ou seja, aprender a gozar das realidades humanas e estar nelas com sentido superior, mais profundo).

Saber ordenar os afetos não é ignorá-los ou abafá-los, mas saber colocá-los em seu devido lugar. A ordenação pode implicar, em determinados momentos, em saber prescindir de algo bom quando convém – quando a realidade ou a caridade pedem –, em nome de um interesse ou objetivo maior do que a emoção pediria.

Educar a afetividade nos leva a sermos capazes de sentir alegria, um prazer que é a verdadeira felicidade, com o bem realizado. Isso significa ter alegria com a prática das virtudes. Ser virtuoso requer saborear o bem, na formação do “bom gosto”. É a formação da afetividade e não o hábito de se opor sistematicamente às nossas inclinações: isso ainda é continência.

A continência é a fase em que já temos um movimento interior de resistência a uma má inclinação, mas isso ainda é árduo, difícil. Custa-nos largar um prazer em nome do que é certo, do bem de fato. É uma fase inicial, enquanto ainda está sendo formada a virtude.

O objetivo da educação da afetividade – e da nossa realização pessoal – não é simplesmente “vencer o mal”, mas adquirir o gosto pelo comportamento de amor ao bem. A nossa meta é configurar a afetividade de tal sorte que produza alegria perante o bem e tristeza e mal-estar perante o mal.

Enquanto lutamos, devemos saber que não estamos nos habituando a sofrer com resignação; não se trata de uma mera conformidade com o que é árduo, mas de um processo de aprendizado para nos deleitarmos com o bem, ainda que, por enquanto, a luta nos contrarie.

Crescer nas virtudes faz com que a afetividade se volte e fixe no que pode satisfazer verdadeiramente as aspirações profundas e a finalidade do ser humano; e a deixar em segundo plano desejos que não são relevantes para a realização pessoal.

Deixar-se guiar pelas virtudes permite que a nossa afetividade desfrute do que é verdadeiramente grandioso. Inicialmente, a luta ascética é mais operativa do que afetiva, porque as virtudes nos levam a fazer o bem e assim nos ensinam a sentir corretamente. Mas o primeiro passo é a continência; é o “se aguentar”, “resistir”, “não ceder”, porque já sabemos que o melhor é não ceder.

Como já vimos sobre a desordem da alma, sempre buscamos o bem, mas muitas vezes o que nos parece bom não o é; inclinamo-nos a algo que nos apetece mas não por uma escolha racional, objetiva, pensada, e sim por um movimento emotivo, sentimental.

O que a virtude faz é escolher o que vamos fazer, como vamos operar, conforme o critério e a hierarquia definida pela razão. Se a afetividade estiver bem ordenada, ela ajuda a razão a sentir alegria e prazer com os bens mais valiosos e desejáveis; se ela está desordenada, ofusca a razão. Uma afetividade ordenada ajuda a atuar bem e uma boa atuação ajuda a ordenar os afetos: é um círculo virtuoso.

Não podemos controlar diretamente os afetos. Não está totalmente sob o nosso controle sermos mais corajosos, menos irados, mais alegres ou menos ciumentos; porque o medo, a ira, a alegria e os ciúmes são algumas emoções de base do nosso ser. Mas podemos refletir por que elas surgem, quando surgem e como devemos reagir caso surjam.

A vontade tem influência indireta, mas eficaz sobre as emoções. E se a exercemos continuamente, ela se cristaliza e reforça o afeto. A vontade atua de modo “político” sobre os afetos, como ensinou Aristóteles. Tem poder semelhante a um governante sobre cidadãos livres: pode tomar certas medidas para obter determinados resultados – aumentar ou diminuir impostos, declarar feriado para mobilizar algum movimento, mexer no câmbio da moeda, etc.

Ficar vendo a vida de alguém que consideremos perfeita, por exemplo, vai suscitar inveja; se mexemos no celular do marido, estamos querendo encontrar alguma coisa para sentir ciúmes; mas, se nos arrumamos para nossos maridos e colocamos uma lingerie nova, nos animamos para estar com ele e ter momentos agradáveis. Se tomamos uma taça de vinho, provocamos um estado transitório de euforia; se ficamos pensando em uma coisa chata que alguém nos fez, vamos estimular o rancor e a vingança, promovendo a ira. Esses são apenas alguns exemplos, dos muitos possíveis.

Os atos voluntários contribuem para criar uma “conaturalidade” afetiva com o bem para o qual a vontade se move. Devemos prestar muita atenção a este duplo movimento da vontade, que é interior e profundo: querer o bem e querer o bem.

Ao querermos o bem, cuidamos da intenção e buscamos sinceramente o bem oculto na virtude. Precisamos retificar a intenção continuamente para acertar os motivos pelos quais vale a pena fazer algo. Não basta apenas cumprir regras, mas sim lutar por uma vida refletida e purificada pelo querer consciente.

Quando queremos o bem, somos intimamente livres e entendemos que a ação é nobre. É possível então dizer que “estou a fim” do que eu “quero”, alinhando a afetividade à vontade livre.

A virtude só estará totalmente formada quando o bem tiver um reflexo positivo na afetividade. Essa formação vai demorar, porque é um processo de reconhecimento do bem pelo intelecto, de escolha do bem pela vontade (com reta intenção e plena liberdade) e de sentir o bem de modo positivo pela afetividade. E, claro, de lutar para concretizar esse bem, realizando-o de fato.

São muitas as dimensões a serem alinhadas, mas, com a graça de Deus, esse processo não só é possível como é algo gratificante e preenche a vida inteira de sentido. Também notamos que, ao buscarmos sinceramente ordenar uma dimensão da alma e crescer em uma determinada virtude, a nossa melhora é global.

Não conseguir logo não deve nos desanimar. Não é sinal de que não queremos e nem de que somos incapazes de conseguir. Cada passo é mesmo pequeno e só conseguimos perceber com o passar do tempo. Não se trata da submissão violenta dos sentimentos. O objetivo não é apenas reprimir manifestações externas, mas moldar uma reação interna, para que seja a virtude uma reação própria do nosso modo de ser.

É um trabalho a longo prazo, sem a obsessão por resultados imediatos, porque crescer na humildade é a base de todas as virtudes e sabemos que, mesmo chamados à plenitude, somos ainda imperfeitos e desordenados.

Quais passos concretos podemos dar na luta pela educação dos afetos?

Em primeiro lugar, manifestações externas. Elas podem parecer à primeira vista artificiais, porque os afetos ainda estão sendo educados. Exemplos: “sorrir”, “rezar” ou “fazer amor com o marido” sem “estar a fim”. Não é porque nossa inclinação mais superficial não se dirige para aquele bem que a ação não vale.

Devemos aprender a rejeitar ou aceitar os sentimentos conforme a decisão livre e racional que tivemos antes da emoção surgir. Se decido amar mais a Deus e ao meu marido, tenho que me esforçar para isso concretamente, por meio de manifestações externas, sendo generosa e amável mesmo quando “não estou a fim”. Essas manifestações também nos moldam de fora para dentro.

Façamos o que devemos. Não podemos sucumbir ao que nossa inclinação manda naquele momento, mas ater-nos ao que já havíamos estabelecido.

Coloquemos cada coisa no seu lugar física e espiritualmente. Parece uma meta simples, mas requer um sacrifício constante para estarmos inteiras e atentas.

O exame de consciência é crucial para conhecer nossos afetos (e já saber que não são tudo o que somos, mas uma parte de nós).

Saiba mais sobre Exame de Consciência.

Laise Sales

Laise Sales

Professora, doutora em História da Cultura, esposa e mãe, fundadora da Comunidade Entre Esposas, aborda temas de Antropologia Filosófica.

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Para sermos felizes, precisamos cuidar de todas as dimensões da alma e do corpo. A afetividade é a zona da alma que nos ajuda a coordenar, integrar a natureza pessoal. Ela vincula a sensibilidade em sentido estrito (natureza orgânica) à razão, entendida como a potência superior do homem, que comporta sua memória, inteligência e vontade.

A afetividade é o nosso “coração”, o locus da alma que se relaciona com os outros e com o mundo por meio da compaixão, da empatia e da alegria. Também é o lugar onde habitam a antipatia, a irritação, o medo. É importante não confundir afetividade com vontade. Elas são dimensões distintas da alma.

A afetividade é a zona intermediária da alma, que se comunica com a sensibilidade e a razão, integrando-as. É a dimensão anímica em que se unem o sensível e o intelectual, e na qual podemos experimentar pessoalmente que o homem é verdadeiramente unidade de corpo e alma. É como se fosse a sensibilidade interior.

A vontade, por sua vez, é intelectiva. Está para o intelecto como a afetividade está para os sentidos. O “querer” da vontade é deliberativo, fruto de uma decisão livre e racional; já o movimento próprio da afetividade é mais próximo do que, em português, traduzimos com a expressão “estar a fim” de algo.

“Querer” é diferente de “estar a fim”.

O “querer” tem raízes mais profundas; expressa um esclarecimento maior acerca da ação e do bem que se almeja com a atitude.

O “estar a fim” da afetividade diz respeito a um apetite, a uma inclinação dos sentidos, ainda que seja uma sensibilidade interior, imaterial. É todo o mundo das paixões, emoções, que está muito ligado à sensibilidade corpórea, à influência dos hormônios e dos estados fisiológicos.

Na afetividade habitam diferentes formas de perturbação da subjetividade. Os sentimentos são formas de perturbação da subjetividade que definem o modo de sentir as tendências e abrem o homem à apreciação do que o rodeia, gerando uma conduta, mobilizando uma ação que se distende no tempo.

É diferente da sensação, que é uma reação mais francamente sensível, uma manifestação corporal. A sensação exprime a consciência do próprio corpo e termina com o fim da experiência.

Os afetos podem ser emoções, perturbações mais circunscritas, momentâneas e organicamente mais intensas que o sentimento; ao passo que as paixões são afetos especialmente intensos e arrebatadores, que costumam roubar a capacidade intelectual do homem de deliberar sobre as ações adequadas a serem tomadas ante o estímulo ambiental ou psicológico.

A educação dos afetos

O homem é um ser livre, que, por sua dimensão intelectiva, é capaz de romper a necessidade do circuito estímulo-resposta. Ele não realiza fins próprios da espécie. Não existem, na verdade, tais fins. Os homens se movem em direção a um fim que eles mesmos se fixam.

A humanidade representa um grau superior da vida (acima dos vegetais e dos animais), mas que não se dá de forma unilateral. Não basta “saber” nem “querer” – é necessário adquirir um modo de ser, adquirir hábitos que apliquem o saber e concretizem o “querer”. Esses hábitos são as virtudes.

O controle dos instintos é algo propriamente humano. Por meio de nossa inteligência ou razão, temos a capacidade de identificar o bem. Esse discernimento é uma atividade intelectual. Por isso a formação dos afetos precisa se apoiar em uma boa formação intelectual. Saber a importância dessa formação ajuda tanto a valorizar como a aprofundar bons sentimentos.

A vontade, ao lado da inteligência, também é fundamental na educação dos afetos, porque é a capacidade de querer o bem (não de querer qualquer coisa). É um apetite intelectual, uma inclinação racional para o bem: um “querer” movido pela razão.

O papel da afetividade humana na busca do bem é impulsionar ou retrair a ação, levar-nos ou afastar-nos de uma vivência subjetiva da felicidade e plenitude. Por exemplo: quando sentimos “vontade” de sermos mais piedosas; quando “queremos” ser mais amorosas com os filhos; quando experimentamos um sentimento forte na Missa; ou quando nos empolgamos em uma formação e queremos ser mais cultas ou mais virtuosas.

Usei as aspas de modo intencional para frisar que o “querer” experimentado não se refere necessariamente aos atos da vontade. A natureza dessa inclinação depende da profundidade e da racionalidade do “querer”.

De todo modo, nossos bons sentimentos precisam de raízes, precisam se fincar em dimensões mais profundas da alma, como a vontade e a razão. “Queres de verdade?”, pergunta São Josemaria no ponto 316 de Caminho. É uma decisão que precisa passar pela compreensão de qual é o seu verdadeiro fundamento.

Por outro lado, também temos que saber desviar os sentimentos ruins. Se uma ideia ruim fica passando pela nossa cabeça, não podemos alimentar vinganças, ciúmes, afetos desordenados por outras pessoas.

A vida humana é encarnada, dotada de emotividade. Só seremos íntegros quando razão e vontade estiverem alinhadas aos nossos afetos. É necessário que a contemplação das verdades espirituais, morais e intelectuais penetre nos nossos corações. Por isso uma linha que negue os sentimentos estará incompleta.

A escola racionalista é um exemplo desse equívoco, que considera os sentimentos próprios de seres frágeis. Ela repousa em um falso dualismo (corpo versus alma) que desnatura o humano, negando a verdadeira antropologia. Essa indiferença fria ao núcleo caloroso, ardente da nossa alma, provoca a morte do que é animado, vivo.

Ao mesmo tempo, a via do sentimentalismo, muito em voga na nossa sociedade hoje em dia, especialmente na sensibilidade latina, enfatiza de maneira excessiva a importância dos sentimentos, atribuindo aos afetos até mesmo o fundamento de instituições e vínculos. Essa abordagem equivocada da afetividade reforça a desordem da nossa alma, porque não temos domínio dos sentimentos e não podemos considerá-los a base de estruturas ordenadoras da sociedade, como o casamento, a paternidade, a família ou o Estado.

Se os sentimentos não podem ser o fundamento de instituições ou estruturas sociais, qual a sua finalidade? Os sentimentos devem ser dirigidos para favorecer o fim último, superior do ser humano. Devem ser educados para predispor as condutas em um sentido ou em outro, na medida em que produzem valorizações sobre pessoas, coisas ou situações.

Os sentimentos reforçam as convicções e lhes dão força: quando sentimos as coisas, elas se tornam mais nossas. Envolver as coisas com paixão é enchê-las de sentido. Percebemos que quem desfruta do que realiza torna-se atraente, mobiliza o impulso vital de quem faz o que acredita.

A educação dos afetos nos oferece a possibilidade de administrar a sensibilidade, corrigindo os impulsos que contrariam a vontade mais profunda, que está intelectualmente amparada.  Quem não vive segundo as suas convicções, acabará acreditando no modo como vive, e isso acarretará o que os psicólogos chamam de dissonância cognitiva, algo que gera muito sofrimento psíquico e, no limite, impede a nossa felicidade. Trair-se é a pior forma de traição. Devo guiar meus sentimentos e não ser guiada por eles.

Como toda forma de educação, a da afetividade é contínua e requer perseverança. Para conquistar o senhorio de si mesmo é primordial conhecer adequadamente a realidade e o mecanismo afetivo subjacente às nossas reações. Isso exige luta; requer tempo, esforço e paciência, para que cheguemos a amar a virtude, a comprazer-nos em fazer o bem.

A luta nunca é definitiva, pois o surgimento e desaparecimento dos sentimentos não é totalmente voluntário. Devemos saber viver sem nos deixar dominar por um pathos. Os sentimentos são irracionais na sua origem, mas harmonizáveis pela razão.

O melhor modo de educar o homem, de maneira que se consiga nele a harmonia das diferentes partes de sua alma, consiste em saber canalizar e orientar os sentimentos. É preciso mostrar como se consegue que os sentimentos colaborem com as tendências e a vontade, sem deixar com que atuem sozinhos, de modo a causar anomalias e patologias na alma.

Isso se alcança pelo exercício de virtudes, como a prudência (sofrosyne) – a moderação, o sossego, o autodomínio e a temperança, de que falarei mais adiante. A temperança atua na primeira camada, que é o corpo, na força irracional dos nossos apetites corpóreos, especialmente da gula e da sexualidade desordenada.

Podemos refletir ainda sobre os objetivos da educação da afetividade. O primeiro deles é alcançar proporção, simetria entre os sentimentos e a realidade, compreendendo o modo, o momento e a intensidade de expressar um sentimento. Pela educação da afetividade também evitamos dissonâncias por excesso (sentimentalismo) ou por defeito (cerebral, frio).

A prática das virtudes não é uma mera negação das nossas inclinações. O nosso ideal não é de indiferentismo. Inteligência, vontade e afeto devem crescer juntos, de mãos dadas. A integridade do ser humano exige essa aproximação, a unidade da personalidade que nos leva a ordenar os interesses e afetos.

A formação da personalidade deve encher o nosso coração de um amor tão forte que nos capacite a considerar os sentimentos em um contexto mais amplo, dando-nos recursos para enfrentar os desafios diários e ajudando-nos a captar o sentido positivo e transcendente dos acontecimentos mais agradáveis (ou seja, aprender a gozar das realidades humanas e estar nelas com sentido superior, mais profundo).

Saber ordenar os afetos não é ignorá-los ou abafá-los, mas saber colocá-los em seu devido lugar. A ordenação pode implicar, em determinados momentos, em saber prescindir de algo bom quando convém – quando a realidade ou a caridade pedem –, em nome de um interesse ou objetivo maior do que a emoção pediria.

Educar a afetividade nos leva a sermos capazes de sentir alegria, um prazer que é a verdadeira felicidade, com o bem realizado. Isso significa ter alegria com a prática das virtudes. Ser virtuoso requer saborear o bem, na formação do “bom gosto”. É a formação da afetividade e não o hábito de se opor sistematicamente às nossas inclinações: isso ainda é continência.

A continência é a fase em que já temos um movimento interior de resistência a uma má inclinação, mas isso ainda é árduo, difícil. Custa-nos largar um prazer em nome do que é certo, do bem de fato. É uma fase inicial, enquanto ainda está sendo formada a virtude.

O objetivo da educação da afetividade – e da nossa realização pessoal – não é simplesmente “vencer o mal”, mas adquirir o gosto pelo comportamento de amor ao bem. A nossa meta é configurar a afetividade de tal sorte que produza alegria perante o bem e tristeza e mal-estar perante o mal.

Enquanto lutamos, devemos saber que não estamos nos habituando a sofrer com resignação; não se trata de uma mera conformidade com o que é árduo, mas de um processo de aprendizado para nos deleitarmos com o bem, ainda que, por enquanto, a luta nos contrarie.

Crescer nas virtudes faz com que a afetividade se volte e fixe no que pode satisfazer verdadeiramente as aspirações profundas e a finalidade do ser humano; e a deixar em segundo plano desejos que não são relevantes para a realização pessoal.

Deixar-se guiar pelas virtudes permite que a nossa afetividade desfrute do que é verdadeiramente grandioso. Inicialmente, a luta ascética é mais operativa do que afetiva, porque as virtudes nos levam a fazer o bem e assim nos ensinam a sentir corretamente. Mas o primeiro passo é a continência; é o “se aguentar”, “resistir”, “não ceder”, porque já sabemos que o melhor é não ceder.

Como já vimos sobre a desordem da alma, sempre buscamos o bem, mas muitas vezes o que nos parece bom não o é; inclinamo-nos a algo que nos apetece mas não por uma escolha racional, objetiva, pensada, e sim por um movimento emotivo, sentimental.

O que a virtude faz é escolher o que vamos fazer, como vamos operar, conforme o critério e a hierarquia definida pela razão. Se a afetividade estiver bem ordenada, ela ajuda a razão a sentir alegria e prazer com os bens mais valiosos e desejáveis; se ela está desordenada, ofusca a razão. Uma afetividade ordenada ajuda a atuar bem e uma boa atuação ajuda a ordenar os afetos: é um círculo virtuoso.

Não podemos controlar diretamente os afetos. Não está totalmente sob o nosso controle sermos mais corajosos, menos irados, mais alegres ou menos ciumentos; porque o medo, a ira, a alegria e os ciúmes são algumas emoções de base do nosso ser. Mas podemos refletir por que elas surgem, quando surgem e como devemos reagir caso surjam.

A vontade tem influência indireta, mas eficaz sobre as emoções. E se a exercemos continuamente, ela se cristaliza e reforça o afeto. A vontade atua de modo “político” sobre os afetos, como ensinou Aristóteles. Tem poder semelhante a um governante sobre cidadãos livres: pode tomar certas medidas para obter determinados resultados – aumentar ou diminuir impostos, declarar feriado para mobilizar algum movimento, mexer no câmbio da moeda, etc.

Ficar vendo a vida de alguém que consideremos perfeita, por exemplo, vai suscitar inveja; se mexemos no celular do marido, estamos querendo encontrar alguma coisa para sentir ciúmes; mas, se nos arrumamos para nossos maridos e colocamos uma lingerie nova, nos animamos para estar com ele e ter momentos agradáveis. Se tomamos uma taça de vinho, provocamos um estado transitório de euforia; se ficamos pensando em uma coisa chata que alguém nos fez, vamos estimular o rancor e a vingança, promovendo a ira. Esses são apenas alguns exemplos, dos muitos possíveis.

Os atos voluntários contribuem para criar uma “conaturalidade” afetiva com o bem para o qual a vontade se move. Devemos prestar muita atenção a este duplo movimento da vontade, que é interior e profundo: querer o bem e querer o bem.

Ao querermos o bem, cuidamos da intenção e buscamos sinceramente o bem oculto na virtude. Precisamos retificar a intenção continuamente para acertar os motivos pelos quais vale a pena fazer algo. Não basta apenas cumprir regras, mas sim lutar por uma vida refletida e purificada pelo querer consciente.

Quando queremos o bem, somos intimamente livres e entendemos que a ação é nobre. É possível então dizer que “estou a fim” do que eu “quero”, alinhando a afetividade à vontade livre.

A virtude só estará totalmente formada quando o bem tiver um reflexo positivo na afetividade. Essa formação vai demorar, porque é um processo de reconhecimento do bem pelo intelecto, de escolha do bem pela vontade (com reta intenção e plena liberdade) e de sentir o bem de modo positivo pela afetividade. E, claro, de lutar para concretizar esse bem, realizando-o de fato.

São muitas as dimensões a serem alinhadas, mas, com a graça de Deus, esse processo não só é possível como é algo gratificante e preenche a vida inteira de sentido. Também notamos que, ao buscarmos sinceramente ordenar uma dimensão da alma e crescer em uma determinada virtude, a nossa melhora é global.

Não conseguir logo não deve nos desanimar. Não é sinal de que não queremos e nem de que somos incapazes de conseguir. Cada passo é mesmo pequeno e só conseguimos perceber com o passar do tempo. Não se trata da submissão violenta dos sentimentos. O objetivo não é apenas reprimir manifestações externas, mas moldar uma reação interna, para que seja a virtude uma reação própria do nosso modo de ser.

É um trabalho a longo prazo, sem a obsessão por resultados imediatos, porque crescer na humildade é a base de todas as virtudes e sabemos que, mesmo chamados à plenitude, somos ainda imperfeitos e desordenados.

Quais passos concretos podemos dar na luta pela educação dos afetos?

Em primeiro lugar, manifestações externas. Elas podem parecer à primeira vista artificiais, porque os afetos ainda estão sendo educados. Exemplos: “sorrir”, “rezar” ou “fazer amor com o marido” sem “estar a fim”. Não é porque nossa inclinação mais superficial não se dirige para aquele bem que a ação não vale.

Devemos aprender a rejeitar ou aceitar os sentimentos conforme a decisão livre e racional que tivemos antes da emoção surgir. Se decido amar mais a Deus e ao meu marido, tenho que me esforçar para isso concretamente, por meio de manifestações externas, sendo generosa e amável mesmo quando “não estou a fim”. Essas manifestações também nos moldam de fora para dentro.

Façamos o que devemos. Não podemos sucumbir ao que nossa inclinação manda naquele momento, mas ater-nos ao que já havíamos estabelecido.

Coloquemos cada coisa no seu lugar física e espiritualmente. Parece uma meta simples, mas requer um sacrifício constante para estarmos inteiras e atentas.

O exame de consciência é crucial para conhecer nossos afetos (e já saber que não são tudo o que somos, mas uma parte de nós).

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