Colunistas

Cristo no Lagar Místico: o trabalho é sacrifício, mas também alegria

A vindima da nossa vida é precedida sempre pelo trabalho árduo, às vezes querido, às vezes suportado, mas sempre amado e conscientemente realizado.

Cristo no Lagar Místico: o trabalho é sacrifício, mas também alegria
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Cristo no Lagar Místico: o trabalho é sacrifício, mas também alegria

A vindima da nossa vida é precedida sempre pelo trabalho árduo, às vezes querido, às vezes suportado, mas sempre amado e conscientemente realizado.

Data da Publicação: 15/01/2025
Tempo de leitura:
Autor: Rudy Albino
Data da Publicação: 15/01/2025
Tempo de leitura:
Autor: Rudy Albino

Beber nunca foi o meu forte, pois sou fraco para o álcool. Riam os sulistas, pois já fiquei tonto com sagu (sobremesa feita de bolinhas de fécula de mandioca fervidas no vinho tinto). Antes disso, quando estava no Seminário menor, eu era o sacristão da casa e fiz a besteira – afinal, eu era seminarista, mas não deixava de ser um adolescente – de tomar um copo inteiro de vinho de Missa numa noite quente de janeiro. Passei a noite toda, como vocês podem imaginar, pagando o preço da minha imprudência, ladeado por um formador verdadeiramente paternal que, com comiseração, usou da sabedoria que lhe trouxeram as suas cãs com um guri imprudente e caneado como eu àquela altura. Depois do vinho bem docinho e quente, veio o café amargo e fervente. Um resumo da vida aprendido com o paladar.

Meu amado pai, na minha primeira infância, gostava de beber. Eu o admirava por sua força cavalar, por sua disposição a trabalhar sem resmungos. (Ele foi forjado numa família sem um pingo de afeto – sob uma enxurrada de dureza e violência – mas trabalhadora). Contudo, não posso deixar de me recordar de uma noite em que eu estava na janela da frente e ele havia chegado em casa “alegrinho”, para dizer o mínimo: naquela ocasião ele não conseguia subir os três degraus de cimento que davam acesso à sala da nossa pobre casa de madeira sem pintura; ele cambaleava, cambaleava; eu, entristecido, assistia àquela dança um tanto deprimente quase escondido desde a janela. Graças ao bom Deus os seus excessos foram abandonados muito cedo e por motivos nobres. Abraçou a sobriedade antes de aprender a abraçar os filhos; mas, para a glória de Deus, saiu-se bem em assimilar ambas as lições. Mas, na minha cabeça, a bebida ficou associada àquilo, àquela memória. 

Não aderi ao puritanismo antialcoólico por isso, claro. Estou longe de demonizar o álcool; só a embriaguez mesmo. Minha mãe me ensinou a gostar de uma só bebida: Malzbier, a boa e velha “cerveja preta” – que, na Alemanha, está rebaixada a energético pelo baixo teor alcoólico – um dos ingredientes colocados numa “vitamina” (bomba calórica?) com ovos de pata, Sadol, leite condensado e otras cositas más que dariam arrepios, acho, nas mães “Nutella” e nas nutricionistas de hoje.

O que ficou em mim por um tempo foi a impressão errada de que, de um lado, estava o trabalho sério, extenuante, pesado, em prol da família; e, do outro, a bebida, a festa, o desafogo. Em resumo, a alegria não parecia não combinar com o trabalho. 

Cristo no Lagar Místico

Eu me deparei há certo tempo com uma imagem que me impactou: o Cristo no Lagar Místico (torculus Christi), que começou a ganhar espaço na arte cristã já no séc. XII1, mas que teria conhecido o seu auge entre os sécs. XIV e XIX, mesmo entre os protestantes2. A imagem, antes de ir para arte, já era explorada por Sto. Agostinho e outros Padres da Igreja. Ela é um ícone da Paixão de Cristo3, do Servo Sofredor, macerado pelo sofrimento (cf. Is 53, 10).  

O básico dessa representação está na figura de Jesus num lagar (numa prensa de vinho), esmagando uvas, cujo sumo é recolhido num cálice. Jesus está trabalhando pela nossa redenção. O corpo de Cristo mesmo está prensado no lagar; o suco de uva é o seu sangue. Às vezes a prensa de madeira é substituída pelo madeiro da cruz. Para os familiarizados com um mínimo de teologia sacramental, o sentido sacrificial-eucarístico da cena é evidente. Cristo se sacrifica; dá-nos o seu sangue na Eucaristia sob a espécie do vinho, o “sangue da uva” (hemer em hebraico, cf. Dt 32, 14). Tudo isso nasce da meditação das palavras de Isaías (63, 3): “Sozinho pisei o lagar, pois das nações não havia ninguém comigo. Pisei-os no meu furor, e calquei-os na minha ira. O sangue deles espirrou nas minhas vestes, e manchei toda a minha roupa”.

Rada, em hebraico, é ao mesmo tempo prensar e dominar, subjugar, submeter. Vê-se na passagem acima esse tom vingativo, que a imagem de Jesus atenua e, mais do que isso, transforma a partir de dentro.  Ele não é o que esmaga, mas o esmagado, o dilacerado; ele é, no NT, o Filho do dono da vinha, morto pelos vindimadores homicidas (cf. Mc 2, 1-9, embora o texto neotestamentário não exclua uma destruição advinda do proprietário). Ele é, acima de tudo, a videira e os seus discípulos os ramos (cf. Jo 15, 1-8): não se pode ser discípulo de Jesus sem esse vínculo vital, sem essa ligação como membro do “corpo” da videira, do qual se extrai a seiva, a força, a vitalidade. É claro que em Isaías já havia antecipações messiânicas, anunciando o ano do resgate ao lado do dia da ira (cf. 63, 4). 

A imagem do lagar também aparece no Apocalipse na descrição da colheita que acompanhará o juízo escatológico: cereais ceifados, uvas pisadas. Diz o texto sagrado: “‘Mete a tua foice afiada e colhe os cachos da vinha da terra porque as uvas já estão maduras’. E o anjo passou a foice afiada na terra e colheu os frutos da vinha da terra, despejando-as no grande lagar do furor de Deus. E o lagar foi pisado, fora da cidade, e dele saiu sangue, que subiu até a altura do freio dos cavalos…” (Ap 14, 18-20).

Como se pode ver, as ressonâncias são muitas da imagem de Cristo esmagando as uvas: vingança divina, Paixão dolorosa. Por um lado, a vitória da força divina sobre a impiedade humana; do outro, a autoderrota divina por piedade, por misericórdia aos homens. A colheita aparece como a foice que, enfim, corta o mal (e os maus) do mundo; mas, ao mesmo tempo, o trabalho de Cristo no lagar é a transformação do mal, da morte, do sangue derramado, num vinho suave, doce, que alegra e faz viver. No lagar divino, Cristo transforma o mal em bem.4

Cristo trabalhador

Para mim, a imagem acima é mais uma das belas formas de ler a pessoa de Jesus Cristo sob a ótica do trabalho. João Paulo II apresenta muitas delas na Encíclica Laborem exercens ao explorar o tema de “Cristo, homem do trabalho” (n. 26), partindo sobretudo do fato de que Ele compartilhou com seu pai adotivo o ofício de carpinteiro-artesão. Mas, acima de tudo, interessa-me o que dizia o papa polonês sobre a leitura que devemos fazer do trabalho à luz da cruz e da ressurreição de Cristo, o que, pictoricamente, Cristo no tanque de uvas também nos ajudou a ver: “No mistério pascal está contida a Cruz de Cristo, a sua obediência até à morte, que o Apóstolo contrapõe àquela desobediência que pesou desde o princípio na história do homem sobre a terra.  Aí está contida também a elevação de Cristo que, passando pela morte de cruz, retorna para junto dos seus discípulos com a potência do Espírito Santo pela Ressurreição. O suor e a fadiga, que o trabalho comporta necessariamente na presente condição da humanidade, proporcionam aos cristãos e a todo o homem, dado que todos são chamados para seguir a Cristo, a possibilidade de participar no amor à obra que o mesmo Cristo veio realizar.  Esta obra de salvação foi realizada por meio do sofrimento e da morte de cruz. Suportando o que há de penoso no trabalho em união com Cristo crucificado por nós, o homem colabora, de algum modo, com o Filho de Deus na redenção da humanidade. Mostrar-se-á como verdadeiro discípulo de Jesus, levando também ele a cruz de cada dia nas atividades que é chamado a realizar. […] No trabalho humano, o cristão encontra uma pequena parcela da cruz de Cristo e aceita-a com o mesmo espírito de redenção com que Cristo aceitou por nós a sua Cruz. E, graças à luz que, emanando da Ressurreição do mesmo Cristo, penetra dentro de nós, descobrimos sempre no trabalho um vislumbre da vida nova, do novo bem, um como que anúncio dos ‘céus novos e da nova terra’, os quais são participados pelo homem e pelo mundo precisamente mediante o que há de penoso no trabalho. Mediante a fadiga e nunca sem ela. Ora tudo isto, por um lado, confirma ser indispensável a cruz numa espiritualidade do trabalho humano; por outro lado, porém, patenteia-se nesta cruz, no que nele há de penoso, um bem novo, o qual tem o seu princípio no mesmo trabalho: no trabalho entendido em profundidade e sob todos os aspectos, e jamais sem ele” (n. 27). No caso da nossa imagem em tela, o cansaço do plantio e da colheita é coroado pela alegria do vinho novo. Mas isso precisa ser ainda aprofundado.

A vindima exige cansaço e sacrifício

Nessa imagem de Cristo eu vejo a dimensão nitidamente sacrificial do trabalho de que nos falava S. João Paulo II. O Filho de Deus se põe voluntariamente sobre a prensa; assume o peso da dor para produzir o que dará vida a outros. O trabalho é a aceitação da morte do eu para gerar vida, produzir abundância, fartura… Um pai ou uma mãe de família que desperta cedo, que deixa a própria cama com o corpo ainda moído pelo cansaço do dia anterior ou de dias anteriores para assumir responsavelmente o ofício do qual retira a subsistência de sua família faz o movimento de subir com Cristo neste tanque de uvas para pisá-las e, com força e determinação, extrair o sumo de vida que Deus Pai nos oferece diariamente por meio delas. A vindima da nossa vida é precedida sempre pelo trabalho árduo, às vezes querido, às vezes suportado, mas sempre amado e conscientemente realizado.

A vindima é momento de festa

De fato, o lagar é um lugar de trabalho. O calvário, a cruz, são explicitamente um lugar e um instrumento de suplício, o que nos pode fazer pensar apenas na dimensão dolorosa do ato de pisar ou prensar as uvas ao olharmos a imagem em questão aqui. Contudo, o lagar é, também, lugar de festa e de alegria; ele ficava na própria vinha e a vindima era uma ocasião festiva, tempo de alegria e de júbilo. De fato, a vindima – que vai do início da colheita até o início da produção do vinho – era acompanhada de danças das jovens da cidade e por cantos e gritos de triunfo5. Dizia um conhecido exegeta: “O lagar consistia de dois tanques, talhados na pedra a diversos níveis, com um pequeno canal que levava do nível superior ao inferior. A primeira compressão se fazia espremendo a uva com os pés (Ne 13, 15); era um trabalho festivo, acompanhado de gritos (Jr 25, 30; 48, 33) e de instrumentos musicais6.

O próprio Deuteronômio pedia que se celebrasse a Festa das Cabanas (Tendas, Tabernáculos) depois de juntar o resultado daquilo que vinha da eira e do lagar (Dt 15, 14; 16, 13-15). Essa festa apontava nitidamente para a vinda do Messias, o que deixa claro o relato da Transfiguração (cf. Mt 17, 1; Mc 9, 2; Lc 9, 28-36).

A Sagrada Escritura tem uma profusão de textos mostrando que o vinho está associado à alegria, à vida e à fertilidade (cf. Sl 4, 7; 104, 15; Eclo 10, 19, Ecl 9, 7). Cristo traz alegria e evita o possível vexame dos noivos em Caná com litros e litros do melhor vinho, que nem a embriaguez dos convidados fará passar despercebido (Jo 2, 1-12) ou, ao menos, não deixará de ser notado por alguém que está exercendo bem o seu trabalho, o mestre-sala.

O que aprendi de tudo isso é que, embora o vinho possa dar azo à intemperança, ele é ocasião de comunhão, de exultação, de gozo. Recebendo o meu bispo recentemente em minha casa para um almoço, ao servir-lhe um risoto de quatro queijos que eu fiz com meus modestos dotes culinários, ousei comprar um vinho, correndo o risco de constranger-me frente ao enólogo mais iniciante. Optei por um chileno: Casillero del diablo que, na garrafa, tem o rosto de um diabinho. Não sei se a escolha foi certa, dado que o convidado era um sucessor dos Apóstolos; mas, ao menos, eu sei que ele tem o poder de expulsar os espíritos imundos. O que sei é que ele trouxe uma boa conversa; harmonizou mais com a nossa alegria que com o arroz e os queijos. Trouxe risos, suavidade, serenidade. Foi regalo, gesto de amizade, de sintonia. Ele não veio da adega resguardada pelo diabo (segundo a lenda criada pelo criador do vinho que escolhi), mas veio desde um passado distante, de épocas imemoriais, quando Deus presenteou o homem com o “fruto da videira e do trabalho humano” (conforme as orações do ofertório da Missa) para que este soubesse que, do seu trabalho, do seu suor, podia sair não só o básico do básico para a sua subsistência, mas o plus, o adicional, o pequeno luxo, um pretexto para sentar com os amigos, o líquido precioso que desce pela garganta para chegar ao coração, aquecendo-o, animando-o, vivificando-o, ainda como um lembrete permanente de que o trabalho vale a pena pois vale a alegria.

Referências

  1. Cf.  Daniel Esparza, “Have you seen Jesus making wine? But not like at Cana”, 10 outubro 2019, https://aleteia.org/2019/10/10/the-mystical-winepress-a-forgotten-motif-in-christian-art.[]
  2. Cf.  “Torchio místico”, https://it.cathopedia.org/wiki/Torchio_mistico.[]
  3. Cf. Gloria Riva, “Il ‘torchio mistico’, sacrificio di Gesù per tutti”, 03 julho 2014, https://www.avvenire.it/rubriche/pagine/il-%C2%ABtorchio-mistico%C2%BB-br–sacrificio-di-gesu-per-tutti_20140703.[]
  4. Ibid.[]
  5.  John L. McKenzie, Dicionário Bíblico (Paulus, São Paulo 19845), p. 965.[]
  6. Ibid.[]
Rudy Albino

Rudy Albino

É professor, palestrante, Dr. em Sociologia. Pós-Doc. em Teologia e autor coluna "Liturgia e Trabalho: pistas para uma espiritualidade laical".

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Beber nunca foi o meu forte, pois sou fraco para o álcool. Riam os sulistas, pois já fiquei tonto com sagu (sobremesa feita de bolinhas de fécula de mandioca fervidas no vinho tinto). Antes disso, quando estava no Seminário menor, eu era o sacristão da casa e fiz a besteira – afinal, eu era seminarista, mas não deixava de ser um adolescente – de tomar um copo inteiro de vinho de Missa numa noite quente de janeiro. Passei a noite toda, como vocês podem imaginar, pagando o preço da minha imprudência, ladeado por um formador verdadeiramente paternal que, com comiseração, usou da sabedoria que lhe trouxeram as suas cãs com um guri imprudente e caneado como eu àquela altura. Depois do vinho bem docinho e quente, veio o café amargo e fervente. Um resumo da vida aprendido com o paladar.

Meu amado pai, na minha primeira infância, gostava de beber. Eu o admirava por sua força cavalar, por sua disposição a trabalhar sem resmungos. (Ele foi forjado numa família sem um pingo de afeto – sob uma enxurrada de dureza e violência – mas trabalhadora). Contudo, não posso deixar de me recordar de uma noite em que eu estava na janela da frente e ele havia chegado em casa “alegrinho”, para dizer o mínimo: naquela ocasião ele não conseguia subir os três degraus de cimento que davam acesso à sala da nossa pobre casa de madeira sem pintura; ele cambaleava, cambaleava; eu, entristecido, assistia àquela dança um tanto deprimente quase escondido desde a janela. Graças ao bom Deus os seus excessos foram abandonados muito cedo e por motivos nobres. Abraçou a sobriedade antes de aprender a abraçar os filhos; mas, para a glória de Deus, saiu-se bem em assimilar ambas as lições. Mas, na minha cabeça, a bebida ficou associada àquilo, àquela memória. 

Não aderi ao puritanismo antialcoólico por isso, claro. Estou longe de demonizar o álcool; só a embriaguez mesmo. Minha mãe me ensinou a gostar de uma só bebida: Malzbier, a boa e velha “cerveja preta” – que, na Alemanha, está rebaixada a energético pelo baixo teor alcoólico – um dos ingredientes colocados numa “vitamina” (bomba calórica?) com ovos de pata, Sadol, leite condensado e otras cositas más que dariam arrepios, acho, nas mães “Nutella” e nas nutricionistas de hoje.

O que ficou em mim por um tempo foi a impressão errada de que, de um lado, estava o trabalho sério, extenuante, pesado, em prol da família; e, do outro, a bebida, a festa, o desafogo. Em resumo, a alegria não parecia não combinar com o trabalho. 

Cristo no Lagar Místico

Eu me deparei há certo tempo com uma imagem que me impactou: o Cristo no Lagar Místico (torculus Christi), que começou a ganhar espaço na arte cristã já no séc. XII1, mas que teria conhecido o seu auge entre os sécs. XIV e XIX, mesmo entre os protestantes2. A imagem, antes de ir para arte, já era explorada por Sto. Agostinho e outros Padres da Igreja. Ela é um ícone da Paixão de Cristo3, do Servo Sofredor, macerado pelo sofrimento (cf. Is 53, 10).  

O básico dessa representação está na figura de Jesus num lagar (numa prensa de vinho), esmagando uvas, cujo sumo é recolhido num cálice. Jesus está trabalhando pela nossa redenção. O corpo de Cristo mesmo está prensado no lagar; o suco de uva é o seu sangue. Às vezes a prensa de madeira é substituída pelo madeiro da cruz. Para os familiarizados com um mínimo de teologia sacramental, o sentido sacrificial-eucarístico da cena é evidente. Cristo se sacrifica; dá-nos o seu sangue na Eucaristia sob a espécie do vinho, o “sangue da uva” (hemer em hebraico, cf. Dt 32, 14). Tudo isso nasce da meditação das palavras de Isaías (63, 3): “Sozinho pisei o lagar, pois das nações não havia ninguém comigo. Pisei-os no meu furor, e calquei-os na minha ira. O sangue deles espirrou nas minhas vestes, e manchei toda a minha roupa”.

Rada, em hebraico, é ao mesmo tempo prensar e dominar, subjugar, submeter. Vê-se na passagem acima esse tom vingativo, que a imagem de Jesus atenua e, mais do que isso, transforma a partir de dentro.  Ele não é o que esmaga, mas o esmagado, o dilacerado; ele é, no NT, o Filho do dono da vinha, morto pelos vindimadores homicidas (cf. Mc 2, 1-9, embora o texto neotestamentário não exclua uma destruição advinda do proprietário). Ele é, acima de tudo, a videira e os seus discípulos os ramos (cf. Jo 15, 1-8): não se pode ser discípulo de Jesus sem esse vínculo vital, sem essa ligação como membro do “corpo” da videira, do qual se extrai a seiva, a força, a vitalidade. É claro que em Isaías já havia antecipações messiânicas, anunciando o ano do resgate ao lado do dia da ira (cf. 63, 4). 

A imagem do lagar também aparece no Apocalipse na descrição da colheita que acompanhará o juízo escatológico: cereais ceifados, uvas pisadas. Diz o texto sagrado: “‘Mete a tua foice afiada e colhe os cachos da vinha da terra porque as uvas já estão maduras’. E o anjo passou a foice afiada na terra e colheu os frutos da vinha da terra, despejando-as no grande lagar do furor de Deus. E o lagar foi pisado, fora da cidade, e dele saiu sangue, que subiu até a altura do freio dos cavalos…” (Ap 14, 18-20).

Como se pode ver, as ressonâncias são muitas da imagem de Cristo esmagando as uvas: vingança divina, Paixão dolorosa. Por um lado, a vitória da força divina sobre a impiedade humana; do outro, a autoderrota divina por piedade, por misericórdia aos homens. A colheita aparece como a foice que, enfim, corta o mal (e os maus) do mundo; mas, ao mesmo tempo, o trabalho de Cristo no lagar é a transformação do mal, da morte, do sangue derramado, num vinho suave, doce, que alegra e faz viver. No lagar divino, Cristo transforma o mal em bem.4

Cristo trabalhador

Para mim, a imagem acima é mais uma das belas formas de ler a pessoa de Jesus Cristo sob a ótica do trabalho. João Paulo II apresenta muitas delas na Encíclica Laborem exercens ao explorar o tema de “Cristo, homem do trabalho” (n. 26), partindo sobretudo do fato de que Ele compartilhou com seu pai adotivo o ofício de carpinteiro-artesão. Mas, acima de tudo, interessa-me o que dizia o papa polonês sobre a leitura que devemos fazer do trabalho à luz da cruz e da ressurreição de Cristo, o que, pictoricamente, Cristo no tanque de uvas também nos ajudou a ver: “No mistério pascal está contida a Cruz de Cristo, a sua obediência até à morte, que o Apóstolo contrapõe àquela desobediência que pesou desde o princípio na história do homem sobre a terra.  Aí está contida também a elevação de Cristo que, passando pela morte de cruz, retorna para junto dos seus discípulos com a potência do Espírito Santo pela Ressurreição. O suor e a fadiga, que o trabalho comporta necessariamente na presente condição da humanidade, proporcionam aos cristãos e a todo o homem, dado que todos são chamados para seguir a Cristo, a possibilidade de participar no amor à obra que o mesmo Cristo veio realizar.  Esta obra de salvação foi realizada por meio do sofrimento e da morte de cruz. Suportando o que há de penoso no trabalho em união com Cristo crucificado por nós, o homem colabora, de algum modo, com o Filho de Deus na redenção da humanidade. Mostrar-se-á como verdadeiro discípulo de Jesus, levando também ele a cruz de cada dia nas atividades que é chamado a realizar. […] No trabalho humano, o cristão encontra uma pequena parcela da cruz de Cristo e aceita-a com o mesmo espírito de redenção com que Cristo aceitou por nós a sua Cruz. E, graças à luz que, emanando da Ressurreição do mesmo Cristo, penetra dentro de nós, descobrimos sempre no trabalho um vislumbre da vida nova, do novo bem, um como que anúncio dos ‘céus novos e da nova terra’, os quais são participados pelo homem e pelo mundo precisamente mediante o que há de penoso no trabalho. Mediante a fadiga e nunca sem ela. Ora tudo isto, por um lado, confirma ser indispensável a cruz numa espiritualidade do trabalho humano; por outro lado, porém, patenteia-se nesta cruz, no que nele há de penoso, um bem novo, o qual tem o seu princípio no mesmo trabalho: no trabalho entendido em profundidade e sob todos os aspectos, e jamais sem ele” (n. 27). No caso da nossa imagem em tela, o cansaço do plantio e da colheita é coroado pela alegria do vinho novo. Mas isso precisa ser ainda aprofundado.

A vindima exige cansaço e sacrifício

Nessa imagem de Cristo eu vejo a dimensão nitidamente sacrificial do trabalho de que nos falava S. João Paulo II. O Filho de Deus se põe voluntariamente sobre a prensa; assume o peso da dor para produzir o que dará vida a outros. O trabalho é a aceitação da morte do eu para gerar vida, produzir abundância, fartura… Um pai ou uma mãe de família que desperta cedo, que deixa a própria cama com o corpo ainda moído pelo cansaço do dia anterior ou de dias anteriores para assumir responsavelmente o ofício do qual retira a subsistência de sua família faz o movimento de subir com Cristo neste tanque de uvas para pisá-las e, com força e determinação, extrair o sumo de vida que Deus Pai nos oferece diariamente por meio delas. A vindima da nossa vida é precedida sempre pelo trabalho árduo, às vezes querido, às vezes suportado, mas sempre amado e conscientemente realizado.

A vindima é momento de festa

De fato, o lagar é um lugar de trabalho. O calvário, a cruz, são explicitamente um lugar e um instrumento de suplício, o que nos pode fazer pensar apenas na dimensão dolorosa do ato de pisar ou prensar as uvas ao olharmos a imagem em questão aqui. Contudo, o lagar é, também, lugar de festa e de alegria; ele ficava na própria vinha e a vindima era uma ocasião festiva, tempo de alegria e de júbilo. De fato, a vindima – que vai do início da colheita até o início da produção do vinho – era acompanhada de danças das jovens da cidade e por cantos e gritos de triunfo5. Dizia um conhecido exegeta: “O lagar consistia de dois tanques, talhados na pedra a diversos níveis, com um pequeno canal que levava do nível superior ao inferior. A primeira compressão se fazia espremendo a uva com os pés (Ne 13, 15); era um trabalho festivo, acompanhado de gritos (Jr 25, 30; 48, 33) e de instrumentos musicais6.

O próprio Deuteronômio pedia que se celebrasse a Festa das Cabanas (Tendas, Tabernáculos) depois de juntar o resultado daquilo que vinha da eira e do lagar (Dt 15, 14; 16, 13-15). Essa festa apontava nitidamente para a vinda do Messias, o que deixa claro o relato da Transfiguração (cf. Mt 17, 1; Mc 9, 2; Lc 9, 28-36).

A Sagrada Escritura tem uma profusão de textos mostrando que o vinho está associado à alegria, à vida e à fertilidade (cf. Sl 4, 7; 104, 15; Eclo 10, 19, Ecl 9, 7). Cristo traz alegria e evita o possível vexame dos noivos em Caná com litros e litros do melhor vinho, que nem a embriaguez dos convidados fará passar despercebido (Jo 2, 1-12) ou, ao menos, não deixará de ser notado por alguém que está exercendo bem o seu trabalho, o mestre-sala.

O que aprendi de tudo isso é que, embora o vinho possa dar azo à intemperança, ele é ocasião de comunhão, de exultação, de gozo. Recebendo o meu bispo recentemente em minha casa para um almoço, ao servir-lhe um risoto de quatro queijos que eu fiz com meus modestos dotes culinários, ousei comprar um vinho, correndo o risco de constranger-me frente ao enólogo mais iniciante. Optei por um chileno: Casillero del diablo que, na garrafa, tem o rosto de um diabinho. Não sei se a escolha foi certa, dado que o convidado era um sucessor dos Apóstolos; mas, ao menos, eu sei que ele tem o poder de expulsar os espíritos imundos. O que sei é que ele trouxe uma boa conversa; harmonizou mais com a nossa alegria que com o arroz e os queijos. Trouxe risos, suavidade, serenidade. Foi regalo, gesto de amizade, de sintonia. Ele não veio da adega resguardada pelo diabo (segundo a lenda criada pelo criador do vinho que escolhi), mas veio desde um passado distante, de épocas imemoriais, quando Deus presenteou o homem com o “fruto da videira e do trabalho humano” (conforme as orações do ofertório da Missa) para que este soubesse que, do seu trabalho, do seu suor, podia sair não só o básico do básico para a sua subsistência, mas o plus, o adicional, o pequeno luxo, um pretexto para sentar com os amigos, o líquido precioso que desce pela garganta para chegar ao coração, aquecendo-o, animando-o, vivificando-o, ainda como um lembrete permanente de que o trabalho vale a pena pois vale a alegria.

Referências

  1. Cf.  Daniel Esparza, “Have you seen Jesus making wine? But not like at Cana”, 10 outubro 2019, https://aleteia.org/2019/10/10/the-mystical-winepress-a-forgotten-motif-in-christian-art.[]
  2. Cf.  “Torchio místico”, https://it.cathopedia.org/wiki/Torchio_mistico.[]
  3. Cf. Gloria Riva, “Il ‘torchio mistico’, sacrificio di Gesù per tutti”, 03 julho 2014, https://www.avvenire.it/rubriche/pagine/il-%C2%ABtorchio-mistico%C2%BB-br–sacrificio-di-gesu-per-tutti_20140703.[]
  4. Ibid.[]
  5.  John L. McKenzie, Dicionário Bíblico (Paulus, São Paulo 19845), p. 965.[]
  6. Ibid.[]

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