O Egito não apenas moldou o cristianismo de sua época, mas também deixou um legado que continua a influenciar o cristianismo globalmente.
O Egito não apenas moldou o cristianismo de sua época, mas também deixou um legado que continua a influenciar o cristianismo globalmente.
A falaciosa ideia que dita o cristianismo como uma “religião ocidental, europeia, branca e opressora” encontra africanos e seus descendentes em várias partes do mundo. A ideia é falsa porque é historicamente imprecisa e teologicamente infactível. De fato, em momentos específicos da história, o cristianismo foi utilizado como um mecanismo de tirania por homens vis de muitas nações ocidentais. Contudo, também é fato que o Evangelho se enraizou firmemente na África, no Oriente Médio e na Ásia muito antes mesmo da ideia do Ocidente. E é bastante lamentável que tal fato seja tão pouco enfatizado.
Para o bem do Evangelho, deve-se entender que o cristianismo não é propriedade cultural de nenhum grupo racial, étnico ou social. O apologista protestante Billy Graham, em uma de suas pregações, disse o seguinte sobre o cristianismo: “nunca diga que é uma religião de brancos. Ou uma religião de negros. É a religião de todo o mundo, pertence ao mundo!”. Ou seja, a fé cristã foi escolhida e adotada por várias nações, tribos e línguas. Como muitos grupos de pessoas nascidas fora do Ocidente (e seus descendentes) foram culturalmente alienados do Evangelho por narrativas ideológicas, é imperativo explorar a história negligenciada do cristianismo.
No caso do cristianismo na África, a história começa com o Egito, que tem um significado especial na história cristã como um todo porque foi para lá que a Sagrada Família fugiu para escapar da perseguição do rei Herodes (São Mateus 2, 13–15) e lá permaneceu como refugiada nos primeiros anos de vida de Nosso Senhor Jesus Cristo. Essa presença reforçou o simbolismo do Egito como um local de refúgio e proteção divina, gerando uma tradição que ainda é profundamente reverenciada na Igreja Copta1 Ortodoxa, com locais associados à jornada da Sagrada Família sendo destinos de peregrinação.
A Igreja Copta mantém a tradição de que São Marcos foi enviado para evangelizar o norte da África e chegou até Alexandria, no Egito, por meio da Líbia. Muitos pesquisadores dedicados ao estudo do cristianismo primitivo corroboram essa história e atestam sua transmissão oral. Estima-se que a comunidade cristã do Egito cresceu, originalmente, entre a comunidade judaica em Alexandria ao longo dos dois primeiros séculos. Inúmeros artefatos, estruturas e documentos cristãos vêm do Egito, o que, claro, atesta a imensa importância deste país para a história cristã.
O Egito produziu uma das primeiras e mais proeminentes escolas de educação teológica – a Escola Catequética de Alexandria – liderada por padres da Igreja como Clemente de Alexandria2, um dos mais influentes teólogos da Igreja primitiva. O primeiro uso atestado do termo “papa” (do grego “πάππας”, que significa “pai”) foi em referência ao Patriarca de Alexandria, refletindo a importância da liderança religiosa do Egito no cristianismo primitivo. Somente séculos depois o título passou a ser associado ao Bispo de Roma. A igreja egípcia era única em sua elevada reverência por seu papa, bem como a estrutura eclesiástica fortemente unificada.
A fundação do Credo Apostólico e a doutrina da Trindade foi ferozmente defendida no Egito. Embora o Credo Apostólico tenha sido uma evolução gradual das confissões de fé dos primeiros cristãos, a defesa da sua essência, especialmente da divindade de Cristo e da igualdade dentro da Trindade, foi articulada e protegida principalmente pelos papas egípcios São Alexandre de Alexandria e Santo Atanásio de Alexandria.
O sofrimento pela causa de Cristo e o martírio é outro tema proeminente no cristianismo egípcio. Durante as perseguições romanas, o Egito foi um dos locais de maior número de mártires cristãos. A coragem e a fé dos mártires egípcios inspiraram o cristianismo primitivo. Isso é evidenciado pelo fato de que o calendário litúrgico copta ou Calendário dos Mártires (Anno Martyrum, AM) continua a usar a Grande Perseguição sob o imperador romano Diocleciano como seu ponto de partida. A Igreja Copta, cujas festividades giram em torno do martírio dos santos, acredita que o dia da morte de um santo é o dia de seu nascimento no céu. É por isso que a tradição popular se refere ao dia de um santo como um moulid (ou aniversário). Como vários de seus antecessores, Santo Atanásio, conhecido também como “o Campeão da Ortodoxia”, experimentou o exílio e o sofrimento por sua defesa da ortodoxia, solidificando esse tema da perseguição como um tema duradouro da identidade copta. Os papas egípcios, através de sua liderança e teologia, garantiram que o cristianismo primitivo tivesse uma base sólida para as crenças fundamentais da fé. Suas contribuições moldaram a ortodoxia cristã como a conhecemos hoje.
O chamado a sofrer por Cristo encontrou expressão significativa no desenvolvimento das comunidades ascéticas e monásticas – outra característica definidora do cristianismo, que teve origem no Egito. Tanto a forma solitária (ou eremítica) quanto a forma comunal (ou cenobítica) do monaquismo foram desenvolvidas por grandes teólogos egípcios como Santo Antão e São Pacômio. Santo Antão é considerado o fundador do monaquismo solitário. Inspirado pelas palavras de Cristo no Evangelho (“Se queres ser perfeito, vai, vende tudo o que tens, dá aos pobres e terás um tesouro no céu; depois, vem e segue-me” – São Mateus 19, 21). No deserto, praticou a oração, o jejum e o combate espiritual contra tentações.
São Pacômio, por sua vez, é creditado como fundador do cenobitismo. Ele criou as primeiras comunidades organizadas onde monges viviam juntos sob uma regra comum, compartilhando trabalho, oração e refeições, e elaborou a primeira regra monástica escrita, que estabelecia horários para oração, leitura, trabalho e silêncio, servindo de modelo para regras posteriores, como as de São Basílio e São Bento. Suas comunidades floresceram ao longo do Nilo, reunindo centenas de monges. Diferentemente do eremitismo, o cenobitismo enfatizava a vida comunitária como um reflexo do corpo de Cristo. O modelo monástico egípcio espalhou-se por regiões como Síria, Palestina e Europa.
A importância do Egito no cristianismo primitivo pode ser sumarizada por sua influência teológica, espiritual e cultural: a) a preservação e defesa da doutrina cristã; b) a formação das primeiras comunidades monásticas; c) seu papel como refúgio e local de martírio; d) a contribuição para o desenvolvimento de práticas litúrgicas e intelectuais. O Egito não apenas moldou o cristianismo de sua época, mas também deixou um legado que continua a influenciar o cristianismo globalmente.
Pedagoga, Autora do livro “Mulheres que o feminismo não vê - Classe e Raça”. Realizou pós-doutoramento em Sociologia pela UFRJ.
A falaciosa ideia que dita o cristianismo como uma “religião ocidental, europeia, branca e opressora” encontra africanos e seus descendentes em várias partes do mundo. A ideia é falsa porque é historicamente imprecisa e teologicamente infactível. De fato, em momentos específicos da história, o cristianismo foi utilizado como um mecanismo de tirania por homens vis de muitas nações ocidentais. Contudo, também é fato que o Evangelho se enraizou firmemente na África, no Oriente Médio e na Ásia muito antes mesmo da ideia do Ocidente. E é bastante lamentável que tal fato seja tão pouco enfatizado.
Para o bem do Evangelho, deve-se entender que o cristianismo não é propriedade cultural de nenhum grupo racial, étnico ou social. O apologista protestante Billy Graham, em uma de suas pregações, disse o seguinte sobre o cristianismo: “nunca diga que é uma religião de brancos. Ou uma religião de negros. É a religião de todo o mundo, pertence ao mundo!”. Ou seja, a fé cristã foi escolhida e adotada por várias nações, tribos e línguas. Como muitos grupos de pessoas nascidas fora do Ocidente (e seus descendentes) foram culturalmente alienados do Evangelho por narrativas ideológicas, é imperativo explorar a história negligenciada do cristianismo.
No caso do cristianismo na África, a história começa com o Egito, que tem um significado especial na história cristã como um todo porque foi para lá que a Sagrada Família fugiu para escapar da perseguição do rei Herodes (São Mateus 2, 13–15) e lá permaneceu como refugiada nos primeiros anos de vida de Nosso Senhor Jesus Cristo. Essa presença reforçou o simbolismo do Egito como um local de refúgio e proteção divina, gerando uma tradição que ainda é profundamente reverenciada na Igreja Copta1 Ortodoxa, com locais associados à jornada da Sagrada Família sendo destinos de peregrinação.
A Igreja Copta mantém a tradição de que São Marcos foi enviado para evangelizar o norte da África e chegou até Alexandria, no Egito, por meio da Líbia. Muitos pesquisadores dedicados ao estudo do cristianismo primitivo corroboram essa história e atestam sua transmissão oral. Estima-se que a comunidade cristã do Egito cresceu, originalmente, entre a comunidade judaica em Alexandria ao longo dos dois primeiros séculos. Inúmeros artefatos, estruturas e documentos cristãos vêm do Egito, o que, claro, atesta a imensa importância deste país para a história cristã.
O Egito produziu uma das primeiras e mais proeminentes escolas de educação teológica – a Escola Catequética de Alexandria – liderada por padres da Igreja como Clemente de Alexandria2, um dos mais influentes teólogos da Igreja primitiva. O primeiro uso atestado do termo “papa” (do grego “πάππας”, que significa “pai”) foi em referência ao Patriarca de Alexandria, refletindo a importância da liderança religiosa do Egito no cristianismo primitivo. Somente séculos depois o título passou a ser associado ao Bispo de Roma. A igreja egípcia era única em sua elevada reverência por seu papa, bem como a estrutura eclesiástica fortemente unificada.
A fundação do Credo Apostólico e a doutrina da Trindade foi ferozmente defendida no Egito. Embora o Credo Apostólico tenha sido uma evolução gradual das confissões de fé dos primeiros cristãos, a defesa da sua essência, especialmente da divindade de Cristo e da igualdade dentro da Trindade, foi articulada e protegida principalmente pelos papas egípcios São Alexandre de Alexandria e Santo Atanásio de Alexandria.
O sofrimento pela causa de Cristo e o martírio é outro tema proeminente no cristianismo egípcio. Durante as perseguições romanas, o Egito foi um dos locais de maior número de mártires cristãos. A coragem e a fé dos mártires egípcios inspiraram o cristianismo primitivo. Isso é evidenciado pelo fato de que o calendário litúrgico copta ou Calendário dos Mártires (Anno Martyrum, AM) continua a usar a Grande Perseguição sob o imperador romano Diocleciano como seu ponto de partida. A Igreja Copta, cujas festividades giram em torno do martírio dos santos, acredita que o dia da morte de um santo é o dia de seu nascimento no céu. É por isso que a tradição popular se refere ao dia de um santo como um moulid (ou aniversário). Como vários de seus antecessores, Santo Atanásio, conhecido também como “o Campeão da Ortodoxia”, experimentou o exílio e o sofrimento por sua defesa da ortodoxia, solidificando esse tema da perseguição como um tema duradouro da identidade copta. Os papas egípcios, através de sua liderança e teologia, garantiram que o cristianismo primitivo tivesse uma base sólida para as crenças fundamentais da fé. Suas contribuições moldaram a ortodoxia cristã como a conhecemos hoje.
O chamado a sofrer por Cristo encontrou expressão significativa no desenvolvimento das comunidades ascéticas e monásticas – outra característica definidora do cristianismo, que teve origem no Egito. Tanto a forma solitária (ou eremítica) quanto a forma comunal (ou cenobítica) do monaquismo foram desenvolvidas por grandes teólogos egípcios como Santo Antão e São Pacômio. Santo Antão é considerado o fundador do monaquismo solitário. Inspirado pelas palavras de Cristo no Evangelho (“Se queres ser perfeito, vai, vende tudo o que tens, dá aos pobres e terás um tesouro no céu; depois, vem e segue-me” – São Mateus 19, 21). No deserto, praticou a oração, o jejum e o combate espiritual contra tentações.
São Pacômio, por sua vez, é creditado como fundador do cenobitismo. Ele criou as primeiras comunidades organizadas onde monges viviam juntos sob uma regra comum, compartilhando trabalho, oração e refeições, e elaborou a primeira regra monástica escrita, que estabelecia horários para oração, leitura, trabalho e silêncio, servindo de modelo para regras posteriores, como as de São Basílio e São Bento. Suas comunidades floresceram ao longo do Nilo, reunindo centenas de monges. Diferentemente do eremitismo, o cenobitismo enfatizava a vida comunitária como um reflexo do corpo de Cristo. O modelo monástico egípcio espalhou-se por regiões como Síria, Palestina e Europa.
A importância do Egito no cristianismo primitivo pode ser sumarizada por sua influência teológica, espiritual e cultural: a) a preservação e defesa da doutrina cristã; b) a formação das primeiras comunidades monásticas; c) seu papel como refúgio e local de martírio; d) a contribuição para o desenvolvimento de práticas litúrgicas e intelectuais. O Egito não apenas moldou o cristianismo de sua época, mas também deixou um legado que continua a influenciar o cristianismo globalmente.