Colunistas

O Egito e o Cristianismo: a forja da fé e da identidade cristã primitiva

O Egito não apenas moldou o cristianismo de sua época, mas também deixou um legado que continua a influenciar o cristianismo globalmente.

O Egito e o Cristianismo: a forja da fé e da identidade cristã primitiva
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O Egito e o Cristianismo: a forja da fé e da identidade cristã primitiva

O Egito não apenas moldou o cristianismo de sua época, mas também deixou um legado que continua a influenciar o cristianismo globalmente.

Data da Publicação: 26/12/2024
Tempo de leitura:
Autor: Patricia Silva
Data da Publicação: 26/12/2024
Tempo de leitura:
Autor: Patricia Silva

A falaciosa ideia que dita o cristianismo como uma “religião ocidental, europeia, branca e opressora” encontra africanos e seus descendentes em várias partes do mundo.  A ideia é falsa porque é historicamente imprecisa e teologicamente infactível. De fato, em momentos específicos da história, o cristianismo foi utilizado como um mecanismo de tirania por homens vis de muitas nações ocidentais. Contudo, também é fato que o Evangelho se enraizou firmemente na África, no Oriente Médio e na Ásia muito antes mesmo da ideia do Ocidente. E é bastante lamentável que tal fato seja tão pouco enfatizado.

Igreja Copta Ortodoxa.

Para o bem do Evangelho, deve-se entender que o cristianismo não é propriedade cultural de nenhum grupo racial, étnico ou social. O apologista protestante Billy Graham, em uma de suas pregações, disse o seguinte sobre o cristianismo: “nunca diga que é uma religião de brancos. Ou uma religião de negros. É a religião de todo o mundo, pertence ao mundo!”. Ou seja, a fé cristã foi escolhida e adotada por várias nações, tribos e línguas. Como muitos grupos de pessoas nascidas fora do Ocidente (e seus descendentes) foram culturalmente alienados do Evangelho por narrativas ideológicas, é imperativo explorar a história negligenciada do cristianismo.

No caso do cristianismo na África, a história começa com o Egito, que tem um significado especial na história cristã como um todo porque foi para lá que a Sagrada Família fugiu para escapar da perseguição do rei Herodes (São Mateus 2, 13–15) e lá permaneceu como refugiada nos primeiros anos de vida de Nosso Senhor Jesus Cristo. Essa presença reforçou o simbolismo do Egito como um local de refúgio e proteção divina, gerando uma tradição que ainda é profundamente reverenciada na Igreja Copta1 Ortodoxa, com locais associados à jornada da Sagrada Família sendo destinos de peregrinação.

Um dos cartazes diz: “São Marcos, nosso pai, Alexandria, nossa mãe”, lema que representa a filiação da Igreja Ortodoxa Etíope a Alexandria (Copta Ortodoxa).

A Igreja Copta mantém a tradição de que São Marcos foi enviado para evangelizar o norte da África e chegou até Alexandria, no Egito, por meio da Líbia. Muitos pesquisadores dedicados ao estudo do cristianismo primitivo corroboram essa história e atestam sua transmissão oral. Estima-se que a comunidade cristã do Egito cresceu, originalmente, entre a comunidade judaica em Alexandria ao longo dos dois primeiros séculos. Inúmeros artefatos, estruturas e documentos cristãos vêm do Egito, o que, claro, atesta a imensa importância deste país para a história cristã.

O Egito produziu uma das primeiras e mais proeminentes escolas de educação teológica – a Escola Catequética de Alexandria – liderada por padres da Igreja como Clemente de Alexandria2,  um dos mais influentes teólogos da Igreja primitiva. O primeiro uso atestado do termo “papa” (do grego “πάππας”, que significa “pai”) foi em referência ao Patriarca de Alexandria, refletindo a importância da liderança religiosa do Egito no cristianismo primitivo. Somente séculos depois o título passou a ser associado ao Bispo de Roma. A igreja egípcia era única em sua elevada reverência por seu papa, bem como a estrutura eclesiástica fortemente unificada. 

Papa Francisco e o Patriarca Tawadros II

A fundação do Credo Apostólico e a doutrina da Trindade foi ferozmente defendida no Egito. Embora o Credo Apostólico tenha sido uma evolução gradual das confissões de fé dos primeiros cristãos, a defesa da sua essência, especialmente da divindade de Cristo e da igualdade dentro da Trindade, foi articulada e protegida principalmente pelos papas egípcios São Alexandre de Alexandria e Santo Atanásio de Alexandria.

O sofrimento pela causa de Cristo e o martírio é outro tema proeminente no cristianismo egípcio. Durante as perseguições romanas, o Egito foi um dos locais de maior número de mártires cristãos. A coragem e a fé dos mártires egípcios inspiraram o cristianismo primitivo. Isso é evidenciado pelo fato de que o calendário litúrgico copta ou Calendário dos Mártires (Anno Martyrum, AM) continua a usar a Grande Perseguição sob o imperador romano Diocleciano como seu ponto de partida. A Igreja Copta, cujas festividades giram em torno do martírio dos santos, acredita que o dia da morte de um santo é o dia de seu nascimento no céu. É por isso que a tradição popular se refere ao dia de um santo como um moulid (ou aniversário). Como vários de seus antecessores, Santo Atanásio, conhecido também como “o Campeão da Ortodoxia”, experimentou o exílio e o sofrimento por sua defesa da ortodoxia, solidificando esse tema da perseguição como um tema duradouro da identidade copta. Os papas egípcios, através de sua liderança e teologia, garantiram que o cristianismo primitivo tivesse uma base sólida para as crenças fundamentais da fé. Suas contribuições moldaram a ortodoxia cristã como a conhecemos hoje.

Anno Martyrum. Fonte: Nascimento do Calendário Copta – Arquivos Especiais – Folk – Ahram Online

O chamado a sofrer por Cristo encontrou expressão significativa no desenvolvimento das comunidades ascéticas e monásticas – outra característica definidora do cristianismo, que teve origem no Egito. Tanto a forma solitária (ou eremítica) quanto a forma comunal (ou cenobítica) do monaquismo foram desenvolvidas por grandes teólogos egípcios como Santo Antão e São Pacômio. Santo Antão é considerado o fundador do monaquismo solitário. Inspirado pelas palavras de Cristo no Evangelho (“Se queres ser perfeito, vai, vende tudo o que tens, dá aos pobres e terás um tesouro no céu; depois, vem e segue-me” – São Mateus 19, 21). No deserto, praticou a oração, o jejum e o combate espiritual contra tentações.  

Santo Antão, o pai de todos os monges

São Pacômio, por sua vez, é creditado como fundador do cenobitismo. Ele criou as primeiras comunidades organizadas onde monges viviam juntos sob uma regra comum, compartilhando trabalho, oração e refeições, e elaborou a primeira regra monástica escrita, que estabelecia horários para oração, leitura, trabalho e silêncio, servindo de modelo para regras posteriores, como as de São Basílio e São Bento. Suas comunidades floresceram ao longo do Nilo, reunindo centenas de monges. Diferentemente do eremitismo, o cenobitismo enfatizava a vida comunitária como um reflexo do corpo de Cristo. O modelo monástico egípcio espalhou-se por regiões como Síria, Palestina e Europa.

A importância do Egito no cristianismo primitivo pode ser sumarizada por sua influência teológica, espiritual e cultural: a) a preservação e defesa da doutrina cristã; b) a formação das primeiras comunidades monásticas; c) seu papel como refúgio e local de martírio; d) a contribuição para o desenvolvimento de práticas litúrgicas e intelectuais. O Egito não apenas moldou o cristianismo de sua época, mas também deixou um legado que continua a influenciar o cristianismo globalmente.

Referências

  1. Atualmente, o termo “copta” refere-se os cristãos egípcios, predominantemente membros da Igreja Ortodoxa Copta e aos cristãos que são membros da Igreja Católica Copta.[]
  2. Por causa de sua abordagem filosófica e de algumas ideias que mais tarde foram consideradas ambíguas, Clemente nunca foi formalmente canonizado como santo na Igreja Católica. No entanto, ele é reverenciado como um dos Pais da Igreja e reconhecido por sua contribuição intelectual. No prefácio de uma edição do livro “O Pedagogo”, de autoria de Clemente, o Papa Bento XVI afirma: “As obras mais importantes que dele [Clemente de Alexandria] nos restam são três: o Protréptico, o Pedagogo e o Estromata. Mesmo parecendo não ser esta a intenção originária do autor, é uma realidade que estes escritos constituem uma verdadeira trilogia, destinada a acompanhar eficazmente a maturação espiritual do cristão. (…)No seu conjunto, a catequese clementina acompanha passo a passo o caminho do catecúmeno e do batizado para que, com as suas ‘asas’ da fé e da razão, eles alcancem um conhecimento íntimo da Verdade, que é Jesus Cristo, o Verbo de Deus. (…)Clemente retoma finalmente a doutrina segundo a qual o fim último do homem é tornar-se semelhante a Deus. Somos criados à imagem e semelhança de Deus, mas isto ainda é um desafio, um caminho; de fato, a finalidade da vida, o destino último é verdadeiramente tornar-nos semelhantes a Deus”. (In: ALEXANDRIA, Clemente de. O Pedagogo. Campinas: Ecclesiae, 2014, p.10-11) []
Patricia Silva

Patricia Silva

Pedagoga, Autora do livro “Mulheres que o feminismo não vê - Classe e Raça”. Realizou pós-doutoramento em Sociologia pela UFRJ.

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A falaciosa ideia que dita o cristianismo como uma “religião ocidental, europeia, branca e opressora” encontra africanos e seus descendentes em várias partes do mundo.  A ideia é falsa porque é historicamente imprecisa e teologicamente infactível. De fato, em momentos específicos da história, o cristianismo foi utilizado como um mecanismo de tirania por homens vis de muitas nações ocidentais. Contudo, também é fato que o Evangelho se enraizou firmemente na África, no Oriente Médio e na Ásia muito antes mesmo da ideia do Ocidente. E é bastante lamentável que tal fato seja tão pouco enfatizado.

Igreja Copta Ortodoxa.

Para o bem do Evangelho, deve-se entender que o cristianismo não é propriedade cultural de nenhum grupo racial, étnico ou social. O apologista protestante Billy Graham, em uma de suas pregações, disse o seguinte sobre o cristianismo: “nunca diga que é uma religião de brancos. Ou uma religião de negros. É a religião de todo o mundo, pertence ao mundo!”. Ou seja, a fé cristã foi escolhida e adotada por várias nações, tribos e línguas. Como muitos grupos de pessoas nascidas fora do Ocidente (e seus descendentes) foram culturalmente alienados do Evangelho por narrativas ideológicas, é imperativo explorar a história negligenciada do cristianismo.

No caso do cristianismo na África, a história começa com o Egito, que tem um significado especial na história cristã como um todo porque foi para lá que a Sagrada Família fugiu para escapar da perseguição do rei Herodes (São Mateus 2, 13–15) e lá permaneceu como refugiada nos primeiros anos de vida de Nosso Senhor Jesus Cristo. Essa presença reforçou o simbolismo do Egito como um local de refúgio e proteção divina, gerando uma tradição que ainda é profundamente reverenciada na Igreja Copta1 Ortodoxa, com locais associados à jornada da Sagrada Família sendo destinos de peregrinação.

Um dos cartazes diz: “São Marcos, nosso pai, Alexandria, nossa mãe”, lema que representa a filiação da Igreja Ortodoxa Etíope a Alexandria (Copta Ortodoxa).

A Igreja Copta mantém a tradição de que São Marcos foi enviado para evangelizar o norte da África e chegou até Alexandria, no Egito, por meio da Líbia. Muitos pesquisadores dedicados ao estudo do cristianismo primitivo corroboram essa história e atestam sua transmissão oral. Estima-se que a comunidade cristã do Egito cresceu, originalmente, entre a comunidade judaica em Alexandria ao longo dos dois primeiros séculos. Inúmeros artefatos, estruturas e documentos cristãos vêm do Egito, o que, claro, atesta a imensa importância deste país para a história cristã.

O Egito produziu uma das primeiras e mais proeminentes escolas de educação teológica – a Escola Catequética de Alexandria – liderada por padres da Igreja como Clemente de Alexandria2,  um dos mais influentes teólogos da Igreja primitiva. O primeiro uso atestado do termo “papa” (do grego “πάππας”, que significa “pai”) foi em referência ao Patriarca de Alexandria, refletindo a importância da liderança religiosa do Egito no cristianismo primitivo. Somente séculos depois o título passou a ser associado ao Bispo de Roma. A igreja egípcia era única em sua elevada reverência por seu papa, bem como a estrutura eclesiástica fortemente unificada. 

Papa Francisco e o Patriarca Tawadros II

A fundação do Credo Apostólico e a doutrina da Trindade foi ferozmente defendida no Egito. Embora o Credo Apostólico tenha sido uma evolução gradual das confissões de fé dos primeiros cristãos, a defesa da sua essência, especialmente da divindade de Cristo e da igualdade dentro da Trindade, foi articulada e protegida principalmente pelos papas egípcios São Alexandre de Alexandria e Santo Atanásio de Alexandria.

O sofrimento pela causa de Cristo e o martírio é outro tema proeminente no cristianismo egípcio. Durante as perseguições romanas, o Egito foi um dos locais de maior número de mártires cristãos. A coragem e a fé dos mártires egípcios inspiraram o cristianismo primitivo. Isso é evidenciado pelo fato de que o calendário litúrgico copta ou Calendário dos Mártires (Anno Martyrum, AM) continua a usar a Grande Perseguição sob o imperador romano Diocleciano como seu ponto de partida. A Igreja Copta, cujas festividades giram em torno do martírio dos santos, acredita que o dia da morte de um santo é o dia de seu nascimento no céu. É por isso que a tradição popular se refere ao dia de um santo como um moulid (ou aniversário). Como vários de seus antecessores, Santo Atanásio, conhecido também como “o Campeão da Ortodoxia”, experimentou o exílio e o sofrimento por sua defesa da ortodoxia, solidificando esse tema da perseguição como um tema duradouro da identidade copta. Os papas egípcios, através de sua liderança e teologia, garantiram que o cristianismo primitivo tivesse uma base sólida para as crenças fundamentais da fé. Suas contribuições moldaram a ortodoxia cristã como a conhecemos hoje.

Anno Martyrum. Fonte: Nascimento do Calendário Copta – Arquivos Especiais – Folk – Ahram Online

O chamado a sofrer por Cristo encontrou expressão significativa no desenvolvimento das comunidades ascéticas e monásticas – outra característica definidora do cristianismo, que teve origem no Egito. Tanto a forma solitária (ou eremítica) quanto a forma comunal (ou cenobítica) do monaquismo foram desenvolvidas por grandes teólogos egípcios como Santo Antão e São Pacômio. Santo Antão é considerado o fundador do monaquismo solitário. Inspirado pelas palavras de Cristo no Evangelho (“Se queres ser perfeito, vai, vende tudo o que tens, dá aos pobres e terás um tesouro no céu; depois, vem e segue-me” – São Mateus 19, 21). No deserto, praticou a oração, o jejum e o combate espiritual contra tentações.  

Santo Antão, o pai de todos os monges

São Pacômio, por sua vez, é creditado como fundador do cenobitismo. Ele criou as primeiras comunidades organizadas onde monges viviam juntos sob uma regra comum, compartilhando trabalho, oração e refeições, e elaborou a primeira regra monástica escrita, que estabelecia horários para oração, leitura, trabalho e silêncio, servindo de modelo para regras posteriores, como as de São Basílio e São Bento. Suas comunidades floresceram ao longo do Nilo, reunindo centenas de monges. Diferentemente do eremitismo, o cenobitismo enfatizava a vida comunitária como um reflexo do corpo de Cristo. O modelo monástico egípcio espalhou-se por regiões como Síria, Palestina e Europa.

A importância do Egito no cristianismo primitivo pode ser sumarizada por sua influência teológica, espiritual e cultural: a) a preservação e defesa da doutrina cristã; b) a formação das primeiras comunidades monásticas; c) seu papel como refúgio e local de martírio; d) a contribuição para o desenvolvimento de práticas litúrgicas e intelectuais. O Egito não apenas moldou o cristianismo de sua época, mas também deixou um legado que continua a influenciar o cristianismo globalmente.

Referências

  1. Atualmente, o termo “copta” refere-se os cristãos egípcios, predominantemente membros da Igreja Ortodoxa Copta e aos cristãos que são membros da Igreja Católica Copta.[]
  2. Por causa de sua abordagem filosófica e de algumas ideias que mais tarde foram consideradas ambíguas, Clemente nunca foi formalmente canonizado como santo na Igreja Católica. No entanto, ele é reverenciado como um dos Pais da Igreja e reconhecido por sua contribuição intelectual. No prefácio de uma edição do livro “O Pedagogo”, de autoria de Clemente, o Papa Bento XVI afirma: “As obras mais importantes que dele [Clemente de Alexandria] nos restam são três: o Protréptico, o Pedagogo e o Estromata. Mesmo parecendo não ser esta a intenção originária do autor, é uma realidade que estes escritos constituem uma verdadeira trilogia, destinada a acompanhar eficazmente a maturação espiritual do cristão. (…)No seu conjunto, a catequese clementina acompanha passo a passo o caminho do catecúmeno e do batizado para que, com as suas ‘asas’ da fé e da razão, eles alcancem um conhecimento íntimo da Verdade, que é Jesus Cristo, o Verbo de Deus. (…)Clemente retoma finalmente a doutrina segundo a qual o fim último do homem é tornar-se semelhante a Deus. Somos criados à imagem e semelhança de Deus, mas isto ainda é um desafio, um caminho; de fato, a finalidade da vida, o destino último é verdadeiramente tornar-nos semelhantes a Deus”. (In: ALEXANDRIA, Clemente de. O Pedagogo. Campinas: Ecclesiae, 2014, p.10-11) []

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