Colunistas

Bicicletas, caminhos, incertezas: por uma espiritualidade em movimento

Na vida espiritual não há sofás, delivery e Netflix. A fé é caminho. Não podemos, não devemos parar; afinal, o destino, a meta, o ponto de chegada é Deus.

Bicicletas, caminhos, incertezas: por uma espiritualidade em movimento
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Bicicletas, caminhos, incertezas: por uma espiritualidade em movimento

Na vida espiritual não há sofás, delivery e Netflix. A fé é caminho. Não podemos, não devemos parar; afinal, o destino, a meta, o ponto de chegada é Deus.

Data da Publicação: 16/04/2025
Tempo de leitura:
Autor: Rudy Albino
Data da Publicação: 16/04/2025
Tempo de leitura:
Autor: Rudy Albino

Eu comecei a pedalar com mais frequência em 2019. Meu pai faleceu naquele ano, sentado na própria cama; – ele, “safenado” há uma década, infartou –. O estopim do seu infarto? Um vazamento de água… Coisas da vida, coisas da morte. Depois de anos de fumo e de álcool (o segundo ele o abandonou muito mais cedo), como todos os homens, bons ou maus da minha terra, foi-se… Fiquei assustado. Corri para o cardiologista. 

Meu pai trabalhou boa parte da vida sem carro ou moto. Sempre de bicicleta – precedida por uma charrete puxada por uma égua na meia-idade. (Você começa a perceber que está envelhecendo quando as novelas de época lembram muito a sua infância…). Eu, pelo contrário, odiava a bicicleta. Creio que o sindicato dos gordos concordaria comigo que uma “magrela” nos anos 80-90, sem marcha, não era precisamente o que de mais prazeroso havia…

Hoje eu não sou propriamente um ciclista. Não passo de um professor com sobrepeso ou obeso que tem medo de morrer jovem e deixar quatro filhos sem pai. Por isso, comprei uma bicicleta básica, depois de haver experimentado uma bicicleta bem melhor, com um “kit Shimano” caro. Indo pedalar para a Galinha Choca de Quixadá, eu me senti livre e eufórico, eu diria. Acho que naquele dia eu senti o que era a endorfina.

A bicicleta começou a me ensinar muitas coisas sobre o meu corpo. Descobri como é frágil o nosso equilíbrio. Como um simples galho ou o menor dos buracos pode se tornar uma armadilha mortal. Pior do que isso é cair estatelado no chão depois de ser derrubado por uma forte rajada de vento. Maior que a minha dor só a minha humilhação. Você pode sentir a brisa no rosto, admirar o verde das árvores enquanto pedala e, no momento seguinte, estar gritando enfurecidamente “sai, sai” para uns vira-latas raivosos, tentando pedalar e chutar ao mesmo tempo.Autoconsciência corporal não é o único ganho do ciclismo. Eu não sabia que ele poderia me ensinar tanto sobre a minha alma, sobre a minha vida espiritual. [Obs.: os ciclistas têm até uma padroeira, a Madonna del Ghisalo, lá na Lombardia]. Quem me abriu os olhos para tais lições foi a leiga, poetisa e mística francesa, Madeleine Delbrêl (1904-1964), que escreveu sobre a “Espiritualidade de Bicicleta”1

Antes, preciso dizer que ela conheceu a incredulidade na juventude e que foi atraída fortemente pelo exemplo de um ex-namorado, inteligente, convicto de sua fé, uma fé realista, de um Cristo real, vivo – a ponto de levá-lo abruptamente para os dominicanos, deixando a francesinha desconsolada e mais violentamente ateia. Ser trocada por Deus não foi fácil; mas fez parte do caminho que a levou a ser tocada por ele. Ou seja, a ex-namorada experimentou muita revolta antes de sentir o influxo do testemunho de Jean – assim ele se chamava, e de outros amigos cristãos decididos. Um abade, Jacques Lorenzo, conduziu-a ao conhecimento da Boa Nova de Jesus – como se fosse uma explosão dentro dela. Ela, que matara Deus e, por isso, celebrava a morte, passou a celebrá-Lo, cantando a beleza da vida: “Eu já considero a vida como os prelúdios das esplêndidas sonatas que nos esperam mais tarde. Toda sua poderosa riqueza já está contida no prelúdio”2.  Movida pelo exemplo de Teresinha do Menino Jesus, compatriota dela canonizada em 1925, pensou em ir para o Carmelo. Contudo, seus pais estavam doentes. Os deveres familiares exigiam o seu compromisso. O mundo precisava ser o seu Carmelo. Tornou-se algo próximo de uma “leiga consagrada” e buscou formas de vida comunitária, indo parar em Ivry, uma cidade com forte presença de marxistas. Virou assistente social e conseguiu o difícil equilíbrio de amar os pobres sem deixar-se seduzir por uma ideologia que ia contra o que ela acreditava. Ela amava os marxistas, sem concordar com eles. Madeleine sofria pela ausência da Igreja aí; muitos católicos contentavam-se com um cristianismo de fato aburguesado. Ela lamentava as paróquias isoladas, centradas em si mesmas. Ela queria uma “espiritualidade da rua”3. Acho que, quando o Papa Francisco pedia que fôssemos “callejeros de la fe” (caminheiros, “rueiros”), era disso que ele falava4.  Madeleine já o dizia na metade do século passado com palavras assim: “Não é concebível que um Deus onipotente, embora queira ser amado, dê a seus filhos uma vida na qual não possam amá-lo”5. Qualquer um, em qualquer lugar, deveria amar a Deus acima de tudo. É o mandamento, a meta, o método.

Contudo, preciso voltar para a bicicleta. Como Delbrêl viveu plenamente o seu laicato, nutrindo-se do seu batismo – sem imitações artificiais da vida religiosa, inspirada na radicalidade das bem-aventuranças, fora do templo e dos claustros – ela comparou a vida laical ao “andar” de bicicleta. Cito-a extensamente, para captarmos intensamente a sua potência poética. Ela nos fala do “equilíbrio” que Deus nos oferece:

“Um equilíbrio que se estabelece e se mantém
só em movimento
e só num impulso.

Como a bicicleta que não se mantém de pé sem rodar,
uma bicicleta que fica encostada na parede
enquanto não nos sentamos nela
e a fazemos correr depressa pela estrada.

É de insegurança universal,
vertiginosa,
a condição a nós oferecida.
Se começarmos a considerá-la,
nossa vida decai, nos falta.

Só podemos nos manter de pé se caminhamos,
se prosseguimos num impulso de caridade.

Todos os santos apontados como modelos,
ou muitos dentre eles,
viviam sob o regime das Previdências
– uma espécie de Instituto espiritual, de garantia
dos riscos e doenças.
e que assumia até seus partos espirituais.
Tinham o tempo das orações oficiais,
Métodos para fazer penitência, todo um código de conselhos.

Mas, para nós,
é num liberalismo um pouco doido,
que vivemos a aventura de vossa graça.
Vós nos recusais o mapa de nossa rota.
Nosso avançar é durante a noite.
[…]
Muitas vezes a garantia única é este cansaço regular
do mesmo trabalho de cada dia,
da mesma arrumação da casa a recomeçar,
dos mesmos defeitos a corrigir,
das mesmas bobagens a não fazer.

Mas fora desta garantia, tudo mais é ao léu de vossa fantasia
que não faz cerimônias conosco”. 6

Ora, ora… Eu sei do que ela está falando. Depois de dez anos na formação sacerdotal eu deixei tudo e voltei para a casa dos meus pais, com um parco dinheiro, fruto da generosidade do padre com quem eu trabalhava na formação e que me serviu para comprar um guarda-roupas amarelo de MDF. Eu não tinha mais nada. Nem seminário nem formador;  nem comida, nem trabalho doméstico, nem oração comunitária no horário certo. Eu não tinha “o certo”.

Foram anos difíceis. Dúvidas… Oscilações… Medos, melancolia. Diários espirituais escritos por mim e lidos por olhos indiscretos. Um emprego supliciante no início, num órgão público, onde os ódios e as mesquinharias davam o tom do trabalho diário e tudo parecia uma seleção natural onde sobrevivia o medroso, o pequeno, o covarde; meus pais eram pobres e, agora, tinham uma boca a mais, que por uma década esteve longe; havia ainda um irmão adolescente com gosto musical duvidoso e um aparelho de som que prestava os seus serviços para a comunidade toda – serviço não solicitado… Aquelas músicas horríveis faziam a casa tremer. E eu tentava escrever minha dissertação de mestrado.

Eu tinha perdido todas as seguranças que me foram dadas pela estrutura da Igreja. Eu não reclamava do passado; eu não temia o futuro, pois não fazia ideia para onde iria e se havia algum futuro. Eu não tolerava o presente; caminhava, só ia, vagava, perambulava, como um zumbi – psicológica e espiritualmente falando. Fui avante. Sustentado por quem me amava – minha namorada – até encontrar um caminho. Apoiado na fé de uma Igreja que eu amava, mas com a qual eu não podia mais contar em termos materiais. Um caminho feito caminhando, como diria o poeta. Foi difícil largar tudo. Na vida eclesial é muito fácil agarrar-se ao periférico para se sustentar. O tempo, todavia, deixa tudo cair e você está de mãos vazias. Em algum momento, virá o imperativo vital de fazer o ato de fé de Abraão. Uma hora você vai ter que sair de sua casa, de sua terra, de sua parentela e lançar-se num caminho de incertezas. Você sabe que tem uma meta, um destino, mas o caminho é tortuoso, sinuoso, duvidoso… É hora de deixar Deus trabalhar, como me lembrava o meu amado Ratzinger por ocasião da canonização do meu igualmente amado São Josemaría Escrivá: “porque quem está nas mãos de Deus, cai sempre nas mãos de Deus. É assim que desaparece todo o medo e nasce a valentia de responder aos desafios do mundo de hoje”7

Ou seja: parar não é, não deve ser uma opção. Você está em cima da bicicleta. Sua casa, seus filhos, seu trabalho de hoje – não o tão sonhado trabalho ideal de amanhã – exigem o equilíbrio de quem está andando não sobre a areia movediça da incerteza absoluta, daquela desorientação do que abraçou a dúvida e o relativismo moral, espiritual, mas sobre o solo firme da fé num Deus que lhe deu um horizonte, um caminho – mas não um mapa, já vimos. Certa vez um sacerdote disse numa pregação que Deus chamou pescadores a segui-lo porque eles sabiam que teriam que fazer os caminhos; afinal, o mar não tem estradas…

Se você parar, você cai. Você não pode esquecer disso. O movimento é interior; se possível, exterior. E essa lição não vem do alto, mas de quem observava quem vivia para o Alto:

“‘Incrível – dizia um agente da política motorizada – a este Papa [João XXIII] não se pode fazer parar! Está sempre andando! Não tenho mais um momento de repouso. Acabo por comer os macarrões sempre frios’. Lamentava-se com um colega que, como ele, tinha recebido ordem do chefe da polícia romana para escoltar o Santo Padre. Efetivamente acontecia quase sempre que uma saída do Papa fosse anunciada na última hora, e que, portanto, os policiais motorizados deveriam deixar tudo e precipitar-se para o Vaticano.

‘Nada de espantar – respondeu secamente o colega – olha o que diz a tabuleta que se encontra diante do portão de bronze através do qual tradicionalmente só como Papa se podia passar: ‘É proibido parar!’”.

Nunca é demais lembrar que o policial está falando de um homem já quase octogenário, que resolveu começar um Concílio ecumênico. Bem se vê que Deus gosta de começar coisas grandiosas com idosos. Quando parece estar chegando o fim, Deus oferece o horizonte de um novo, estimulante e assustador começo.

Talvez você, como eu, sinta-se cansado. Se passou dos quarenta, dizer que está cansado será a sua ladainha diária. Estamos na “sociedade do cansaço”. Nunca saímos do trabalho pois sempre o levamos conosco. A proibição de parar não envolve o trabalho ininterrupto, extenuante. Não… O trabalho pode e deve ser interrompido. O trabalho é santo, o descanso também. Isso é liberdade e o contrário sempre será escravidão. Não podemos parar de viver, de nos decidirmos por fazer a vontade de Deus em meio às incertezas, nas curvas da vida, nos seus caminhos altos e baixos, à beira do caminho, em montanhas pedregosas… Na vida espiritual não há sofás, delivery e Netflix. A fé é caminho. Não podemos, não devemos parar; afinal, o destino, a meta, o ponto de chegada é Deus.

Referências

  1. Daniele Rocchetti, “Madeleine Delbrêl: a espiritualidade da rua”, 11/05/2024. Disponível em: https://ihu.unisinos.br/categorias/639155-madeleine-delbrel-a-espiritualidade-da-rua.[]
  2. Ibid.[]
  3. Ibid,[]
  4. Papa Francisco, Exortação Apostólica Evangelii Gaudium, n. 106.[]
  5. Daniele Rocchetti, “Madeleine Delbrêl”, op. cit.[]
  6. Madeleine Delbrêl, A alegria de crer. Rio de Janeiro: Agir, 1970, p. 89-90.[]
  7. Joseph Ratzinger “Deixar Deus trabalhar”, 22/10/2002. Disponível em: https://opusdei.org/pt-br/article/deixar-deus-trabalhar/#.[]
Rudy Albino

Rudy Albino

É professor, palestrante, Dr. em Sociologia. Pós-Doc. em Teologia e autor coluna "Liturgia e Trabalho: pistas para uma espiritualidade laical".

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Eu comecei a pedalar com mais frequência em 2019. Meu pai faleceu naquele ano, sentado na própria cama; – ele, “safenado” há uma década, infartou –. O estopim do seu infarto? Um vazamento de água… Coisas da vida, coisas da morte. Depois de anos de fumo e de álcool (o segundo ele o abandonou muito mais cedo), como todos os homens, bons ou maus da minha terra, foi-se… Fiquei assustado. Corri para o cardiologista. 

Meu pai trabalhou boa parte da vida sem carro ou moto. Sempre de bicicleta – precedida por uma charrete puxada por uma égua na meia-idade. (Você começa a perceber que está envelhecendo quando as novelas de época lembram muito a sua infância…). Eu, pelo contrário, odiava a bicicleta. Creio que o sindicato dos gordos concordaria comigo que uma “magrela” nos anos 80-90, sem marcha, não era precisamente o que de mais prazeroso havia…

Hoje eu não sou propriamente um ciclista. Não passo de um professor com sobrepeso ou obeso que tem medo de morrer jovem e deixar quatro filhos sem pai. Por isso, comprei uma bicicleta básica, depois de haver experimentado uma bicicleta bem melhor, com um “kit Shimano” caro. Indo pedalar para a Galinha Choca de Quixadá, eu me senti livre e eufórico, eu diria. Acho que naquele dia eu senti o que era a endorfina.

A bicicleta começou a me ensinar muitas coisas sobre o meu corpo. Descobri como é frágil o nosso equilíbrio. Como um simples galho ou o menor dos buracos pode se tornar uma armadilha mortal. Pior do que isso é cair estatelado no chão depois de ser derrubado por uma forte rajada de vento. Maior que a minha dor só a minha humilhação. Você pode sentir a brisa no rosto, admirar o verde das árvores enquanto pedala e, no momento seguinte, estar gritando enfurecidamente “sai, sai” para uns vira-latas raivosos, tentando pedalar e chutar ao mesmo tempo.Autoconsciência corporal não é o único ganho do ciclismo. Eu não sabia que ele poderia me ensinar tanto sobre a minha alma, sobre a minha vida espiritual. [Obs.: os ciclistas têm até uma padroeira, a Madonna del Ghisalo, lá na Lombardia]. Quem me abriu os olhos para tais lições foi a leiga, poetisa e mística francesa, Madeleine Delbrêl (1904-1964), que escreveu sobre a “Espiritualidade de Bicicleta”1

Antes, preciso dizer que ela conheceu a incredulidade na juventude e que foi atraída fortemente pelo exemplo de um ex-namorado, inteligente, convicto de sua fé, uma fé realista, de um Cristo real, vivo – a ponto de levá-lo abruptamente para os dominicanos, deixando a francesinha desconsolada e mais violentamente ateia. Ser trocada por Deus não foi fácil; mas fez parte do caminho que a levou a ser tocada por ele. Ou seja, a ex-namorada experimentou muita revolta antes de sentir o influxo do testemunho de Jean – assim ele se chamava, e de outros amigos cristãos decididos. Um abade, Jacques Lorenzo, conduziu-a ao conhecimento da Boa Nova de Jesus – como se fosse uma explosão dentro dela. Ela, que matara Deus e, por isso, celebrava a morte, passou a celebrá-Lo, cantando a beleza da vida: “Eu já considero a vida como os prelúdios das esplêndidas sonatas que nos esperam mais tarde. Toda sua poderosa riqueza já está contida no prelúdio”2.  Movida pelo exemplo de Teresinha do Menino Jesus, compatriota dela canonizada em 1925, pensou em ir para o Carmelo. Contudo, seus pais estavam doentes. Os deveres familiares exigiam o seu compromisso. O mundo precisava ser o seu Carmelo. Tornou-se algo próximo de uma “leiga consagrada” e buscou formas de vida comunitária, indo parar em Ivry, uma cidade com forte presença de marxistas. Virou assistente social e conseguiu o difícil equilíbrio de amar os pobres sem deixar-se seduzir por uma ideologia que ia contra o que ela acreditava. Ela amava os marxistas, sem concordar com eles. Madeleine sofria pela ausência da Igreja aí; muitos católicos contentavam-se com um cristianismo de fato aburguesado. Ela lamentava as paróquias isoladas, centradas em si mesmas. Ela queria uma “espiritualidade da rua”3. Acho que, quando o Papa Francisco pedia que fôssemos “callejeros de la fe” (caminheiros, “rueiros”), era disso que ele falava4.  Madeleine já o dizia na metade do século passado com palavras assim: “Não é concebível que um Deus onipotente, embora queira ser amado, dê a seus filhos uma vida na qual não possam amá-lo”5. Qualquer um, em qualquer lugar, deveria amar a Deus acima de tudo. É o mandamento, a meta, o método.

Contudo, preciso voltar para a bicicleta. Como Delbrêl viveu plenamente o seu laicato, nutrindo-se do seu batismo – sem imitações artificiais da vida religiosa, inspirada na radicalidade das bem-aventuranças, fora do templo e dos claustros – ela comparou a vida laical ao “andar” de bicicleta. Cito-a extensamente, para captarmos intensamente a sua potência poética. Ela nos fala do “equilíbrio” que Deus nos oferece:

“Um equilíbrio que se estabelece e se mantém
só em movimento
e só num impulso.

Como a bicicleta que não se mantém de pé sem rodar,
uma bicicleta que fica encostada na parede
enquanto não nos sentamos nela
e a fazemos correr depressa pela estrada.

É de insegurança universal,
vertiginosa,
a condição a nós oferecida.
Se começarmos a considerá-la,
nossa vida decai, nos falta.

Só podemos nos manter de pé se caminhamos,
se prosseguimos num impulso de caridade.

Todos os santos apontados como modelos,
ou muitos dentre eles,
viviam sob o regime das Previdências
– uma espécie de Instituto espiritual, de garantia
dos riscos e doenças.
e que assumia até seus partos espirituais.
Tinham o tempo das orações oficiais,
Métodos para fazer penitência, todo um código de conselhos.

Mas, para nós,
é num liberalismo um pouco doido,
que vivemos a aventura de vossa graça.
Vós nos recusais o mapa de nossa rota.
Nosso avançar é durante a noite.
[…]
Muitas vezes a garantia única é este cansaço regular
do mesmo trabalho de cada dia,
da mesma arrumação da casa a recomeçar,
dos mesmos defeitos a corrigir,
das mesmas bobagens a não fazer.

Mas fora desta garantia, tudo mais é ao léu de vossa fantasia
que não faz cerimônias conosco”. 6

Ora, ora… Eu sei do que ela está falando. Depois de dez anos na formação sacerdotal eu deixei tudo e voltei para a casa dos meus pais, com um parco dinheiro, fruto da generosidade do padre com quem eu trabalhava na formação e que me serviu para comprar um guarda-roupas amarelo de MDF. Eu não tinha mais nada. Nem seminário nem formador;  nem comida, nem trabalho doméstico, nem oração comunitária no horário certo. Eu não tinha “o certo”.

Foram anos difíceis. Dúvidas… Oscilações… Medos, melancolia. Diários espirituais escritos por mim e lidos por olhos indiscretos. Um emprego supliciante no início, num órgão público, onde os ódios e as mesquinharias davam o tom do trabalho diário e tudo parecia uma seleção natural onde sobrevivia o medroso, o pequeno, o covarde; meus pais eram pobres e, agora, tinham uma boca a mais, que por uma década esteve longe; havia ainda um irmão adolescente com gosto musical duvidoso e um aparelho de som que prestava os seus serviços para a comunidade toda – serviço não solicitado… Aquelas músicas horríveis faziam a casa tremer. E eu tentava escrever minha dissertação de mestrado.

Eu tinha perdido todas as seguranças que me foram dadas pela estrutura da Igreja. Eu não reclamava do passado; eu não temia o futuro, pois não fazia ideia para onde iria e se havia algum futuro. Eu não tolerava o presente; caminhava, só ia, vagava, perambulava, como um zumbi – psicológica e espiritualmente falando. Fui avante. Sustentado por quem me amava – minha namorada – até encontrar um caminho. Apoiado na fé de uma Igreja que eu amava, mas com a qual eu não podia mais contar em termos materiais. Um caminho feito caminhando, como diria o poeta. Foi difícil largar tudo. Na vida eclesial é muito fácil agarrar-se ao periférico para se sustentar. O tempo, todavia, deixa tudo cair e você está de mãos vazias. Em algum momento, virá o imperativo vital de fazer o ato de fé de Abraão. Uma hora você vai ter que sair de sua casa, de sua terra, de sua parentela e lançar-se num caminho de incertezas. Você sabe que tem uma meta, um destino, mas o caminho é tortuoso, sinuoso, duvidoso… É hora de deixar Deus trabalhar, como me lembrava o meu amado Ratzinger por ocasião da canonização do meu igualmente amado São Josemaría Escrivá: “porque quem está nas mãos de Deus, cai sempre nas mãos de Deus. É assim que desaparece todo o medo e nasce a valentia de responder aos desafios do mundo de hoje”7

Ou seja: parar não é, não deve ser uma opção. Você está em cima da bicicleta. Sua casa, seus filhos, seu trabalho de hoje – não o tão sonhado trabalho ideal de amanhã – exigem o equilíbrio de quem está andando não sobre a areia movediça da incerteza absoluta, daquela desorientação do que abraçou a dúvida e o relativismo moral, espiritual, mas sobre o solo firme da fé num Deus que lhe deu um horizonte, um caminho – mas não um mapa, já vimos. Certa vez um sacerdote disse numa pregação que Deus chamou pescadores a segui-lo porque eles sabiam que teriam que fazer os caminhos; afinal, o mar não tem estradas…

Se você parar, você cai. Você não pode esquecer disso. O movimento é interior; se possível, exterior. E essa lição não vem do alto, mas de quem observava quem vivia para o Alto:

“‘Incrível – dizia um agente da política motorizada – a este Papa [João XXIII] não se pode fazer parar! Está sempre andando! Não tenho mais um momento de repouso. Acabo por comer os macarrões sempre frios’. Lamentava-se com um colega que, como ele, tinha recebido ordem do chefe da polícia romana para escoltar o Santo Padre. Efetivamente acontecia quase sempre que uma saída do Papa fosse anunciada na última hora, e que, portanto, os policiais motorizados deveriam deixar tudo e precipitar-se para o Vaticano.

‘Nada de espantar – respondeu secamente o colega – olha o que diz a tabuleta que se encontra diante do portão de bronze através do qual tradicionalmente só como Papa se podia passar: ‘É proibido parar!’”.

Nunca é demais lembrar que o policial está falando de um homem já quase octogenário, que resolveu começar um Concílio ecumênico. Bem se vê que Deus gosta de começar coisas grandiosas com idosos. Quando parece estar chegando o fim, Deus oferece o horizonte de um novo, estimulante e assustador começo.

Talvez você, como eu, sinta-se cansado. Se passou dos quarenta, dizer que está cansado será a sua ladainha diária. Estamos na “sociedade do cansaço”. Nunca saímos do trabalho pois sempre o levamos conosco. A proibição de parar não envolve o trabalho ininterrupto, extenuante. Não… O trabalho pode e deve ser interrompido. O trabalho é santo, o descanso também. Isso é liberdade e o contrário sempre será escravidão. Não podemos parar de viver, de nos decidirmos por fazer a vontade de Deus em meio às incertezas, nas curvas da vida, nos seus caminhos altos e baixos, à beira do caminho, em montanhas pedregosas… Na vida espiritual não há sofás, delivery e Netflix. A fé é caminho. Não podemos, não devemos parar; afinal, o destino, a meta, o ponto de chegada é Deus.

Referências

  1. Daniele Rocchetti, “Madeleine Delbrêl: a espiritualidade da rua”, 11/05/2024. Disponível em: https://ihu.unisinos.br/categorias/639155-madeleine-delbrel-a-espiritualidade-da-rua.[]
  2. Ibid.[]
  3. Ibid,[]
  4. Papa Francisco, Exortação Apostólica Evangelii Gaudium, n. 106.[]
  5. Daniele Rocchetti, “Madeleine Delbrêl”, op. cit.[]
  6. Madeleine Delbrêl, A alegria de crer. Rio de Janeiro: Agir, 1970, p. 89-90.[]
  7. Joseph Ratzinger “Deixar Deus trabalhar”, 22/10/2002. Disponível em: https://opusdei.org/pt-br/article/deixar-deus-trabalhar/#.[]

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