Colunistas, Destaque

Jesus nasce entre pastores: o trabalho redentor e a redenção do trabalho

Deus tira os pastores do descanso para fazê-los correr ao encontro de Jesus. Não vão atrás da ovelha perdida, mas do pastor de Israel há tanto tempo esperado.

Jesus nasce entre pastores: o trabalho redentor e a redenção do trabalho
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Jesus nasce entre pastores: o trabalho redentor e a redenção do trabalho

Deus tira os pastores do descanso para fazê-los correr ao encontro de Jesus. Não vão atrás da ovelha perdida, mas do pastor de Israel há tanto tempo esperado.

Data da Publicação: 18/12/2024
Tempo de leitura:
Autor: Rudy Albino
Data da Publicação: 18/12/2024
Tempo de leitura:
Autor: Rudy Albino

O presépio: os protagonistas e os figurantes

Em dezembro somos tomados pelo inebriamento do Natal. Talvez o imaginário criado por Charles Dickens em Um conto de Natal, reciclado mil vezes por Hollywood, direta ou indiretamente, marcou a nossa visão natalina mais do que os próprios Evangelhos. Ele a transformou numa festa de família, com muita comida e bebida1. Jesus nos deu a ceia pascal; Dickens a ceia de Natal. E – agora você tem alguém para culpar – as passas no arroz. Pois até mesmo nós, que vivemos em países tropicais, gostamos de filmes com muita neve, com meias em lareiras, com enormes pinheiros natalinos, com um Peru assado reluzente e, por que não o confessar, com o Papai Noel da Coca-Cola. 

Na minha infância, em minha casa, nós comíamos uma galinha assada atarracada de farofa olhando o Chester da Perdigão na TV e tudo estava bem. Claro que não podia faltar o nosso toque: se você nasceu numa família brasileira pobre ou de classe média dos anos 80 e 90, no último mês do ano o algodão virava neve, o espelho de borda alaranjada virava um lago e até patos apareciam no presépio. Eis os nossos milagres natalinos!

Olhando o presépio (não o das vitrines, sem Jesus) cantamos Noite Feliz e somos tocados pela singeleza do bebê Jesus. Ali, plasticamente, toda uma história de horas e até de dias está condensada. Nele vemos Maria e José em atitude adorante, transcendendo a nossa visão do pós-parto hospitalar frio e asséptico, de mães exaustas ou anestesiadas por pagarem um pouco na própria carne a conta pendurada por Eva (cf. Gn 3, 16) e de pais aflitos e muito perdidos.

No presépio a família sagrada está no centro. Atrai todos os nossos olhares, tem o justo protagonismo. No relato o anjo e a estrela dão o brilho claramente divino, ou melhor, cuidam dos efeitos especiais: trazem luz, glória, música para o evento. Mas o melhor e mais exótico figurino têm os Magos, aqueles homens sábios do Oriente (Pérsia), seguidores do Zoroastrismo. Não chegam de mãos vazias: ouro, incenso, mirra. Talvez tenham dito “É só uma lembrancinha”; Maria, como Mãe do Filho de Deus, importava-se mais com a visita do que com o presente e, acima de tudo, com o visitado; afinal, o Emanuel estava na manjedoura ao lado. Contudo, acolheu a todos, exerceu a hospitalidade louvada pela Escritura e, talvez, como boa mãe, também tenha dito “Não reparem a bagunça”. 

Mas não nos esqueçamos de que aquele local era uma gruta usada como estrebaria. Os únicos que ali estavam mais à vontade, de algum modo, eram os pastores. A gruta servia para guardar os rebanhos durante a noite. Mas, na cena natalina, os pastores aparecem mais como figurantes, não é verdade? Ficaram imprensados entre o nascimento virginal e a visita da gente rica e inteligente. Concorrência difícil. Perdem geralmente em glamour e atenção até para as ovelhas e, claro, para o boi e o jumento, nunca mencionados nos Evangelhos, mas que foram escalados para o elenco, muitos anos antes, por Isaías (1, 3). As crianças preferem os animais aos seus cuidadores e, como de costume, o Natal é para elas em primeiro lugar…

Mas os pastores têm algo a nos ensinar sobre Jesus e sobre a nossa vida cristã, sobre o nosso trabalho. Vamos prestar mais atenção ao papel deles nisso tudo.

A má fama dos pastores

Os pobres pastores são os primeiros adoradores do Menino Jesus. Velavam nas vizinhanças de Belém. Escavações feitas à leste da cidade pelo franciscano V. Corbo descobriram em 1951-52 a existência de grutas de habitação usadas por pastores na época herodiana2. De fato, os pastores da Palestina tinham o costume de reunir todas as suas ovelhas num só lugar, como essas grutas, e de revezar a vigia.

Há uma tendência a romantizar os pastores, mas nos tempos de Jesus eles eram equiparados aos condutores de asnos e camelos, aos curtidores, navegantes, açougueiros e a muitos outros trabalhos desvalorizados. Além disso, como passavam as noites fora de casa, não podiam estar lá para proteger a honra de suas esposas e, por sua extensão, as suas. Eram homens fortes, rudes, violentos, queimados pelo sol, mais que acostumados a lutar com animais selvagens e bandidos. Sua fama não era das melhores, como se pode ver: segundo a Lei, a qual tinham dificuldades de cumprir – sendo amiúde considerados impuros –, poderiam ser equiparados a ladrões (por invasões de terras alheias) e assassinos3.

Jesus não se limitou por conta dessas avaliações pouco generosas. A opinião pública não o limitaria. O Messias deixou claro que há bons pastores e maus pastores, que podem ser justamente qualificados de mercenários (Jo 10, 11-18). Ainda assim parece que Cristo chegou a colocá-los entre os pequeninos, entre aqueles que, como os publicanos e prostitutas, aceitam a Boa-Nova4. Ele mesmo, o Bom Pastor, sem culpa alguma, seria colocado entre ladrões; não como objeto de um estigma social que acompanha uma profissão; mas realmente, no Calvário, como vítima de expiação.

Jesus, bom Pastor, nasce entre pastores

Jesus, de fato, identificou-se com os pastores. Afinal, entre muitos a fama d’Ele também não ia bem: comilão, beberrão, blasfemo, transgressor da Lei. Emissário de Belzebu inclusive! (Mt 12, 24). Ou seja, o Filho de Deus, em sua pregação, toma uma categoria de trabalhadores específica muito mal afamada e recolhe imagens desse ofício para falar de si e de sua missão. O Verbo fez-se Pastor. Ele toma como referência de sua autodesignação gente pobre, mas que trabalha arduamente; gente que deve, de certo modo, viver um pouco errante longe de casa; que deve se arriscar contra animais selvagens para conservar o seu rebanho. E nos sobram os exemplos: nos sinóticos Jesus veio para as ovelhas perdidas de Israel (Mt 15, 24; 10, 6, Lc 19, 10), pois elas não têm pastor (Mt 9, 36; Mc 6, 34). Os discípulos são como um pequeno rebanho (Lc 12, 32), perseguido por lobos de fora e de dentro, disfarçados de ovelhas (Mt 10, 16; 7, 15). No fim dos tempos, Ele separará os bons dos maus como o pastor faz com as ovelhas e os cabritos (Mt 25, 31s). Em João estas imagens ficam mais detalhadas: Ele é a porta de entrada e de saída das ovelhas (10, 7.9s); Ele e as suas ovelhas se conhecem (10, 3s. 14s.), até pela voz. Convivência gera intimidade, familiaridade. Ele é o pastor que dá a vida por suas ovelhas (10, 15.17s).

A exaltação da profissão

Estamos acostumados a ouvir que Jesus assumiu a nossa humanidade. Agora vemos que ele assumiu a nossa “profissionalidade”; elevou o homem a uma nova dignidade – a de filho adotivo de Deus –, mas soergueu igualmente também nesse movimento os seus ofícios justos, os seus trabalhos; nesse caso, o pastoreio. E nada melhor do que falar de Si a partir do trabalho do pastor para isso.

Ele já nasce – perdoem-me a provocação – com “consciência de classe” (cruz-credo!): O Pastor supremo nasce entre pastores, entre os seus “pares”, dos quais já assume a pobreza e a humilhação. O trabalho começa a ganhar a sua camada de “sacramentalidade”, o seu caráter também alegórico, pois será sinal e remeterá a uma realidade oculta de salvação, que o tempo desvelará um pouquinho de cada vez, vagarosamente, até que chegue aquela “hora”. Assim, Jesus redime por dentro, logo no início de sua obra salvadora, uma profissão; é claro que tal ato é apenas uma ínfima parcela do trabalho do Redentor, a de redimir o trabalho. Trabalho não é castigo. O trabalho não é (pura) negatividade; é positivo. Com ele o homem coopera com a ação criadora de Deus. Mas, com Jesus, está aberta a porta para que qualquer trabalho reto ou virtuoso lhe sirva como meio de autocomunicação e, portanto, como veículo e ambiente, entre os homens, de sua obra salvadora.

A humildade de toda profissão

Jesus toma uma profissão fundamental para o seu povo, mas espezinhada, para mostrar a Sua identidade. Ele leva adiante o seu rebaixamento, a sua humilhação (Fl 2, 6-11) tomando sobre si o trabalho dos rebaixados; ele ergue a ovelha nos ombros; ele ergue igualmente os pastores e o pastoreio a um valor sobrenatural, pois neles Deus encontrou “encarnação”, analogicamente, de sua ação. Cristo escolhe os pastores como protótipo daqueles humildes a quem foram revelados os mistérios de Deus, em oposição aos sábios e entendidos (Mt 11, 25). Mamãe Maria diante de Isabel já tinha cantado a elevação dos humildes e a derrubada dos orgulhosos (Lc 1, 46-55). Contudo, não nos esqueçamos de que no início do Novo Testamento estavam também os Magos.

O venerável Fulton Sheen, mostra-nos claramente que o relato da Epifania não opõe ignorantes e sábios, mas dois tipos de gente que sabe ser humilde, independente do status social e do ofício:


Só dois tipos de pessoas encontraram o bebê: os pastores e os sábios; os simples e os instruídos; aqueles que sabiam que nada sabiam e aqueles que sabiam que não sabiam tudo. Ele nunca é visto pelo homem de um livro só; tampouco pelo homem que pensa que sabe. Nem mesmo Deus pode dizer algo ao orgulhoso! Só o humilde pode encontrar Deus!5

No fim, não há profissões humildes. Em termos de virtude cristã, deve haver humildade no âmago de qualquer exercício profissional e haverá, desde que se cumpra a condição de manifestar-se ali a presença de Cristo, no trabalho, nos que trabalham.

Pastores, testemunhas legítimas

Como já acenei, a maior parte dos pastores estava dormindo. Alguns, cumprindo o seu turno, estavam em vigília. Ou seja, o pastoreio ensejava uma companhia de amizade, de apoio mútuo, daqueles que sabiam que estavam fora por um único motivo: cuidar do rebanho. Contudo, os pastores, curiosamente, aparecem como primeiras testemunhas do nascimento de Jesus. De algum modo o anjo diz o mesmo que Paulo depois: “Desperta, ó tu que dormes” (Ef 5, 14). Depois do susto angelical e do temor inicial, eles correm atrás do menino com o sinal. Eles o encontraram. Lá estava ele, envolto em faixas. Um currículo como o dos pastores não os habilitava a serem testemunhas credíveis e confiáveis num tribunal6. Mas Deus os quis mesmo assim, como quis Madalena olhando o túmulo vazio como primeira testemunha da ressurreição (Lc 24, 22-25). A palavra deles vale, pois eles encontraram a Palavra da verdade.

A vigília dos pastores. Mas Deus também nos chama no trabalho

Um último aspecto. Jesus nasce enquanto os pastores estão em vigília, como já vimos. De algum modo, eles estão em descanso durante um período de trabalho fora de casa e fora da cidade. Estão somente na pausa noturna do seu ofício. Eles são informados – assustados – pelos anjos durante a noite; são arrancados de suas ovelhas para ver o Pastor dos Pastores. E Bento XVI nos explica a razão disso remontando à eleição de Davi, o rei-pastor:


Deus rejeita o Rei Saul; e Samuel foi enviado a Belém para ter com Jessé, para ungir rei um dos seus filhos que o Senhor havia de lhe indicar. Dos filhos que se apresentam diante dele, nenhum é o escolhido. Falta ainda o mais novo, mas está apascentando o rebanho, explica Jessé ao profeta. Samuel manda-o chamar da pastagem e, por indicação de Deus, unge o jovem Davi “na presença dos seus irmãos” (cf. 1 Sm 16, 1-13). Davi vem do meio das ovelhas que apascenta, e é constituído pastor de Israel (cf. 2 Sm 5, 2). O profeta Miqueias fixa o olhar num futuro distante e anuncia que de Belém sairia Aquele que havia de apascentar um dia o povo de Israel (cf. Mq 5, 1-3; Mt 2, 6); Jesus nasceu entre pastores; Ele é o grande Pastor dos homens (cf. 1 Pd 2, 25; Hb 13, 20)7.

Deus tira os pastores do descanso para fazê-los correr ao encontro de Jesus. Não vão atrás da ovelha perdida, mas do pastor de Israel há tanto tempo esperado. Isso eles não podiam perder. Assim, ao chegarem na gruta, eles, os pastores, convertem-se em ovelhas. Naquela vigília bendita ouviram anjos para terminar ouvindo o chorinho de uma criança. Naquele momento, naqueles balbucios, o mundo começou a reconhecer a voz do Pastor.

Referências

  1. Cf. https://www.antofagica.com.br/2022/12/20/charles-dickens-natal/[]
  2. Cf. Armando Rolla, “Pastôres e magos junto ao berço de Jesus” in Gino Bressan (et al.), Cem problemas bíblicos (Paulinas, São Paulo 1969), 281.[]
  3. Cf. Fernando Armellini, Celebrando a Palavra. Ano A – São Mateus (Ave Maria: São Paulo 20013), 147.[]
  4. Cf. Bruce Malina – Richard L. Rohrbaugh, Evangelhos sinóticos. Comentário à luz das ciências sociais (Paulus: São Paulo 2017), 262; Colomban Lesquivit – Xavier Léon-Dufour in Xavier Léon-Dufour (org.), Vocabulário de Teologia Bíblica (Vozes, Petrópolis 19925), 725.[]
  5. Fulton Sheen, Vida de Cristo, vol. I (Petra: Rio de Janeiro 2018), 34.[]
  6. Cf. Fernando Armellini, Celebrando a Palavra, op. cit., 147.[]
  7. Joseph Ratzinger, Jesus de Nazaré. Da infância à ressurreição (Minha Biblioteca Católica: Dois Irmãos 2021), 61.[]
Rudy Albino

Rudy Albino

É professor, palestrante, Dr. em Sociologia. Pós-Doc. em Teologia e autor coluna "Liturgia e Trabalho: pistas para uma espiritualidade laical".

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O presépio: os protagonistas e os figurantes

Em dezembro somos tomados pelo inebriamento do Natal. Talvez o imaginário criado por Charles Dickens em Um conto de Natal, reciclado mil vezes por Hollywood, direta ou indiretamente, marcou a nossa visão natalina mais do que os próprios Evangelhos. Ele a transformou numa festa de família, com muita comida e bebida1. Jesus nos deu a ceia pascal; Dickens a ceia de Natal. E – agora você tem alguém para culpar – as passas no arroz. Pois até mesmo nós, que vivemos em países tropicais, gostamos de filmes com muita neve, com meias em lareiras, com enormes pinheiros natalinos, com um Peru assado reluzente e, por que não o confessar, com o Papai Noel da Coca-Cola. 

Na minha infância, em minha casa, nós comíamos uma galinha assada atarracada de farofa olhando o Chester da Perdigão na TV e tudo estava bem. Claro que não podia faltar o nosso toque: se você nasceu numa família brasileira pobre ou de classe média dos anos 80 e 90, no último mês do ano o algodão virava neve, o espelho de borda alaranjada virava um lago e até patos apareciam no presépio. Eis os nossos milagres natalinos!

Olhando o presépio (não o das vitrines, sem Jesus) cantamos Noite Feliz e somos tocados pela singeleza do bebê Jesus. Ali, plasticamente, toda uma história de horas e até de dias está condensada. Nele vemos Maria e José em atitude adorante, transcendendo a nossa visão do pós-parto hospitalar frio e asséptico, de mães exaustas ou anestesiadas por pagarem um pouco na própria carne a conta pendurada por Eva (cf. Gn 3, 16) e de pais aflitos e muito perdidos.

No presépio a família sagrada está no centro. Atrai todos os nossos olhares, tem o justo protagonismo. No relato o anjo e a estrela dão o brilho claramente divino, ou melhor, cuidam dos efeitos especiais: trazem luz, glória, música para o evento. Mas o melhor e mais exótico figurino têm os Magos, aqueles homens sábios do Oriente (Pérsia), seguidores do Zoroastrismo. Não chegam de mãos vazias: ouro, incenso, mirra. Talvez tenham dito “É só uma lembrancinha”; Maria, como Mãe do Filho de Deus, importava-se mais com a visita do que com o presente e, acima de tudo, com o visitado; afinal, o Emanuel estava na manjedoura ao lado. Contudo, acolheu a todos, exerceu a hospitalidade louvada pela Escritura e, talvez, como boa mãe, também tenha dito “Não reparem a bagunça”. 

Mas não nos esqueçamos de que aquele local era uma gruta usada como estrebaria. Os únicos que ali estavam mais à vontade, de algum modo, eram os pastores. A gruta servia para guardar os rebanhos durante a noite. Mas, na cena natalina, os pastores aparecem mais como figurantes, não é verdade? Ficaram imprensados entre o nascimento virginal e a visita da gente rica e inteligente. Concorrência difícil. Perdem geralmente em glamour e atenção até para as ovelhas e, claro, para o boi e o jumento, nunca mencionados nos Evangelhos, mas que foram escalados para o elenco, muitos anos antes, por Isaías (1, 3). As crianças preferem os animais aos seus cuidadores e, como de costume, o Natal é para elas em primeiro lugar…

Mas os pastores têm algo a nos ensinar sobre Jesus e sobre a nossa vida cristã, sobre o nosso trabalho. Vamos prestar mais atenção ao papel deles nisso tudo.

A má fama dos pastores

Os pobres pastores são os primeiros adoradores do Menino Jesus. Velavam nas vizinhanças de Belém. Escavações feitas à leste da cidade pelo franciscano V. Corbo descobriram em 1951-52 a existência de grutas de habitação usadas por pastores na época herodiana2. De fato, os pastores da Palestina tinham o costume de reunir todas as suas ovelhas num só lugar, como essas grutas, e de revezar a vigia.

Há uma tendência a romantizar os pastores, mas nos tempos de Jesus eles eram equiparados aos condutores de asnos e camelos, aos curtidores, navegantes, açougueiros e a muitos outros trabalhos desvalorizados. Além disso, como passavam as noites fora de casa, não podiam estar lá para proteger a honra de suas esposas e, por sua extensão, as suas. Eram homens fortes, rudes, violentos, queimados pelo sol, mais que acostumados a lutar com animais selvagens e bandidos. Sua fama não era das melhores, como se pode ver: segundo a Lei, a qual tinham dificuldades de cumprir – sendo amiúde considerados impuros –, poderiam ser equiparados a ladrões (por invasões de terras alheias) e assassinos3.

Jesus não se limitou por conta dessas avaliações pouco generosas. A opinião pública não o limitaria. O Messias deixou claro que há bons pastores e maus pastores, que podem ser justamente qualificados de mercenários (Jo 10, 11-18). Ainda assim parece que Cristo chegou a colocá-los entre os pequeninos, entre aqueles que, como os publicanos e prostitutas, aceitam a Boa-Nova4. Ele mesmo, o Bom Pastor, sem culpa alguma, seria colocado entre ladrões; não como objeto de um estigma social que acompanha uma profissão; mas realmente, no Calvário, como vítima de expiação.

Jesus, bom Pastor, nasce entre pastores

Jesus, de fato, identificou-se com os pastores. Afinal, entre muitos a fama d’Ele também não ia bem: comilão, beberrão, blasfemo, transgressor da Lei. Emissário de Belzebu inclusive! (Mt 12, 24). Ou seja, o Filho de Deus, em sua pregação, toma uma categoria de trabalhadores específica muito mal afamada e recolhe imagens desse ofício para falar de si e de sua missão. O Verbo fez-se Pastor. Ele toma como referência de sua autodesignação gente pobre, mas que trabalha arduamente; gente que deve, de certo modo, viver um pouco errante longe de casa; que deve se arriscar contra animais selvagens para conservar o seu rebanho. E nos sobram os exemplos: nos sinóticos Jesus veio para as ovelhas perdidas de Israel (Mt 15, 24; 10, 6, Lc 19, 10), pois elas não têm pastor (Mt 9, 36; Mc 6, 34). Os discípulos são como um pequeno rebanho (Lc 12, 32), perseguido por lobos de fora e de dentro, disfarçados de ovelhas (Mt 10, 16; 7, 15). No fim dos tempos, Ele separará os bons dos maus como o pastor faz com as ovelhas e os cabritos (Mt 25, 31s). Em João estas imagens ficam mais detalhadas: Ele é a porta de entrada e de saída das ovelhas (10, 7.9s); Ele e as suas ovelhas se conhecem (10, 3s. 14s.), até pela voz. Convivência gera intimidade, familiaridade. Ele é o pastor que dá a vida por suas ovelhas (10, 15.17s).

A exaltação da profissão

Estamos acostumados a ouvir que Jesus assumiu a nossa humanidade. Agora vemos que ele assumiu a nossa “profissionalidade”; elevou o homem a uma nova dignidade – a de filho adotivo de Deus –, mas soergueu igualmente também nesse movimento os seus ofícios justos, os seus trabalhos; nesse caso, o pastoreio. E nada melhor do que falar de Si a partir do trabalho do pastor para isso.

Ele já nasce – perdoem-me a provocação – com “consciência de classe” (cruz-credo!): O Pastor supremo nasce entre pastores, entre os seus “pares”, dos quais já assume a pobreza e a humilhação. O trabalho começa a ganhar a sua camada de “sacramentalidade”, o seu caráter também alegórico, pois será sinal e remeterá a uma realidade oculta de salvação, que o tempo desvelará um pouquinho de cada vez, vagarosamente, até que chegue aquela “hora”. Assim, Jesus redime por dentro, logo no início de sua obra salvadora, uma profissão; é claro que tal ato é apenas uma ínfima parcela do trabalho do Redentor, a de redimir o trabalho. Trabalho não é castigo. O trabalho não é (pura) negatividade; é positivo. Com ele o homem coopera com a ação criadora de Deus. Mas, com Jesus, está aberta a porta para que qualquer trabalho reto ou virtuoso lhe sirva como meio de autocomunicação e, portanto, como veículo e ambiente, entre os homens, de sua obra salvadora.

A humildade de toda profissão

Jesus toma uma profissão fundamental para o seu povo, mas espezinhada, para mostrar a Sua identidade. Ele leva adiante o seu rebaixamento, a sua humilhação (Fl 2, 6-11) tomando sobre si o trabalho dos rebaixados; ele ergue a ovelha nos ombros; ele ergue igualmente os pastores e o pastoreio a um valor sobrenatural, pois neles Deus encontrou “encarnação”, analogicamente, de sua ação. Cristo escolhe os pastores como protótipo daqueles humildes a quem foram revelados os mistérios de Deus, em oposição aos sábios e entendidos (Mt 11, 25). Mamãe Maria diante de Isabel já tinha cantado a elevação dos humildes e a derrubada dos orgulhosos (Lc 1, 46-55). Contudo, não nos esqueçamos de que no início do Novo Testamento estavam também os Magos.

O venerável Fulton Sheen, mostra-nos claramente que o relato da Epifania não opõe ignorantes e sábios, mas dois tipos de gente que sabe ser humilde, independente do status social e do ofício:


Só dois tipos de pessoas encontraram o bebê: os pastores e os sábios; os simples e os instruídos; aqueles que sabiam que nada sabiam e aqueles que sabiam que não sabiam tudo. Ele nunca é visto pelo homem de um livro só; tampouco pelo homem que pensa que sabe. Nem mesmo Deus pode dizer algo ao orgulhoso! Só o humilde pode encontrar Deus!5

No fim, não há profissões humildes. Em termos de virtude cristã, deve haver humildade no âmago de qualquer exercício profissional e haverá, desde que se cumpra a condição de manifestar-se ali a presença de Cristo, no trabalho, nos que trabalham.

Pastores, testemunhas legítimas

Como já acenei, a maior parte dos pastores estava dormindo. Alguns, cumprindo o seu turno, estavam em vigília. Ou seja, o pastoreio ensejava uma companhia de amizade, de apoio mútuo, daqueles que sabiam que estavam fora por um único motivo: cuidar do rebanho. Contudo, os pastores, curiosamente, aparecem como primeiras testemunhas do nascimento de Jesus. De algum modo o anjo diz o mesmo que Paulo depois: “Desperta, ó tu que dormes” (Ef 5, 14). Depois do susto angelical e do temor inicial, eles correm atrás do menino com o sinal. Eles o encontraram. Lá estava ele, envolto em faixas. Um currículo como o dos pastores não os habilitava a serem testemunhas credíveis e confiáveis num tribunal6. Mas Deus os quis mesmo assim, como quis Madalena olhando o túmulo vazio como primeira testemunha da ressurreição (Lc 24, 22-25). A palavra deles vale, pois eles encontraram a Palavra da verdade.

A vigília dos pastores. Mas Deus também nos chama no trabalho

Um último aspecto. Jesus nasce enquanto os pastores estão em vigília, como já vimos. De algum modo, eles estão em descanso durante um período de trabalho fora de casa e fora da cidade. Estão somente na pausa noturna do seu ofício. Eles são informados – assustados – pelos anjos durante a noite; são arrancados de suas ovelhas para ver o Pastor dos Pastores. E Bento XVI nos explica a razão disso remontando à eleição de Davi, o rei-pastor:


Deus rejeita o Rei Saul; e Samuel foi enviado a Belém para ter com Jessé, para ungir rei um dos seus filhos que o Senhor havia de lhe indicar. Dos filhos que se apresentam diante dele, nenhum é o escolhido. Falta ainda o mais novo, mas está apascentando o rebanho, explica Jessé ao profeta. Samuel manda-o chamar da pastagem e, por indicação de Deus, unge o jovem Davi “na presença dos seus irmãos” (cf. 1 Sm 16, 1-13). Davi vem do meio das ovelhas que apascenta, e é constituído pastor de Israel (cf. 2 Sm 5, 2). O profeta Miqueias fixa o olhar num futuro distante e anuncia que de Belém sairia Aquele que havia de apascentar um dia o povo de Israel (cf. Mq 5, 1-3; Mt 2, 6); Jesus nasceu entre pastores; Ele é o grande Pastor dos homens (cf. 1 Pd 2, 25; Hb 13, 20)7.

Deus tira os pastores do descanso para fazê-los correr ao encontro de Jesus. Não vão atrás da ovelha perdida, mas do pastor de Israel há tanto tempo esperado. Isso eles não podiam perder. Assim, ao chegarem na gruta, eles, os pastores, convertem-se em ovelhas. Naquela vigília bendita ouviram anjos para terminar ouvindo o chorinho de uma criança. Naquele momento, naqueles balbucios, o mundo começou a reconhecer a voz do Pastor.

Referências

  1. Cf. https://www.antofagica.com.br/2022/12/20/charles-dickens-natal/[]
  2. Cf. Armando Rolla, “Pastôres e magos junto ao berço de Jesus” in Gino Bressan (et al.), Cem problemas bíblicos (Paulinas, São Paulo 1969), 281.[]
  3. Cf. Fernando Armellini, Celebrando a Palavra. Ano A – São Mateus (Ave Maria: São Paulo 20013), 147.[]
  4. Cf. Bruce Malina – Richard L. Rohrbaugh, Evangelhos sinóticos. Comentário à luz das ciências sociais (Paulus: São Paulo 2017), 262; Colomban Lesquivit – Xavier Léon-Dufour in Xavier Léon-Dufour (org.), Vocabulário de Teologia Bíblica (Vozes, Petrópolis 19925), 725.[]
  5. Fulton Sheen, Vida de Cristo, vol. I (Petra: Rio de Janeiro 2018), 34.[]
  6. Cf. Fernando Armellini, Celebrando a Palavra, op. cit., 147.[]
  7. Joseph Ratzinger, Jesus de Nazaré. Da infância à ressurreição (Minha Biblioteca Católica: Dois Irmãos 2021), 61.[]

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