Veja esse modelo de redação que aborda os aspectos católicos da África que foram um tesouro cultural trazido também para o Brasil.
Veja esse modelo de redação que aborda os aspectos católicos da África que foram um tesouro cultural trazido também para o Brasil.
No dia 03 de novembro de 2024, 3,1 milhões de estudantes realizaram a prova de redação do Exame Nacional do Ensino Médio (ENEM), que teve o seguinte tema: “Desafios para a valorização da herança africana no Brasil”. Como de costume, o tema virou assunto entre os usuários da internet: alguns consideraram muito pertinente; e, outros acharam o tema muito alinhado ao “politicamente correto”. Eu me coloco no primeiro grupo; considerei bastante satisfatório, acessível e de fácil compreensão, assim como considerei os seis textos motivadores adequados.
Aqueles que não gostaram do tema talvez tenham uma ideia de África estereotipada e primitivista ou desconheçam as possibilidades de tratar a temática fora do escopo das religiões afro-brasileiras. Como apresentei em uma coluna passada, o catolicismo é uma religião com profundas raízes africanas. Além disso, hoje, o continente africano tem predominância de duas grandes religiões abraâmicas: o cristianismo e o islamismo.
No intuito de provocar um exercício no leitor, esta coluna apresentará um texto simulando uma redação para o ENEM com valorização das raízes africanas da fé católica e sua presença na África contemporânea. Em seguida, apresentarei outras possibilidades de subtemas para desenvolver a redação do ENEM.
Vamos lá:
O romance “Meio Sol Amarelo”, da escritora nigeriana Chimamanda Ngozi Adichie é ambientado durante a Guerra de Biafra (1967–1970), que ocorreu na Nigéria. Apesar da história retratar as complexidades do conflito, é impossível deixar de notar a realidade religiosa da Nigéria, que foi graficamente apresentada na obra através das vidas de três personagens principais: Ugwu, Olanna e Richard. Ugwu é um jovem servo de origem Igbo que cresce em um ambiente onde o catolicismo convive com crenças tradicionais. Sua perspectiva religiosa é moldada pelo sincretismo típico das comunidades nigerianas rurais. Olanna é uma jovem de origem Igbo, criada em um lar católico abastado. Richard é um professor universitário secular. Dito isso, a autora rompe com estereótipos oriundos de uma história única e surpreende com a apresentação de uma África católica.
De início, cabe destacar que o catolicismo está presente na África desde o século I, quando as primeiras comunidades no Egito e na Etiópia foram fundadas pelos apóstolos São Marcos e São Mateus. A fé católica virou religião oficial na Etiópia no século IV, muito antes do período de expansão marítima europeia, que ocorreu durante o século XVI. A Etiópia tem sob sua guarda a Bíblia mais antiga do mundo e foi neste país que o Reino de Axum, um poderoso reino cristão, se estabeleceu. Há diversas passagens do Antigo Testamento que atestam um relacionamento único entre Deus e o povo etíope. Se excluirmos a África da Bíblia e da memória católica, certamente perderemos muitas cenas cruciais da história da salvação.
De acordo com os pesquisadores Thomas Oden e David Eastamn, é muito provável que houvesse católicos na África muito antes do que na Europa. Tomar a Europa como proprietária da história do catolicismo é apagar mais de 2000 anos de contribuição africana a maior religião do mundo. Ignorar o legado deixado por grandes Santos, mártires, teólogos e evangelistas do continente africano, tais como Santo Agostinho, Santo Antão, Tertuliano e Papa São Vitor I, pode ser considerado, como ensina a filósofa Sueli Carneiro, mais um exemplo de epistemicídio, que deve ser combatido por todos. Antes de ser europeu, o catolicismo já era africano. A propagação do arcabouço teórico católico desenvolvido na África é ponto fulcral para a valorização da cultura africana no nosso país, uma vez que 55% dos católicos brasileiros são negros; fato que tem sido desafiador na contemporaneidade.
Conhecendo a história do catolicismo desde seu início, conseguimos entender o porquê de a fé católica ter forte presença na África (e também no Brasil) até os dias de hoje. A população cristã da Nigéria, por exemplo, é composta atualmente por 25% de católicos. Os Igbos, etnia compartilhada por dois dos personagens centrais do romance de Chimamanda, são predominantemente católicos, correspondendo a 98% do total. As práticas católicas entre os Igbos na Nigéria ou na diáspora seguem as normas tradicionais da Igreja Católica, incluindo a celebração da missa, batismo, crisma e outros sacramentos na língua igbo.
Portanto, fica evidente o papel do catolicismo na tarefa de promoção do valor social da herança africana, que é indispensável para a emancipação histórico-cultural dos brasileiros e fortalecimento da identidade nacional enquanto povo. Tendo isso em vista, cabe ao Estado, em parceria com a sociedade civil, estabelecer políticas públicas que tornem mais democrático o acesso a obras literárias exaltantes da produção intelectual africana, contemplando o catolicismo e outras religiões. Com isso, os estudantes do Brasil poderão conhecer, valorizar e se orgulhar de suas raízes africanas.
Essa é a forma que eu escolheria para fazer redação do Enem com o tema de 2024. No modo católico, também faria a redação contemplando os seguintes subtemas: a) legado das irmandades negras católicas no Brasil; b) o Congado como manifestação cultural católica; e, c) o catolicismo praticado por escravos africanos. Sobre a letra c, vale um rápido comentário: pesquisas recentes mostram que um contingente de escravos africanos trazidos ao Brasil pelo tráfico transatlântico já era católico antes de chegar em terras brasileiras. O historiador James Sweet aponta que mais de 90% dos que foram trazidos para o Brasil até por volta de 1680 eram originários dessa região. Ou seja, uma parcela dos povos centro-africanos trouxe ao Brasil o que já conhecia e praticava do seu catolicismo conguês. Mas isso é assunto para outro texto.
Pedagoga, Autora do livro “Mulheres que o feminismo não vê - Classe e Raça”. Realizou pós-doutoramento em Sociologia pela UFRJ.
No dia 03 de novembro de 2024, 3,1 milhões de estudantes realizaram a prova de redação do Exame Nacional do Ensino Médio (ENEM), que teve o seguinte tema: “Desafios para a valorização da herança africana no Brasil”. Como de costume, o tema virou assunto entre os usuários da internet: alguns consideraram muito pertinente; e, outros acharam o tema muito alinhado ao “politicamente correto”. Eu me coloco no primeiro grupo; considerei bastante satisfatório, acessível e de fácil compreensão, assim como considerei os seis textos motivadores adequados.
Aqueles que não gostaram do tema talvez tenham uma ideia de África estereotipada e primitivista ou desconheçam as possibilidades de tratar a temática fora do escopo das religiões afro-brasileiras. Como apresentei em uma coluna passada, o catolicismo é uma religião com profundas raízes africanas. Além disso, hoje, o continente africano tem predominância de duas grandes religiões abraâmicas: o cristianismo e o islamismo.
No intuito de provocar um exercício no leitor, esta coluna apresentará um texto simulando uma redação para o ENEM com valorização das raízes africanas da fé católica e sua presença na África contemporânea. Em seguida, apresentarei outras possibilidades de subtemas para desenvolver a redação do ENEM.
Vamos lá:
O romance “Meio Sol Amarelo”, da escritora nigeriana Chimamanda Ngozi Adichie é ambientado durante a Guerra de Biafra (1967–1970), que ocorreu na Nigéria. Apesar da história retratar as complexidades do conflito, é impossível deixar de notar a realidade religiosa da Nigéria, que foi graficamente apresentada na obra através das vidas de três personagens principais: Ugwu, Olanna e Richard. Ugwu é um jovem servo de origem Igbo que cresce em um ambiente onde o catolicismo convive com crenças tradicionais. Sua perspectiva religiosa é moldada pelo sincretismo típico das comunidades nigerianas rurais. Olanna é uma jovem de origem Igbo, criada em um lar católico abastado. Richard é um professor universitário secular. Dito isso, a autora rompe com estereótipos oriundos de uma história única e surpreende com a apresentação de uma África católica.
De início, cabe destacar que o catolicismo está presente na África desde o século I, quando as primeiras comunidades no Egito e na Etiópia foram fundadas pelos apóstolos São Marcos e São Mateus. A fé católica virou religião oficial na Etiópia no século IV, muito antes do período de expansão marítima europeia, que ocorreu durante o século XVI. A Etiópia tem sob sua guarda a Bíblia mais antiga do mundo e foi neste país que o Reino de Axum, um poderoso reino cristão, se estabeleceu. Há diversas passagens do Antigo Testamento que atestam um relacionamento único entre Deus e o povo etíope. Se excluirmos a África da Bíblia e da memória católica, certamente perderemos muitas cenas cruciais da história da salvação.
De acordo com os pesquisadores Thomas Oden e David Eastamn, é muito provável que houvesse católicos na África muito antes do que na Europa. Tomar a Europa como proprietária da história do catolicismo é apagar mais de 2000 anos de contribuição africana a maior religião do mundo. Ignorar o legado deixado por grandes Santos, mártires, teólogos e evangelistas do continente africano, tais como Santo Agostinho, Santo Antão, Tertuliano e Papa São Vitor I, pode ser considerado, como ensina a filósofa Sueli Carneiro, mais um exemplo de epistemicídio, que deve ser combatido por todos. Antes de ser europeu, o catolicismo já era africano. A propagação do arcabouço teórico católico desenvolvido na África é ponto fulcral para a valorização da cultura africana no nosso país, uma vez que 55% dos católicos brasileiros são negros; fato que tem sido desafiador na contemporaneidade.
Conhecendo a história do catolicismo desde seu início, conseguimos entender o porquê de a fé católica ter forte presença na África (e também no Brasil) até os dias de hoje. A população cristã da Nigéria, por exemplo, é composta atualmente por 25% de católicos. Os Igbos, etnia compartilhada por dois dos personagens centrais do romance de Chimamanda, são predominantemente católicos, correspondendo a 98% do total. As práticas católicas entre os Igbos na Nigéria ou na diáspora seguem as normas tradicionais da Igreja Católica, incluindo a celebração da missa, batismo, crisma e outros sacramentos na língua igbo.
Portanto, fica evidente o papel do catolicismo na tarefa de promoção do valor social da herança africana, que é indispensável para a emancipação histórico-cultural dos brasileiros e fortalecimento da identidade nacional enquanto povo. Tendo isso em vista, cabe ao Estado, em parceria com a sociedade civil, estabelecer políticas públicas que tornem mais democrático o acesso a obras literárias exaltantes da produção intelectual africana, contemplando o catolicismo e outras religiões. Com isso, os estudantes do Brasil poderão conhecer, valorizar e se orgulhar de suas raízes africanas.
Essa é a forma que eu escolheria para fazer redação do Enem com o tema de 2024. No modo católico, também faria a redação contemplando os seguintes subtemas: a) legado das irmandades negras católicas no Brasil; b) o Congado como manifestação cultural católica; e, c) o catolicismo praticado por escravos africanos. Sobre a letra c, vale um rápido comentário: pesquisas recentes mostram que um contingente de escravos africanos trazidos ao Brasil pelo tráfico transatlântico já era católico antes de chegar em terras brasileiras. O historiador James Sweet aponta que mais de 90% dos que foram trazidos para o Brasil até por volta de 1680 eram originários dessa região. Ou seja, uma parcela dos povos centro-africanos trouxe ao Brasil o que já conhecia e praticava do seu catolicismo conguês. Mas isso é assunto para outro texto.