Formação

A influência de São Filipe Néri na história da música

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A influência de São Filipe Néri na história da música

Data da Publicação: 17/03/2023
Tempo de leitura:
Autor: Redação MBC
Data da Publicação: 17/03/2023
Tempo de leitura:
Autor: Redação MBC

O que um santo italiano pode ter a ver com a história da música? Trata-se de um grande compositor, cantor, instrumentista? Este santo destacou-se por uma alta habilidade musical?

A verdade é que São Filipe Néri não foi um grande músico e tampouco compôs obras importantes para a história da música. Porém, sua principal fundação – os oratórios – tornaram-se um terreno propício e fértil para o nascimento de um dos gêneros mais importantes da música erudita: o oratório, gênero homônimo ao lugar de onde surgiu.

Para chegar a esse ponto, houve um belo caminho trilhado por nosso santo florentino, em suas reuniões da Congregação, nas quais a música sempre assumiu um lugar de suma importância. São Filipe sempre a viu como um meio de aproximação e culto a Deus – uma forma de elevar nossos corações a Ele.

Neste breve artigo, você conhecerá um pouco desta história que ultrapassou fronteiras e séculos – uma herança que permanece até hoje.

Quem foi São Filipe Néri?


A Europa do século XVI passava por um período conturbado. Na Alemanha, havia surgido a cisão da revolta protestante, que começava a desviar cada vez mais fiéis da Igreja Católica. Depois, despontaram também as ideias do calvinismo e a cisão do anglicanismo, dois outros braços de um momento que representava grandes desafios à fé.

Nesse contexto, Deus começou a suscitar santos que foram peças-chave na defesa da fé do período, além de se constituírem como marcos na espiritualidade, mística, fé e evangelização.

Para citar alguns, lembramos de três grandes santos da Espanha: Santo Inácio de Loyola, Santa Teresa d’Ávila e São João da Cruz. A Itália, por sua vez, também guardava um tesouro de santidade. Um menino que nascera em 1515 e que se tornaria um dos maiores santos do país e do mundo: São Filipe Néri.

A infância e o chamado divino


Desde pequeno, Filipe Néri já demonstrava uma santidade excepcional. O padre Antonio Gallonio, em seu livro “São Filipe Néri: o santo da alegria”, descreve Filipe como um menino de temperamento muito dócil e uma amabilidade excepcional, a ponto de ficar conhecido como “o Bom Filipe”. Isso se manteve em sua juventude e idade adulta, demonstrando sempre uma alegria e bom humor únicos, aliados a um genuíno espírito de caridade.

Já na juventude, Filipe morou um tempo com seu tio, de quem poderia herdar uma grande fortuna e tornar-se um dos homens mais ricos da Itália do período. Mesmo assim, nestes anos em que esteve com o tio, o chamado de Deus foi mais forte. Filipe decidiu abandonar tudo e ir para Roma, para ali viver sua vocação.

O Apóstolo de Roma


Em Roma, começou vivendo como um eremita, em situação de muita humildade e como tutor de duas crianças italianas. Ali, com o passar do tempo, seu apostolado foi crescendo cada vez mais.

Por orientação de seu diretor espiritual, foi ordenado sacerdote. A partir daí, sua influência em Roma tornava-se cada vez maior: Filipe Néri tornava-se um modelo de padre para um clero romano bastante secularizado e perdido em bens materiais e vaidades. Sua penitência e austeridade mostraram-se como um retorno à verdadeira espiritualidade sacerdotal.

Além disso, Filipe Néri também se destacou em reuniões que fazia para rezar e falar das coisas de Deus. Começando com um grupo pequeno de pessoas, Filipe reunia-se com eles para falar de algum tema específico, rezar e cantar. Essas reuniões – conhecidas como oratórios – começaram a atrair inúmeras pessoas em Roma, até mesmo altos membros do clero e futuros papas.

Assim, São Filipe ganhava cada vez mais espaço na cidade eterna, e Deus lhe confiava uma abundância de graças espirituais.

Um coração gigante


São Filipe foi agraciado com inúmeras consolações espirituais extraordinárias, incluindo levitações durante sua oração. Uma das maiores aconteceu um dia em que, estando em oração, Filipe pedia a Deus a graça da presença do Espírito Santo. Foi quando o santo sentiu como se uma bola de fogo abrasasse seu coração e, a partir daquele momento, o órgão se expandiu. 

“E um dia, no ano de 1544, dirigindo-se-lhe em oração, como acostumara-se a fazer ardentissimamente, sentiu de repente em seu coração um ímpeto tal desse amoroso e afetuosíssimo Espírito que o coração mesmo dentro do peito começou a saltitar de forma que se podia vê-lo de fora; parecia, com efeito, querer elevar em direção ao céu o corpo naturalmente pesado.

[…] Cresceu tanto em Filipe esse ardor divino, esse fogo, que, para nobilíssimos médicos e outras pessoas com quem o beato conversava familiarmente, foi um verdadeiro milagre que ele, tomado de um tão grande e impetuoso fervor de amor divino, tenha vivido cinquenta anos contínuos.”1

Um presente para a história da música


Além do caráter extraordinário de sua vida e dos frutos de seu oratório, São Filipe acabou por criar o ambiente propício para o desenvolvimento de um importante gênero musical: as laudas e os oratórios. Nas próximas seções, você entenderá de que maneira os oratórios fundados por este santo foram fundamentais para a história da música.

O que é o Oratório de São Filipe Néri?


Quando já realizava um grande trabalho pastoral na cidade de Roma, São Filipe Néri começou a reunir cada vez mais pessoas em momentos de reflexão, ensino e música – os chamados oratórios. Os grupos tomaram verdadeira forma quando mais sacerdotes juntaram-se a Filipe para viver da mesma forma. Nascia, então, a Congregação do Oratório.

O primeiro oratório foi aprovado pelo Papa Gregório XIII no ano de 1575, que também doou a igreja na qual ele aconteceria, a Igreja de Santa Maria de Vallicella, em Roma. No ano de 1612, o papa Paulo V aprovou as constituições da congregação.

Desde então, a congregação reúne padres seculares que vivem sob uma regra comum, porém sem votos religiosos, unidos tão-somente pelo vínculo da caridade. Somado a isso, está o centro da espiritualidade oratoriana: o regresso ao estilo de vida dos primeiros discípulos, por meio da oração, da pregação e dos sacramentos.

A importância do Oratório de São Filipe na história da música


Além de ser um grande instrumento de evangelização, formação e vida comunitária, os oratórios adquiriram uma função bastante inusitada com o tempo: tornaram-se um espaço de música de alta qualidade na Roma do século XVI e subsequentes. Tanto é assim, que os oratórios de São Filipe passaram a ser frequentados por grandes compositores, dentre eles Palestrina.

Aliado aos momentos de pregação, ensino e oração, as reuniões dos oratórios sempre contavam com momentos de música sacra, que eram vistos como elemento essencial e de grande aproximação a Deus. O próprio São Filipe Néri sempre defendia esses momentos como meios de elevar as mentes e os corações ao Senhor.

Assim, a música dos oratórios não era um espetáculo, mas parte da oração. Por isso, um dos gêneros mais tocados e cantados nessas reuniões eram as laudas e, com o tempo, surgiu o gênero do oratório, sobre os quais discorreremos em seguida.

César Barônio, primeiro sacerdote da congregação, descreve as reuniões do oratório em alguns passos essenciais: primeiro, havia uma oração silenciosa e a leitura de algum livro espiritual. Em seguida, Filipe comentava o que tinha sido lido, encantando a todos com sua profundidade. Logo, seguiam-se três sermões de meia hora cada um, sobre as escrituras, temas do catolicismo ou história da Igreja e, por fim, uma lauda era cantada, seguida das orações finais.2 O momento do canto era, de fato, um dos mais sublimes da reunião.

Esses passos sofreram algumas modificações com o passar do tempo, e as reuniões vespertinas e em datas comemorativas costumavam ser mais extensas e elaboradas. Nestas, precisamente, a música alcançou ainda mais espaço, graças à presença de grandes compositores.

Além disso, a congregação também foi de grande importância para o desenvolvimento da música sacra litúrgica, especialmente por ser um ambiente de alto nível técnico, tanto em instrumento quanto em coro. Da polifonia ao canto gregoriano, as missas da Congregação do Oratório eram conhecidas por sua execução musical brilhante e perfeitamente adequada ao sacrifício da missa. 3

Oratório: a “ópera” religiosa


No século XVI, surgia na Europa um gênero muito conhecido até os dias de hoje: a ópera. Figurando entre as diversões públicas mais populares da época, contava com a execução do canto, além de figurinos e cenário – uma espécie de “peça teatral cantada”, para defini-lo em termos simples.

Tais espetáculos eram – e são, ainda hoje – grandes obras com uma riqueza sensorial que engloba o canto e a atuação. Mas, durante o período da quaresma, era comum que se suspendessem todos os espetáculos de ópera, visto que se tratava de um período de maior silêncio e recolhimento, em um país majoritariamente católico.

Neste período, começava a surgir outro tipo de expressão artística, que se assemelhava à ópera em relação à execução musical, mas com diferenças marcantes. Não havia cenário ou figurinos, e os músicos não atuavam – apenas cantavam as letras, todas de temática religiosa, interpretando seus respectivos personagens. Era o princípio de um novo gênero musical: o oratório.

Por definição, o entendemos como:

“O oratório enquanto gênero musical é uma composição feita sobre um texto religioso (histórias bíblicas, vidas de santos etc.) de dimensões relativamente grandes, sem encenação, com cantores solistas e coro acompanhados por um conjunto instrumental. É basicamente uma obra musical composta sobre um texto dramático (diálogos entre os personagens) ou narrativo-dramático (narrador e diálogos dramáticos) de cunho religioso, sem cena ou figurino. Há, portanto, certa proximidade com a ópera, em razão da narratividade intrínseca do libreto, das formas musicais em si (números instrumentais, recitativos, árias, conjuntos vocais etc.) e do fato de que cantores líricos interpretam personagens da história que é contada. Mas difere da ópera devido a seu caráter eminentemente religioso, estritamente musical e não-teatral.”4

Surgimento do gênero musical oratório


Como se vê, os oratórios de São Filipe Néri foram fundamentais para o desenvolvimento do gênero musical oratório, que acabou por levar o mesmo nome. Sendo assim, o termo “oratório” passou a designar várias coisas: a congregação fundada por São Filipe Néri; os locais onde aconteciam as reuniões de oração da congregação; as próprias reuniões de oração; o gênero musical surgido dessas reuniões, em que se cantavam motivos religiosos.

Esse surgimento se deu, também, graças à existência de outras expressões musicais que já faziam parte das reuniões do oratório desde seu início, de modo especial a lauda,5 um gênero popular em Florença e, portanto, já muito familiar a nosso santo florentino.

Com o passar do tempo e a participação de grandes compositores em cada reunião, o oratório foi tomando forma e ficando cada vez mais popular. Estima-se que por volta de 1640 as obras já eram designadas unicamente pelo nome de “oratório”, visto que antes tínhamos outras variações de nomenclatura, tais como cantata, dialogus, dialogo, drama sacro, drama tragicum ou componimento sacro.

Desde então, ao longo dos séculos, os oratórios tornaram-se cada vez mais populares, alcançando diversos países. Essa expansão também se deve à própria expansão da congregação que, ao ir a outro país, também levava o gênero musical que a acompanhava.

Também se tornou frequente a composição de oratórios tanto em latim quanto em língua vernácula, o que encontrou cada vez mais popularidade entre compositores de grande renome nos séculos subsequentes, citando-se Händel, Bach, Vivaldi, entre tantos outros, sobre os quais separamos uma seção especial ao final deste texto.

A música na contrarreforma


A percepção da música enquanto instrumento de aproximação a Deus foi um dos principais motivos que levou à sua valorização no seio da Igreja. Desde sempre, já se reconhecia sua capacidade de sensibilizar os fiéis e levá-los à oração por meio de cânticos adequados, sendo o canto gregoriano o maior exemplo de todos – um gênero criado, justamente, para a liturgia. Assim também ocorreu com o órgão de tubos, que tem seu início no seio da Igreja e da música sacra.

Vale destacar que essa valorização da música para a liturgia e para a oração – seja canto gregoriano, oratório e demais gêneros dedicados à música religiosa – ganhou ainda mais importância a partir do século XVI, com o avanço da reforma protestante e da contrarreforma.

Nossa Igreja percebeu o grande valor da música para encantar os fiéis, ajudá-los na oração e, junto a isso, catequizá-los. Além do serviço litúrgico, a música passou a ser uma protagonista na valorização dos tesouros da fé católica. Assim nos explica o padre Alfredo Sáenz:

“A arte se converteu em uma forma de expor a doutrina, ao ponto do próprio artista se convencer de que seu trabalho criador era uma parte da apologética católica. Enquanto na época do Renascimento o tema da obra, ainda que fosse religioso, não passava de um pretexto para destacar formas e cores, desde o final do século XVI e durante o século XVII o mais importante se torna o conteúdo doutrinal que o artista, inspirado por algum conselheiro teológico, tratava de expressar. Dessa maneira foi como depois do Concílio [de Trento] surgiu uma arte combativa, cujos melhores expoentes se empenharam em ressaltar tudo o que o protestantismo havia posto em questão”.6

Assim, entende-se o valor do oratório também inserido neste contexto em que a música era uma das protagonistas da fé, da evangelização e da apologética.

Frutos musicais do Oratório


O oratório de São Filipe Néri foi o propulsor para grandes nomes da música. Como vimos, suas reuniões eram frequentadas por grandes compositores, incluindo Giovanni Pierluigi da Palestrina (1525-1594), grande compositor da renascença e, também, um filho espiritual de São Filipe.

Sobre ele, Otto Maria Carpeaux afirma: “Palestrina não é um grande compositor que escreve música sacra; é um liturgista que sabe fazer grande música.[…] Seu objetivo foi tornar o texto sacro, na boca dos cantores, compreensível, sem renunciar à polifonia.”7

Para conhecer um pouco mais sobre seu brilhante trabalho, deixamos aqui a sugestão de uma de suas obras mais famosas, “Missa Papae Marcelli”.

Outro fruto direto do Oratório é Giacomo Carissimi, compositor e professor do início do barroco. Este italiano foi o responsável por compor muitos dos primeiros oratórios dos quais se tem notícia, ainda quando o gênero não estava bem estabelecido. Pode-se conhecer seus maiores oratórios por meio deste vídeo.

Além disso, com o passar dos séculos, o gênero foi se desenvolvendo a ponto de ganhar diversas obras de compositores de grande importância musical e histórica.

Entre eles, está Antonio Lucio Vivaldi, compositor italiano do barroco tardio muito conhecia por sua obra-prima, As Quatro Estações. O que muitos não sabem é que Vivaldi também compôs vários oratórios, dentre eles Juditha Triumphans, sobre a história da personagem bíblica Judite, que consegue derrotar o terrível Holofernes.

Além disso, com o passar dos séculos, o gênero foi se desenvolvendo a ponto de ganhar diversas obras de compositores de grande importância musical e histórica.

Entre eles, está Antonio Lucio Vivaldi, compositor italiano do barroco tardio muito conhecia por sua obra-prima, As Quatro Estações. O que muitos não sabem é que Vivaldi também compôs vários oratórios, dentre eles Juditha Triumphans, sobre a história da personagem bíblica Judite, que consegue derrotar o terrível Holofernes.

Mas a presença dos oratórios não ficaria somente na Itália. Prova disso é Georg Friedrich Händel, grande compositor britânico que viveu na transição do século XVII para o XVIII. Além de grandes óperas, os oratórios de Händel figuram entre as mais belas obras da música erudita. Uma das mais conhecidas é Messiah.

E assim, pouco a pouco, o gênero musical do oratório, herdado graças a São Filipe, acaba por conquistar até mesmo os protestantes. Johann Sebastian Bach é um dos maiores expoentes nesse sentido. Este grande compositor alemão possui, em sua vastíssima obra, alguns oratórios muito famosos, como é o caso do belíssimo A Paixão segundo São Mateus.

Referências

  1. Trecho retirado do livro “São Filipe Néri: o santo da alegria”, de Padre Antonio Gallonio.[]
  2. Conforme cita Smither, em sua obra “A History of the Oratorio, Vol 1, The Oratorio in the Baroque Era – Italy, Vienna and Paris”, pg. 89-90.[]
  3. Conforme tese defendida por Rosemarie Darby, “The liturgical music of the Chiesa Nuova, Rome  (1575-1644)”, disponível para leitura integral em: https://www.escholar.manchester.ac.uk/uk-ac-man-scw:315283[]
  4. Retirado de https://bndigital.bn.gov.br/dossies/lorenzo-perosi-e-o-brasil/de-carissimi-a-perosi-o-oratorio-italiano/#_ednref4.[]
  5. Poemas religiosos escritos em língua vernácula e musicados em estilo simples e claro para três ou quatro vozes.[]
  6. Padre Alfredo Sáenz. História da Santa Igreja: da querela das investiduras aos esplendores tridentinos. Rio de Janeiro: Ed. CDB, 2020. p. 638.[]
  7. Otto Maria Carpeaux. Uma nova história da música. A Contra-Reforma: Palestrina.[]
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O que um santo italiano pode ter a ver com a história da música? Trata-se de um grande compositor, cantor, instrumentista? Este santo destacou-se por uma alta habilidade musical?

A verdade é que São Filipe Néri não foi um grande músico e tampouco compôs obras importantes para a história da música. Porém, sua principal fundação – os oratórios – tornaram-se um terreno propício e fértil para o nascimento de um dos gêneros mais importantes da música erudita: o oratório, gênero homônimo ao lugar de onde surgiu.

Para chegar a esse ponto, houve um belo caminho trilhado por nosso santo florentino, em suas reuniões da Congregação, nas quais a música sempre assumiu um lugar de suma importância. São Filipe sempre a viu como um meio de aproximação e culto a Deus – uma forma de elevar nossos corações a Ele.

Neste breve artigo, você conhecerá um pouco desta história que ultrapassou fronteiras e séculos – uma herança que permanece até hoje.

Quem foi São Filipe Néri?


A Europa do século XVI passava por um período conturbado. Na Alemanha, havia surgido a cisão da revolta protestante, que começava a desviar cada vez mais fiéis da Igreja Católica. Depois, despontaram também as ideias do calvinismo e a cisão do anglicanismo, dois outros braços de um momento que representava grandes desafios à fé.

Nesse contexto, Deus começou a suscitar santos que foram peças-chave na defesa da fé do período, além de se constituírem como marcos na espiritualidade, mística, fé e evangelização.

Para citar alguns, lembramos de três grandes santos da Espanha: Santo Inácio de Loyola, Santa Teresa d’Ávila e São João da Cruz. A Itália, por sua vez, também guardava um tesouro de santidade. Um menino que nascera em 1515 e que se tornaria um dos maiores santos do país e do mundo: São Filipe Néri.

A infância e o chamado divino


Desde pequeno, Filipe Néri já demonstrava uma santidade excepcional. O padre Antonio Gallonio, em seu livro “São Filipe Néri: o santo da alegria”, descreve Filipe como um menino de temperamento muito dócil e uma amabilidade excepcional, a ponto de ficar conhecido como “o Bom Filipe”. Isso se manteve em sua juventude e idade adulta, demonstrando sempre uma alegria e bom humor únicos, aliados a um genuíno espírito de caridade.

Já na juventude, Filipe morou um tempo com seu tio, de quem poderia herdar uma grande fortuna e tornar-se um dos homens mais ricos da Itália do período. Mesmo assim, nestes anos em que esteve com o tio, o chamado de Deus foi mais forte. Filipe decidiu abandonar tudo e ir para Roma, para ali viver sua vocação.

O Apóstolo de Roma


Em Roma, começou vivendo como um eremita, em situação de muita humildade e como tutor de duas crianças italianas. Ali, com o passar do tempo, seu apostolado foi crescendo cada vez mais.

Por orientação de seu diretor espiritual, foi ordenado sacerdote. A partir daí, sua influência em Roma tornava-se cada vez maior: Filipe Néri tornava-se um modelo de padre para um clero romano bastante secularizado e perdido em bens materiais e vaidades. Sua penitência e austeridade mostraram-se como um retorno à verdadeira espiritualidade sacerdotal.

Além disso, Filipe Néri também se destacou em reuniões que fazia para rezar e falar das coisas de Deus. Começando com um grupo pequeno de pessoas, Filipe reunia-se com eles para falar de algum tema específico, rezar e cantar. Essas reuniões – conhecidas como oratórios – começaram a atrair inúmeras pessoas em Roma, até mesmo altos membros do clero e futuros papas.

Assim, São Filipe ganhava cada vez mais espaço na cidade eterna, e Deus lhe confiava uma abundância de graças espirituais.

Um coração gigante


São Filipe foi agraciado com inúmeras consolações espirituais extraordinárias, incluindo levitações durante sua oração. Uma das maiores aconteceu um dia em que, estando em oração, Filipe pedia a Deus a graça da presença do Espírito Santo. Foi quando o santo sentiu como se uma bola de fogo abrasasse seu coração e, a partir daquele momento, o órgão se expandiu. 

“E um dia, no ano de 1544, dirigindo-se-lhe em oração, como acostumara-se a fazer ardentissimamente, sentiu de repente em seu coração um ímpeto tal desse amoroso e afetuosíssimo Espírito que o coração mesmo dentro do peito começou a saltitar de forma que se podia vê-lo de fora; parecia, com efeito, querer elevar em direção ao céu o corpo naturalmente pesado.

[…] Cresceu tanto em Filipe esse ardor divino, esse fogo, que, para nobilíssimos médicos e outras pessoas com quem o beato conversava familiarmente, foi um verdadeiro milagre que ele, tomado de um tão grande e impetuoso fervor de amor divino, tenha vivido cinquenta anos contínuos.”1

Um presente para a história da música


Além do caráter extraordinário de sua vida e dos frutos de seu oratório, São Filipe acabou por criar o ambiente propício para o desenvolvimento de um importante gênero musical: as laudas e os oratórios. Nas próximas seções, você entenderá de que maneira os oratórios fundados por este santo foram fundamentais para a história da música.

O que é o Oratório de São Filipe Néri?


Quando já realizava um grande trabalho pastoral na cidade de Roma, São Filipe Néri começou a reunir cada vez mais pessoas em momentos de reflexão, ensino e música – os chamados oratórios. Os grupos tomaram verdadeira forma quando mais sacerdotes juntaram-se a Filipe para viver da mesma forma. Nascia, então, a Congregação do Oratório.

O primeiro oratório foi aprovado pelo Papa Gregório XIII no ano de 1575, que também doou a igreja na qual ele aconteceria, a Igreja de Santa Maria de Vallicella, em Roma. No ano de 1612, o papa Paulo V aprovou as constituições da congregação.

Desde então, a congregação reúne padres seculares que vivem sob uma regra comum, porém sem votos religiosos, unidos tão-somente pelo vínculo da caridade. Somado a isso, está o centro da espiritualidade oratoriana: o regresso ao estilo de vida dos primeiros discípulos, por meio da oração, da pregação e dos sacramentos.

A importância do Oratório de São Filipe na história da música


Além de ser um grande instrumento de evangelização, formação e vida comunitária, os oratórios adquiriram uma função bastante inusitada com o tempo: tornaram-se um espaço de música de alta qualidade na Roma do século XVI e subsequentes. Tanto é assim, que os oratórios de São Filipe passaram a ser frequentados por grandes compositores, dentre eles Palestrina.

Aliado aos momentos de pregação, ensino e oração, as reuniões dos oratórios sempre contavam com momentos de música sacra, que eram vistos como elemento essencial e de grande aproximação a Deus. O próprio São Filipe Néri sempre defendia esses momentos como meios de elevar as mentes e os corações ao Senhor.

Assim, a música dos oratórios não era um espetáculo, mas parte da oração. Por isso, um dos gêneros mais tocados e cantados nessas reuniões eram as laudas e, com o tempo, surgiu o gênero do oratório, sobre os quais discorreremos em seguida.

César Barônio, primeiro sacerdote da congregação, descreve as reuniões do oratório em alguns passos essenciais: primeiro, havia uma oração silenciosa e a leitura de algum livro espiritual. Em seguida, Filipe comentava o que tinha sido lido, encantando a todos com sua profundidade. Logo, seguiam-se três sermões de meia hora cada um, sobre as escrituras, temas do catolicismo ou história da Igreja e, por fim, uma lauda era cantada, seguida das orações finais.2 O momento do canto era, de fato, um dos mais sublimes da reunião.

Esses passos sofreram algumas modificações com o passar do tempo, e as reuniões vespertinas e em datas comemorativas costumavam ser mais extensas e elaboradas. Nestas, precisamente, a música alcançou ainda mais espaço, graças à presença de grandes compositores.

Além disso, a congregação também foi de grande importância para o desenvolvimento da música sacra litúrgica, especialmente por ser um ambiente de alto nível técnico, tanto em instrumento quanto em coro. Da polifonia ao canto gregoriano, as missas da Congregação do Oratório eram conhecidas por sua execução musical brilhante e perfeitamente adequada ao sacrifício da missa. 3

Oratório: a “ópera” religiosa


No século XVI, surgia na Europa um gênero muito conhecido até os dias de hoje: a ópera. Figurando entre as diversões públicas mais populares da época, contava com a execução do canto, além de figurinos e cenário – uma espécie de “peça teatral cantada”, para defini-lo em termos simples.

Tais espetáculos eram – e são, ainda hoje – grandes obras com uma riqueza sensorial que engloba o canto e a atuação. Mas, durante o período da quaresma, era comum que se suspendessem todos os espetáculos de ópera, visto que se tratava de um período de maior silêncio e recolhimento, em um país majoritariamente católico.

Neste período, começava a surgir outro tipo de expressão artística, que se assemelhava à ópera em relação à execução musical, mas com diferenças marcantes. Não havia cenário ou figurinos, e os músicos não atuavam – apenas cantavam as letras, todas de temática religiosa, interpretando seus respectivos personagens. Era o princípio de um novo gênero musical: o oratório.

Por definição, o entendemos como:

“O oratório enquanto gênero musical é uma composição feita sobre um texto religioso (histórias bíblicas, vidas de santos etc.) de dimensões relativamente grandes, sem encenação, com cantores solistas e coro acompanhados por um conjunto instrumental. É basicamente uma obra musical composta sobre um texto dramático (diálogos entre os personagens) ou narrativo-dramático (narrador e diálogos dramáticos) de cunho religioso, sem cena ou figurino. Há, portanto, certa proximidade com a ópera, em razão da narratividade intrínseca do libreto, das formas musicais em si (números instrumentais, recitativos, árias, conjuntos vocais etc.) e do fato de que cantores líricos interpretam personagens da história que é contada. Mas difere da ópera devido a seu caráter eminentemente religioso, estritamente musical e não-teatral.”4

Surgimento do gênero musical oratório


Como se vê, os oratórios de São Filipe Néri foram fundamentais para o desenvolvimento do gênero musical oratório, que acabou por levar o mesmo nome. Sendo assim, o termo “oratório” passou a designar várias coisas: a congregação fundada por São Filipe Néri; os locais onde aconteciam as reuniões de oração da congregação; as próprias reuniões de oração; o gênero musical surgido dessas reuniões, em que se cantavam motivos religiosos.

Esse surgimento se deu, também, graças à existência de outras expressões musicais que já faziam parte das reuniões do oratório desde seu início, de modo especial a lauda,5 um gênero popular em Florença e, portanto, já muito familiar a nosso santo florentino.

Com o passar do tempo e a participação de grandes compositores em cada reunião, o oratório foi tomando forma e ficando cada vez mais popular. Estima-se que por volta de 1640 as obras já eram designadas unicamente pelo nome de “oratório”, visto que antes tínhamos outras variações de nomenclatura, tais como cantata, dialogus, dialogo, drama sacro, drama tragicum ou componimento sacro.

Desde então, ao longo dos séculos, os oratórios tornaram-se cada vez mais populares, alcançando diversos países. Essa expansão também se deve à própria expansão da congregação que, ao ir a outro país, também levava o gênero musical que a acompanhava.

Também se tornou frequente a composição de oratórios tanto em latim quanto em língua vernácula, o que encontrou cada vez mais popularidade entre compositores de grande renome nos séculos subsequentes, citando-se Händel, Bach, Vivaldi, entre tantos outros, sobre os quais separamos uma seção especial ao final deste texto.

A música na contrarreforma


A percepção da música enquanto instrumento de aproximação a Deus foi um dos principais motivos que levou à sua valorização no seio da Igreja. Desde sempre, já se reconhecia sua capacidade de sensibilizar os fiéis e levá-los à oração por meio de cânticos adequados, sendo o canto gregoriano o maior exemplo de todos – um gênero criado, justamente, para a liturgia. Assim também ocorreu com o órgão de tubos, que tem seu início no seio da Igreja e da música sacra.

Vale destacar que essa valorização da música para a liturgia e para a oração – seja canto gregoriano, oratório e demais gêneros dedicados à música religiosa – ganhou ainda mais importância a partir do século XVI, com o avanço da reforma protestante e da contrarreforma.

Nossa Igreja percebeu o grande valor da música para encantar os fiéis, ajudá-los na oração e, junto a isso, catequizá-los. Além do serviço litúrgico, a música passou a ser uma protagonista na valorização dos tesouros da fé católica. Assim nos explica o padre Alfredo Sáenz:

“A arte se converteu em uma forma de expor a doutrina, ao ponto do próprio artista se convencer de que seu trabalho criador era uma parte da apologética católica. Enquanto na época do Renascimento o tema da obra, ainda que fosse religioso, não passava de um pretexto para destacar formas e cores, desde o final do século XVI e durante o século XVII o mais importante se torna o conteúdo doutrinal que o artista, inspirado por algum conselheiro teológico, tratava de expressar. Dessa maneira foi como depois do Concílio [de Trento] surgiu uma arte combativa, cujos melhores expoentes se empenharam em ressaltar tudo o que o protestantismo havia posto em questão”.6

Assim, entende-se o valor do oratório também inserido neste contexto em que a música era uma das protagonistas da fé, da evangelização e da apologética.

Frutos musicais do Oratório


O oratório de São Filipe Néri foi o propulsor para grandes nomes da música. Como vimos, suas reuniões eram frequentadas por grandes compositores, incluindo Giovanni Pierluigi da Palestrina (1525-1594), grande compositor da renascença e, também, um filho espiritual de São Filipe.

Sobre ele, Otto Maria Carpeaux afirma: “Palestrina não é um grande compositor que escreve música sacra; é um liturgista que sabe fazer grande música.[…] Seu objetivo foi tornar o texto sacro, na boca dos cantores, compreensível, sem renunciar à polifonia.”7

Para conhecer um pouco mais sobre seu brilhante trabalho, deixamos aqui a sugestão de uma de suas obras mais famosas, “Missa Papae Marcelli”.

Outro fruto direto do Oratório é Giacomo Carissimi, compositor e professor do início do barroco. Este italiano foi o responsável por compor muitos dos primeiros oratórios dos quais se tem notícia, ainda quando o gênero não estava bem estabelecido. Pode-se conhecer seus maiores oratórios por meio deste vídeo.

Além disso, com o passar dos séculos, o gênero foi se desenvolvendo a ponto de ganhar diversas obras de compositores de grande importância musical e histórica.

Entre eles, está Antonio Lucio Vivaldi, compositor italiano do barroco tardio muito conhecia por sua obra-prima, As Quatro Estações. O que muitos não sabem é que Vivaldi também compôs vários oratórios, dentre eles Juditha Triumphans, sobre a história da personagem bíblica Judite, que consegue derrotar o terrível Holofernes.

Além disso, com o passar dos séculos, o gênero foi se desenvolvendo a ponto de ganhar diversas obras de compositores de grande importância musical e histórica.

Entre eles, está Antonio Lucio Vivaldi, compositor italiano do barroco tardio muito conhecia por sua obra-prima, As Quatro Estações. O que muitos não sabem é que Vivaldi também compôs vários oratórios, dentre eles Juditha Triumphans, sobre a história da personagem bíblica Judite, que consegue derrotar o terrível Holofernes.

Mas a presença dos oratórios não ficaria somente na Itália. Prova disso é Georg Friedrich Händel, grande compositor britânico que viveu na transição do século XVII para o XVIII. Além de grandes óperas, os oratórios de Händel figuram entre as mais belas obras da música erudita. Uma das mais conhecidas é Messiah.

E assim, pouco a pouco, o gênero musical do oratório, herdado graças a São Filipe, acaba por conquistar até mesmo os protestantes. Johann Sebastian Bach é um dos maiores expoentes nesse sentido. Este grande compositor alemão possui, em sua vastíssima obra, alguns oratórios muito famosos, como é o caso do belíssimo A Paixão segundo São Mateus.

Referências

  1. Trecho retirado do livro “São Filipe Néri: o santo da alegria”, de Padre Antonio Gallonio.[]
  2. Conforme cita Smither, em sua obra “A History of the Oratorio, Vol 1, The Oratorio in the Baroque Era – Italy, Vienna and Paris”, pg. 89-90.[]
  3. Conforme tese defendida por Rosemarie Darby, “The liturgical music of the Chiesa Nuova, Rome  (1575-1644)”, disponível para leitura integral em: https://www.escholar.manchester.ac.uk/uk-ac-man-scw:315283[]
  4. Retirado de https://bndigital.bn.gov.br/dossies/lorenzo-perosi-e-o-brasil/de-carissimi-a-perosi-o-oratorio-italiano/#_ednref4.[]
  5. Poemas religiosos escritos em língua vernácula e musicados em estilo simples e claro para três ou quatro vozes.[]
  6. Padre Alfredo Sáenz. História da Santa Igreja: da querela das investiduras aos esplendores tridentinos. Rio de Janeiro: Ed. CDB, 2020. p. 638.[]
  7. Otto Maria Carpeaux. Uma nova história da música. A Contra-Reforma: Palestrina.[]

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