Colunistas, Destaque

Redação do Enem 2024 no modo católico: formas de fazer

Veja esse modelo de redação que aborda os aspectos católicos da África que foram um tesouro cultural trazido também para o Brasil.

Redação do Enem 2024 no modo católico: formas de fazer
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Redação do Enem 2024 no modo católico: formas de fazer

Veja esse modelo de redação que aborda os aspectos católicos da África que foram um tesouro cultural trazido também para o Brasil.

Data da Publicação: 29/11/2024
Tempo de leitura:
Autor: Patricia Silva
Data da Publicação: 29/11/2024
Tempo de leitura:
Autor: Patricia Silva

No dia 03 de novembro de 2024, 3,1 milhões de estudantes realizaram a prova de redação do Exame Nacional do Ensino Médio (ENEM), que teve o seguinte tema: “Desafios para a valorização da herança africana no Brasil”. Como de costume, o tema virou assunto entre os usuários da internet: alguns consideraram muito pertinente; e, outros acharam o tema muito alinhado ao “politicamente correto”. Eu me coloco no primeiro grupo; considerei bastante satisfatório, acessível e de fácil compreensão, assim como considerei os seis textos motivadores adequados.

Aqueles que não gostaram do tema talvez tenham uma ideia de África estereotipada e primitivista ou desconheçam as possibilidades de tratar a temática fora do escopo das religiões afro-brasileiras. Como apresentei em uma coluna passada, o catolicismo é uma religião com profundas raízes africanas. Além disso, hoje, o continente africano tem predominância de duas grandes religiões abraâmicas: o cristianismo e o islamismo.

No intuito de provocar um exercício no leitor, esta coluna apresentará um texto simulando uma redação para o ENEM com valorização das raízes africanas da fé católica e sua presença na África contemporânea. Em seguida, apresentarei outras possibilidades de subtemas para desenvolver a redação do ENEM.

Vamos lá:

O romance “Meio Sol Amarelo”, da escritora nigeriana Chimamanda Ngozi Adichie é ambientado durante a Guerra de Biafra (1967–1970), que ocorreu na Nigéria. Apesar da história retratar as complexidades do conflito, é impossível deixar de notar a realidade religiosa da Nigéria, que foi graficamente apresentada na obra através das vidas de três personagens principais: Ugwu, Olanna e Richard. Ugwu é um jovem servo de origem Igbo que cresce em um ambiente onde o catolicismo convive com crenças tradicionais. Sua perspectiva religiosa é moldada pelo sincretismo típico das comunidades nigerianas rurais. Olanna é uma jovem de origem Igbo, criada em um lar católico abastado. Richard é um professor universitário secular. Dito isso, a autora rompe com estereótipos oriundos de uma história única e surpreende com a apresentação de uma África católica.

De início, cabe destacar que o catolicismo está presente na África desde o século I, quando as primeiras comunidades no Egito e na Etiópia foram fundadas pelos apóstolos São Marcos e São Mateus. A fé católica virou religião oficial na Etiópia no século IV, muito antes do período de expansão marítima europeia, que ocorreu durante o século XVI. A Etiópia tem sob sua guarda a Bíblia mais antiga do mundo e foi neste país que o Reino de Axum, um poderoso reino cristão, se estabeleceu. Há diversas passagens do Antigo Testamento que atestam um relacionamento único entre Deus e o povo etíope. Se excluirmos a África da Bíblia e da memória católica, certamente perderemos muitas cenas cruciais da história da salvação.

Católicos pertencente ao grupo étnico Igbo. Redação Enem 2024.
Católicos pertencente ao grupo étnico Igbo.

De acordo com os pesquisadores Thomas Oden e David Eastamn, é muito provável que houvesse católicos na África muito antes do que na Europa. Tomar a Europa como proprietária da história do catolicismo é apagar mais de 2000 anos de contribuição africana a maior religião do mundo. Ignorar o legado deixado por grandes Santos, mártires, teólogos e evangelistas do continente africano, tais como Santo Agostinho, Santo Antão, Tertuliano e Papa São Vitor I, pode ser considerado, como ensina a filósofa Sueli Carneiro, mais um exemplo de epistemicídio, que deve ser combatido por todos. Antes de ser europeu, o catolicismo já era africano. A propagação do arcabouço teórico católico desenvolvido na África é ponto fulcral para a valorização da cultura africana no nosso país, uma vez que 55% dos católicos brasileiros são negros; fato que tem sido desafiador na contemporaneidade.

Conhecendo a história do catolicismo desde seu início, conseguimos entender o porquê de a fé católica ter forte presença na África (e também no Brasil) até os dias de hoje. A população cristã da Nigéria, por exemplo, é composta atualmente por 25% de católicos. Os Igbos, etnia compartilhada por dois dos personagens centrais do romance de Chimamanda, são predominantemente católicos, correspondendo a 98% do total. As práticas católicas entre os Igbos na Nigéria ou na diáspora seguem as normas tradicionais da Igreja Católica, incluindo a celebração da missa, batismo, crisma e outros sacramentos na língua igbo.

Portanto, fica evidente o papel do catolicismo na tarefa de promoção do valor social da herança africana, que é indispensável para a emancipação histórico-cultural dos brasileiros e fortalecimento da identidade nacional enquanto povo. Tendo isso em vista, cabe ao Estado, em parceria com a sociedade civil, estabelecer políticas públicas que tornem mais democrático o acesso a obras literárias exaltantes da produção intelectual africana, contemplando o catolicismo e outras religiões. Com isso, os estudantes do Brasil poderão conhecer, valorizar e se orgulhar de suas raízes africanas.

Essa é a forma que eu escolheria para fazer redação do Enem com o tema de 2024. No modo católico, também faria a redação contemplando os seguintes subtemas: a) legado das irmandades negras católicas no Brasil; b) o Congado como manifestação cultural católica; e, c) o catolicismo praticado por escravos africanos. Sobre a letra c, vale um rápido comentário: pesquisas recentes mostram que um contingente de escravos africanos trazidos ao Brasil pelo tráfico transatlântico já era católico antes de chegar em terras brasileiras. O historiador James Sweet aponta que mais de 90% dos que foram trazidos para o Brasil até por volta de 1680 eram originários dessa região. Ou seja, uma parcela dos povos centro-africanos trouxe ao Brasil o que já conhecia e praticava do seu catolicismo conguês. Mas isso é assunto para outro texto.

Patricia Silva

Patricia Silva

Pedagoga, Autora do livro “Mulheres que o feminismo não vê - Classe e Raça”. Realizou pós-doutoramento em Sociologia pela UFRJ.

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No dia 03 de novembro de 2024, 3,1 milhões de estudantes realizaram a prova de redação do Exame Nacional do Ensino Médio (ENEM), que teve o seguinte tema: “Desafios para a valorização da herança africana no Brasil”. Como de costume, o tema virou assunto entre os usuários da internet: alguns consideraram muito pertinente; e, outros acharam o tema muito alinhado ao “politicamente correto”. Eu me coloco no primeiro grupo; considerei bastante satisfatório, acessível e de fácil compreensão, assim como considerei os seis textos motivadores adequados.

Aqueles que não gostaram do tema talvez tenham uma ideia de África estereotipada e primitivista ou desconheçam as possibilidades de tratar a temática fora do escopo das religiões afro-brasileiras. Como apresentei em uma coluna passada, o catolicismo é uma religião com profundas raízes africanas. Além disso, hoje, o continente africano tem predominância de duas grandes religiões abraâmicas: o cristianismo e o islamismo.

No intuito de provocar um exercício no leitor, esta coluna apresentará um texto simulando uma redação para o ENEM com valorização das raízes africanas da fé católica e sua presença na África contemporânea. Em seguida, apresentarei outras possibilidades de subtemas para desenvolver a redação do ENEM.

Vamos lá:

O romance “Meio Sol Amarelo”, da escritora nigeriana Chimamanda Ngozi Adichie é ambientado durante a Guerra de Biafra (1967–1970), que ocorreu na Nigéria. Apesar da história retratar as complexidades do conflito, é impossível deixar de notar a realidade religiosa da Nigéria, que foi graficamente apresentada na obra através das vidas de três personagens principais: Ugwu, Olanna e Richard. Ugwu é um jovem servo de origem Igbo que cresce em um ambiente onde o catolicismo convive com crenças tradicionais. Sua perspectiva religiosa é moldada pelo sincretismo típico das comunidades nigerianas rurais. Olanna é uma jovem de origem Igbo, criada em um lar católico abastado. Richard é um professor universitário secular. Dito isso, a autora rompe com estereótipos oriundos de uma história única e surpreende com a apresentação de uma África católica.

De início, cabe destacar que o catolicismo está presente na África desde o século I, quando as primeiras comunidades no Egito e na Etiópia foram fundadas pelos apóstolos São Marcos e São Mateus. A fé católica virou religião oficial na Etiópia no século IV, muito antes do período de expansão marítima europeia, que ocorreu durante o século XVI. A Etiópia tem sob sua guarda a Bíblia mais antiga do mundo e foi neste país que o Reino de Axum, um poderoso reino cristão, se estabeleceu. Há diversas passagens do Antigo Testamento que atestam um relacionamento único entre Deus e o povo etíope. Se excluirmos a África da Bíblia e da memória católica, certamente perderemos muitas cenas cruciais da história da salvação.

Católicos pertencente ao grupo étnico Igbo. Redação Enem 2024.
Católicos pertencente ao grupo étnico Igbo.

De acordo com os pesquisadores Thomas Oden e David Eastamn, é muito provável que houvesse católicos na África muito antes do que na Europa. Tomar a Europa como proprietária da história do catolicismo é apagar mais de 2000 anos de contribuição africana a maior religião do mundo. Ignorar o legado deixado por grandes Santos, mártires, teólogos e evangelistas do continente africano, tais como Santo Agostinho, Santo Antão, Tertuliano e Papa São Vitor I, pode ser considerado, como ensina a filósofa Sueli Carneiro, mais um exemplo de epistemicídio, que deve ser combatido por todos. Antes de ser europeu, o catolicismo já era africano. A propagação do arcabouço teórico católico desenvolvido na África é ponto fulcral para a valorização da cultura africana no nosso país, uma vez que 55% dos católicos brasileiros são negros; fato que tem sido desafiador na contemporaneidade.

Conhecendo a história do catolicismo desde seu início, conseguimos entender o porquê de a fé católica ter forte presença na África (e também no Brasil) até os dias de hoje. A população cristã da Nigéria, por exemplo, é composta atualmente por 25% de católicos. Os Igbos, etnia compartilhada por dois dos personagens centrais do romance de Chimamanda, são predominantemente católicos, correspondendo a 98% do total. As práticas católicas entre os Igbos na Nigéria ou na diáspora seguem as normas tradicionais da Igreja Católica, incluindo a celebração da missa, batismo, crisma e outros sacramentos na língua igbo.

Portanto, fica evidente o papel do catolicismo na tarefa de promoção do valor social da herança africana, que é indispensável para a emancipação histórico-cultural dos brasileiros e fortalecimento da identidade nacional enquanto povo. Tendo isso em vista, cabe ao Estado, em parceria com a sociedade civil, estabelecer políticas públicas que tornem mais democrático o acesso a obras literárias exaltantes da produção intelectual africana, contemplando o catolicismo e outras religiões. Com isso, os estudantes do Brasil poderão conhecer, valorizar e se orgulhar de suas raízes africanas.

Essa é a forma que eu escolheria para fazer redação do Enem com o tema de 2024. No modo católico, também faria a redação contemplando os seguintes subtemas: a) legado das irmandades negras católicas no Brasil; b) o Congado como manifestação cultural católica; e, c) o catolicismo praticado por escravos africanos. Sobre a letra c, vale um rápido comentário: pesquisas recentes mostram que um contingente de escravos africanos trazidos ao Brasil pelo tráfico transatlântico já era católico antes de chegar em terras brasileiras. O historiador James Sweet aponta que mais de 90% dos que foram trazidos para o Brasil até por volta de 1680 eram originários dessa região. Ou seja, uma parcela dos povos centro-africanos trouxe ao Brasil o que já conhecia e praticava do seu catolicismo conguês. Mas isso é assunto para outro texto.

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