A pesquisadora da UFRJ Patrícia Silva explica o papel da Igreja Católica na abolição da escravidão e atuação do jornal O Apóstolo.
A pesquisadora da UFRJ Patrícia Silva explica o papel da Igreja Católica na abolição da escravidão e atuação do jornal O Apóstolo.
A Igreja Católica é largamente difamada por intelectuais e ativistas. Uma das razões para essa campanha difamatória seria o envolvimento do Clero na manutenção do sistema escravocrata. As informações que foram difundidas pelos jornais da época e alguns escritos dos próprios membros do Clero não condizem com tal acusação 1. A historiografia indica que houve, em verdade, uma efetiva campanha pelo fim do cativeiro realizada pelos sacerdotes brasileiros2; o alto Clero participou efetivamente do processo emancipacionista brasileiro, lutando, desde o início da década de 1870, pela liberdade de milhares de escravos3. A campanha abolicionista conduzida pelos clérigos era vista com bons olhos pela Santa Sé, tanto que, por ocasião da assinatura da Lei Áurea em 1888, o Papa Leão XIII enviou uma Rosa de Ouro à Princesa Isabel4. Ademais, a Igreja emitiu 839 documentos condenando a escravidão africana5. A acusação é, portanto, mais uma narrativa falsa difundida e instalada no imaginário popular que, a exemplo do que afirmei na coluna anterior, serve para afastar pessoas da Santa Igreja.
A literatura acadêmica sobre a temática pode ser organizada em dois grandes grupos: o primeiro grupo, formado por formado por padres, intelectuais, historiadores e cientistas sociais de posicionamento ideológico progressista, defende uma linha comum ao dizer que a Igreja compactuou com a escravidão; o segundo grupo, formado por intelectuais e historiadores com posicionamento político conservador, opõe-se ao primeiro, defendendo que a Igreja ficou do lado dos escravos em sua busca pela liberdade. Assumindo o meu ativismo leigo católico, alinho-me ao segundo grupo, pois acredito que faz parte do meu trabalho desconstruir narrativas que escondem a verdade sobre a nossa Igreja. O Venerável Fulton Sheen costumava dizer que “não existem mais de 100 pessoas neste mundo que realmente odeiem a Igreja Católica, mas há milhões que odeiam o que eles pensam ser a Igreja Católica.”6
O estudo sobre a relação entre a Igreja Católica, a escravidão e o movimento abolicionista é longo, complexo e multidisciplinar. Considerando isso, tratarei do assunto também em outros textos desta coluna. O presente texto, que identifiquei como “parte I”, tratará do papel do jornal católico O Apóstolo7 no movimento abolicionista brasileiro.
O jornal católico O Apóstolo foi fundado em 1866 pelo então reitor do Seminário São José, Monsenhor José Gonçalves Ferreira, que foi responsável pela edição do jornal até sua morte em 1883. O então Bispo do Rio de Janeiro, Dom Pedro Maria de Lacerda, fez deste jornal um órgão oficial de sua diocese 8, tornando-o um dos maiores porta-vozes do pensamento ultramontano no Brasil. Entre seus colaboradores, encontramos figuras de grande relevância no cenário nacional, sejam prelados ou leigos: Monsenhor José Gonçalves Ferreira, Senador Autran de Albuquerque, Padre João Esberard, o jornalista Antônio Manuel dos Reis e até mesmo o Bispo do Rio, D. Pedro Lacerda. O jornal contava também com a colaboração de outros bispos brasileiros, como D. Emmanuel de Medeiros, bispo de Pernambuco, que utilizava tal espaço para dirigir suas mensagens para um número maior de fiéis9.
O Apóstolo teve a missão de a) ensinar a boa doutrina; b) divulgar o movimento religioso no mundo, particularmente no Império; e, c) sustentar a ordem pública e a propriedade. Contudo, as funções do jornal extrapolavam aquelas de cunho estritamente espiritual, tornando-se o principal veículo da elite eclesiástica brasileira para divulgação e defesa das suas ideias sobre a emancipação dos cativos10:
O Apóstolo também difundiu opiniões antiescravistas, e pretendia influenciar a decisão moral sobre a integração dos libertos na sociedade brasileira. O jornal católico assumiu uma posição contrária às teorias científicas e racistas, além disso, representou uma posição alternativa em relação aos pessimismos da integração dos libertos.11
O jornal apoiou a Lei do Ventre Livre em 1871. Em suas páginas, ficam expressos os princípios que norteavam a defesa da emancipação e qual era o projeto de Brasil que esse grupo católico desejava. De acordo com o pesquisador Alceste Pinheiro,
As discussões sobre o projeto apresentado pelo ministério Rio Branco com aprovação do Imperador mobilizaram a elite brasileira. Foram quatro meses de intenso debate aos quais o semanário católico O Apóstolo deu destaque singular e posicionou-se claramente em favor da emancipação do ventre.12
A Igreja Católica, através d’O Apóstolo, usou a imprensa para tentar equilibrar interesses opostos, defender a abolição e a inclusão dos libertos na “grande família brasileira”. Os clérigos empreenderam uma campanha pela incorporação dos libertos como nacionais e não como degenerados. Muito mais do que o campo religioso, o jornal católico visava a construção de uma cidadania católica brasileira13. O Apóstolo preconizava também a educação e a preparação do liberto para o mundo do trabalho. Só assim seria possível a emancipação dos ex-escravos: defendia a preparação do escravo para o mundo do trabalho e a adoção de leis rigorosas para coibir o que denominava de vagabundagem14. O jornal ainda se posicionava contra a introdução em massa de imigrantes, ainda mais se protestantes.
Em sua dissertação de mestrado, intitulada Abolição e Catolicismo: a participação da Igreja Católica na extinção da escravidão no Brasil, a pesquisadora Camila Mendonça Pereira analisou, minuciosamente, os exemplares do jornal O Apóstolo. A autora nos mostra quão intensa foi a participação da hierarquia católica nas ações empreendidas a favor da abolição da escravidão desde finais dos anos 1860 até as vésperas da abolição, quando as declarações antiescravistas se intensificaram. Ela conclui:
O resultado da pesquisa aqui apresentado, no entanto, revelou que já havia discursos antiescravistas antes de 1887, porém, foi a partir desse ano que a atividade libertadora do clero tornou-se mais recorrente e afastada da proposta de uma abolição gradual. Além disso, ela foi fundamental para o despertar de um sentimento religioso pró-abolição que contribuiu para aumentar as fileiras do emancipacionismo e para formular uma alternativa às destinações propostas para os libertos.15
É importante não perder de vista que a Igreja Católica foi alvo de diversos ataques vindos, especialmente, de políticos liberais durante a campanha abolicionista. Graças a sua participação na abolição da escravatura, os libertos passaram a ser aliados importantes do catolicismo.16 Talvez seja também por isso que, ainda no Brasil do século XXI, 55% dos católicos são negros.17
Leia também: A devoção a Nossa Senhora do Rosário dos Homens Pretos e as irmandades negras católicas
Pedagoga, Autora do livro “Mulheres que o feminismo não vê - Classe e Raça”. Realizou pós-doutoramento em Sociologia pela UFRJ.
A Igreja Católica é largamente difamada por intelectuais e ativistas. Uma das razões para essa campanha difamatória seria o envolvimento do Clero na manutenção do sistema escravocrata. As informações que foram difundidas pelos jornais da época e alguns escritos dos próprios membros do Clero não condizem com tal acusação 1. A historiografia indica que houve, em verdade, uma efetiva campanha pelo fim do cativeiro realizada pelos sacerdotes brasileiros2; o alto Clero participou efetivamente do processo emancipacionista brasileiro, lutando, desde o início da década de 1870, pela liberdade de milhares de escravos3. A campanha abolicionista conduzida pelos clérigos era vista com bons olhos pela Santa Sé, tanto que, por ocasião da assinatura da Lei Áurea em 1888, o Papa Leão XIII enviou uma Rosa de Ouro à Princesa Isabel4. Ademais, a Igreja emitiu 839 documentos condenando a escravidão africana5. A acusação é, portanto, mais uma narrativa falsa difundida e instalada no imaginário popular que, a exemplo do que afirmei na coluna anterior, serve para afastar pessoas da Santa Igreja.
A literatura acadêmica sobre a temática pode ser organizada em dois grandes grupos: o primeiro grupo, formado por formado por padres, intelectuais, historiadores e cientistas sociais de posicionamento ideológico progressista, defende uma linha comum ao dizer que a Igreja compactuou com a escravidão; o segundo grupo, formado por intelectuais e historiadores com posicionamento político conservador, opõe-se ao primeiro, defendendo que a Igreja ficou do lado dos escravos em sua busca pela liberdade. Assumindo o meu ativismo leigo católico, alinho-me ao segundo grupo, pois acredito que faz parte do meu trabalho desconstruir narrativas que escondem a verdade sobre a nossa Igreja. O Venerável Fulton Sheen costumava dizer que “não existem mais de 100 pessoas neste mundo que realmente odeiem a Igreja Católica, mas há milhões que odeiam o que eles pensam ser a Igreja Católica.”6
O estudo sobre a relação entre a Igreja Católica, a escravidão e o movimento abolicionista é longo, complexo e multidisciplinar. Considerando isso, tratarei do assunto também em outros textos desta coluna. O presente texto, que identifiquei como “parte I”, tratará do papel do jornal católico O Apóstolo7 no movimento abolicionista brasileiro.
O jornal católico O Apóstolo foi fundado em 1866 pelo então reitor do Seminário São José, Monsenhor José Gonçalves Ferreira, que foi responsável pela edição do jornal até sua morte em 1883. O então Bispo do Rio de Janeiro, Dom Pedro Maria de Lacerda, fez deste jornal um órgão oficial de sua diocese 8, tornando-o um dos maiores porta-vozes do pensamento ultramontano no Brasil. Entre seus colaboradores, encontramos figuras de grande relevância no cenário nacional, sejam prelados ou leigos: Monsenhor José Gonçalves Ferreira, Senador Autran de Albuquerque, Padre João Esberard, o jornalista Antônio Manuel dos Reis e até mesmo o Bispo do Rio, D. Pedro Lacerda. O jornal contava também com a colaboração de outros bispos brasileiros, como D. Emmanuel de Medeiros, bispo de Pernambuco, que utilizava tal espaço para dirigir suas mensagens para um número maior de fiéis9.
O Apóstolo teve a missão de a) ensinar a boa doutrina; b) divulgar o movimento religioso no mundo, particularmente no Império; e, c) sustentar a ordem pública e a propriedade. Contudo, as funções do jornal extrapolavam aquelas de cunho estritamente espiritual, tornando-se o principal veículo da elite eclesiástica brasileira para divulgação e defesa das suas ideias sobre a emancipação dos cativos10:
O Apóstolo também difundiu opiniões antiescravistas, e pretendia influenciar a decisão moral sobre a integração dos libertos na sociedade brasileira. O jornal católico assumiu uma posição contrária às teorias científicas e racistas, além disso, representou uma posição alternativa em relação aos pessimismos da integração dos libertos.11
O jornal apoiou a Lei do Ventre Livre em 1871. Em suas páginas, ficam expressos os princípios que norteavam a defesa da emancipação e qual era o projeto de Brasil que esse grupo católico desejava. De acordo com o pesquisador Alceste Pinheiro,
As discussões sobre o projeto apresentado pelo ministério Rio Branco com aprovação do Imperador mobilizaram a elite brasileira. Foram quatro meses de intenso debate aos quais o semanário católico O Apóstolo deu destaque singular e posicionou-se claramente em favor da emancipação do ventre.12
A Igreja Católica, através d’O Apóstolo, usou a imprensa para tentar equilibrar interesses opostos, defender a abolição e a inclusão dos libertos na “grande família brasileira”. Os clérigos empreenderam uma campanha pela incorporação dos libertos como nacionais e não como degenerados. Muito mais do que o campo religioso, o jornal católico visava a construção de uma cidadania católica brasileira13. O Apóstolo preconizava também a educação e a preparação do liberto para o mundo do trabalho. Só assim seria possível a emancipação dos ex-escravos: defendia a preparação do escravo para o mundo do trabalho e a adoção de leis rigorosas para coibir o que denominava de vagabundagem14. O jornal ainda se posicionava contra a introdução em massa de imigrantes, ainda mais se protestantes.
Em sua dissertação de mestrado, intitulada Abolição e Catolicismo: a participação da Igreja Católica na extinção da escravidão no Brasil, a pesquisadora Camila Mendonça Pereira analisou, minuciosamente, os exemplares do jornal O Apóstolo. A autora nos mostra quão intensa foi a participação da hierarquia católica nas ações empreendidas a favor da abolição da escravidão desde finais dos anos 1860 até as vésperas da abolição, quando as declarações antiescravistas se intensificaram. Ela conclui:
O resultado da pesquisa aqui apresentado, no entanto, revelou que já havia discursos antiescravistas antes de 1887, porém, foi a partir desse ano que a atividade libertadora do clero tornou-se mais recorrente e afastada da proposta de uma abolição gradual. Além disso, ela foi fundamental para o despertar de um sentimento religioso pró-abolição que contribuiu para aumentar as fileiras do emancipacionismo e para formular uma alternativa às destinações propostas para os libertos.15
É importante não perder de vista que a Igreja Católica foi alvo de diversos ataques vindos, especialmente, de políticos liberais durante a campanha abolicionista. Graças a sua participação na abolição da escravatura, os libertos passaram a ser aliados importantes do catolicismo.16 Talvez seja também por isso que, ainda no Brasil do século XXI, 55% dos católicos são negros.17
Leia também: A devoção a Nossa Senhora do Rosário dos Homens Pretos e as irmandades negras católicas