Colunistas

A origem da inquietude da alma feminina

Por que a vida, em que experimentamos um vislumbre da felicidade, se tornou fonte de tanto desprazer, de tanto sofrimento?

A origem da inquietude da alma feminina
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A origem da inquietude da alma feminina

Por que a vida, em que experimentamos um vislumbre da felicidade, se tornou fonte de tanto desprazer, de tanto sofrimento?

Data da Publicação: 22/08/2024
Tempo de leitura:
Autor: Laise Sales
Data da Publicação: 22/08/2024
Tempo de leitura:
Autor: Laise Sales

Como afirmava Chesterton, “o pecado original constitui a única parte da teologia cristã que pode realmente ser provada”. E pode ser provada porque se trata de uma experiência universal, de que você e eu somos testemunhas diariamente, várias vezes ao dia.

Um filósofo como Immanuel Kant também falava que o homem era marcado por uma “sociabilidade insociável”. O homem tem uma inclinação para entrar em sociedade, porque nesse estado se sente mais homem, sente-se desenvolvendo as suas disposições naturais. Mas tem também uma grande propensão para se isolar. Por que o homem quer se isolar? Porque reconhece em si a predisposição de querer ter de tudo a seu gosto, o que é uma propriedade insocial, que nega a sua sociabilidade inata. E, por querer dispor de tudo segundo seus próprios interesses, sabe que deve esperar resistência de todos os lados, pois todos também estão buscando seus próprios interesses (tal como sabe, por si mesmo, que sente inclinação para exercer a resistência contra os outros).

Sigmund Freud foi outro autor que definiu a experiência do pecado original em termos laicais, sem referência religiosa, mas a descrevendo como dado antropológico. Para ele, os desejos humanos básicos são egoístas e levam consigo a semente da violência.

Kant é um filósofo agnóstico. Para ele, Deus não é fundamento da moralidade nem da Verdade. E Freud é ateu: nega francamente a existência de Deus e combate a religião, que é, para ele, fonte de neuroses que devem ser curadas. Tanto Freud quanto Kant não consideram a visão do Gênesis para falar dos nossos desejos egoístas e violentos.

O conhecimento que leva à verdade não contraria a fé, mas a confirma, explicando-a e aprofundando-a. Basta olhar para dentro de nós: experimentamos na vida essa verdade de fé. Fazemos o mal que não queremos, pois sempre buscamos um bem. Mas é fato que temos dificuldade em executá-lo. Não caminhamos espontaneamente para esse bem e, inclusive, temos imensa dificuldade de discerni-lo e, mais ainda, de conquistá-lo.

Podemos até compreender que, com toda a experiência de desintegração, de dor, de corrupção, de desequilíbrio, debilidade, sofrimento, degeneração e males que há no mundo, a morte, de certo modo, veio ao mundo como um remédio. A vida seria insuportável sem um prazo.

E por que a vida, em que experimentamos um vislumbre da felicidade, se tornou fonte de tanto desprazer, de tanto sofrimento? Porque perdemos o rumo; porque traímos a nossa finalidade. Todo o bem que buscamos aqui, se não coincide com a felicidade para a qual fomos feitos, será fonte de sofrimento e inquietude.

O nosso fim último está inscrito na nossa natureza. A nossa liberdade é, nesse sentido, limitada pela condição de criatura; de ser criado com uma finalidade. Se não descobrimos, aceitamos e amamos essa finalidade, não chegaremos a ela nunca. A nossa finalidade é a felicidade definitiva na Comunhão com Deus, que é fonte de toda Beleza, de toda Bondade e de toda a Verdade a que buscamos de modo errante neste mundo.

A origem da inquietude humana é o Pecado Original. A Queda é, em primeiro lugar, um fato histórico. Houve, na história, um episódio em que o homem recusou-se a se manter dentro dos limites estabelecidos por Deus para a criação; limites que nos ordenavam, que nos mantinham íntegros na vontade e na sabedoria perfeitas de Deus.
Tentado por um desejo desordenado de onipotência, de gozar por ele mesmo dos bens da realidade, sem precisar de Deus para ser feliz, o ser humano infringiu a sua condição de criatura e ultrapassou o limite imposto por Deus para que o homem pudesse manifestar a sua livre escolha pelo amor Dele.

Leia também: O que são os Pecados Capitais?

Não ultrapassar o limite significava amá-Lo e honrá-Lo respeitando e aceitando a própria condição de criatura. Não se trata, portanto, do mero “comer uma maçã”, mas de negar a vontade de Deus sobre si e de negar a sua própria natureza criatural, por querer “ser como Deus”. Se negamos a nossa natureza por um mau uso da vontade livre, atuamos contra ela, corrompemo-la.

O que experimentamos na realidade atual são os vestígios dessa experiência. Recebemos uma herança, uma marca que nos impede de realizar tudo aquilo que contemplamos como ideal para a alma humana – porque de alguma forma a nossa natureza não foi inteiramente destruída e continuamos vislumbrando, com muita luta, essa finalidade de excelência pessoal e a felicidade plena no amor.

Tudo o que acontece na história é real, traz consequências, deixa marcas. Se eu esbarrar num copo d’água, sem querer, vou derramar água sobre o computador, que talvez queime e vocês vão perder esse texto, porque as consequências no mundo real existem. Ou seja, mesmo que tenha sido sem querer, as consequências vêm! A toda causa segue-se uma consequência. É a lei da realidade. Nós sabemos disso.

Se o nosso pai tivesse sido um homem rico que perdeu todos os bens com jogo, mulheres e bebida, só nos legando dívidas e mais dívidas, não teríamos o que fazer; os seus atos na história seriam efetivos. Não adiantaria nos revoltarmos contra os atos errados dele. Tudo o que cada ser humano faz repercute no mundo, no tempo, e interfere, de algum modo, na existência de cada pessoa.

Essa conexão da humanidade – a solidariedade entre os homens – e a realidade da consequência dos atos é um fato. Não podemos contestar. E ela ocorre tanto do ponto de vista material quanto do ponto de vista espiritual. É, neste último caso, o que a Igreja chama de Comunhão dos Santos.

Cada exercício nosso de liberdade influencia no estado das coisas, na realidade criada – é um decréscimo ou um aumento de bem. Cada alma que sobe aos Céus eleva a humanidade inteira; e cada alma que se perde também traz malefícios para todos. É por isso que podemos ser beneficiados com a entrega de Cristo na Cruz. Por um só homem, todos perderam o Céu; mas pela obediência de um é que também o recuperamos.

O simbolismo presente no relato de Gênesis é o que há de mais rico para explicar essa realidade da nossa inquietude e desequilíbrio: Deus nos criou para a felicidade, para existirmos no Amor – nosso estado original é um estado de justiça e santidade – e fomos adornados com dons preternaturais que enriqueciam a natureza humana, como o dom da integridade.

Por conta da integridade – imunidade à concupiscência –, todas as potências humanas estavam perfeitamente alinhadas. Era especialmente difícil pecar, sucumbir às tentações. Mas, por conta da nossa liberdade constitutiva, fomos criados em estado de prova; quer dizer, podendo pecar, errar, e, inclusive, podendo escolher contra o princípio criador.
Só que éramos muito inteligentes, tínhamos total domínio sobre a vontade. Era necessário que uma inteligência muito superior à nossa, como a inteligência de um anjo (ser puramente espiritual), para nos induzir em erro. O demônio, anjo que já havia feito a sua escolha de não servir a Deus, mentiu e seduziu os homens, enganando-os e os colocando contra Deus com a falsa promessa de que a vida sem Deus poderia ser mais livre, mais excitante, mais prazerosa, mais cheia de gratificações.

Por meio da persuasão, o diabo ofereceu ao homem a excelência prometida a ele por Deus de forma irregular, desordenada… e com uma promessa impossível de ser cumprida: a promessa de obter tudo isso sem Deus, sendo mais do que Deus prometia.

Segundo a Sagrada Escritura, a promessa tentadora consistia em seduzir o homem para ser como Deus; e o homem, mesmo com toda a sua integridade, escolheu livremente pelo pecado, depois de ter-se deixado seduzir intelectualmente.

A alma humana começou a enfraquecer pelas falsas promessas, pela fantasia, pela cobiça, pela imaginação, pois o demônio não acessa nosso intelecto – que reside na dimensão mais espiritual, que se conecta com Deus –, mas ataca a parte afetiva, os nossos sentimentos e emoções.

O demônio invade a imaginação e cria sugestões para os sentimentos, que nos hipnotizam e persuadem indiretamente o intelecto. Se ele atuasse diretamente sobre o intelecto, não teríamos sequer condição de discernir e escolher (e não seríamos livres), mas seríamos como que arrebatados a segui-lo.

O pecado é uma mentira, uma promessa de vantagem, de um prêmio, de algum “ganho” que teríamos ao escolher uma vida sem Deus.

Todos nós experimentamos as consequências do pecado original, pois estamos inclinados a um mundo sem Deus. A nossa experiência nos leva para longe Dele com a falsa promessa de que estamos em busca de um bem maior, mas que é, no fundo, um prazer pueril, fútil, supérfluo – pois tudo o é em comparação com Deus.

O que aconteceu com a integridade da alma? Desequilibrou-se, desalinhou-se. Temos em Eva a figura da alma que abandonou a união original com Deus. Eva é a mãe dos viventes, mas também mãe da distração e da inquietude. É figura da alma humana porque, tirada do lado de Adão, é a ponte entre os membros superiores e inferiores, assim como a alma é a dimensão humana que liga o corpo e o espírito.

O espírito não é algo distinto da alma, mas é uma qualidade da alma em sentido amplo, que é o que há de imaterial no homem e anima o corpo. O espírito é como se fosse uma região, metaforicamente falando, uma operação da dimensão imaterial do ser humano, que é a alma.

A alma é a zona de articulação entre o corpo e o espírito. Ela tem uma face voltada para o corpo e outra para o espírito. A mulher é, simbolicamente, a figura da alma humana; tem geralmente a sensibilidade mais aflorada, é mais afetiva. Os afetos são justamente o vínculo do corpo com o espírito.

Ao darem ouvido à tentação, nossos primeiros pais, Adão e Eva, abrem a janela para a sedução. Agora precisamos de muito esforço para sermos humildes e reconhecer a necessidade de salvação desse estado de humilhação em que nos encontramos.

Com o mau uso da liberdade humana e sua natural solidariedade, todo nós nos unimos a essa experiência de desequilíbrio, que repercutirá, em sua máxima expressão, na morte física e espiritual.

Em Adão e Eva, o pecado original foi cometido, foi um ato. Nós experimentamos as consequências do pecado original como um “estado” que foi adquirido: é a privação de um bem que herdaríamos.

A morte passa a ser uma passagem necessária, com a sua dor e vazio. É o símbolo da nossa fragilidade. A morte e tudo o que ela traz: a corruptibilidade dos corpos, as doenças, o declínio físico com o passar do tempo, a tristeza pela separação dos entes queridos.

A experiência da separação da alma do corpo é a mais aterradora para os seres humanos; é algo que distorce a natureza humana em seu âmago: somos a unidade substancial de corpo e alma, e a vida nos lembra disso o tempo todo. Ver um cadáver, o corpo inanimado, é algo aterrador, é irreconhecível para quem conviveu com aquele morto… assim como a ideia de uma alma sem o corpo também é terrível. É a representação no campo corporal do que acontece com o nosso espírito após o pecado.

Antes o intelecto se encontrava voluntariamente submisso a Deus, numa submissão amorosa: a vontade ao intelecto, os afetos à vontade e o corpo aos afetos, tudo isso integrado na inteligência divina. Havia hierarquia harmônica que refletia uma perfeita unidade.

Hoje cada parte quer fazer uma coisa, cada faculdade quer agir de forma autônoma e independente. Os vetores que atuam sobre nós se desalinharam e apontam para várias direções. Existem muitas vozes assediando a nossa vontade. Esse jogo de forças internas é o drama da alma humana; é a luta contínua entre a carne e o espírito.

Sentimos uma inclinação para nos afastarmos de Deus. É a concupiscência. Após o pecado original, virão nossos pecados pessoais: nós caímos e nos brutalizamos cada vez mais, cristalizamo-nos nesses erros.

É difícil sair das garras do pecado porque as ações humanas tendem a se repetir, a se reiterar no sentido em que as realizamos. Existe uma espécie de inércia moral que decorre da conservação do ser na realidade. Daí a importância de fomentarmos bons hábitos para que, sobre as virtudes humanas, a graça de Deus possa agir.

A vida sem Deus, a felicidade no desfrute contínuo, só faz criar um buraco dentro de nós. A vida no hedonismo, que é a busca incessante e insaciável pelo prazer, não preenche nosso coração, não sacia os mais profundos anseios; as paixões nos subjugam.

“Quem não junta comigo espalha”, afirma Cristo. As nossas forças internas passam a ser atraídas consideravelmente pelos sentidos. Espalham-se, desorientam-se. A inteligência fica perturbada pelos pensamentos, imaginação, sentimentos, paixões, desejos e órgãos dos sentidos.

Experimentamos um rebuliço interior em que é quase impossível encontrar com Deus. Por isso vivemos infelizes e insatisfeitos. Nossa natureza espiritual foi feita para se encontrar com Deus, para unir-se ao Ser absoluto – e só encontra repouso nesse conhecimento do divino.

Agora procuramos o ser de Deus em coisas parciais, mas, como elas não têm o Ser em sentido pleno, o coração tem necessidade de buscar sempre novas coisas, que esgotam uma vez e outra a sua parcela de ser. Eis a origem da inquietude humana e de suas distrações.

Após a Queda, com a posse do fruto da árvore do bem e do mal, o ser humano passa a experimentar a realidade de forma dual, na sua multiplicidade. Onde antes havia união, há hoje separação. Temos correntemente a sensação de que as coisas são independentes, atomizadas, e encontramos muita dificuldade de harmonizá-las e ver que todas se unificam em Deus de forma hierarquizada – e simples.

Se antes a realidade era um espelho que refletia a unidade, a beleza, a verdade e a bondade de Deus, agora emerge sem um sentido explícito, que nos inquieta, que arrasta nosso olhar para o mundo, por várias forças dispersas e até contrárias.

Para reverter esse caminho, precisamos, antes de tudo, tomar consciência de que estamos buscando repouso no mundo externo, nas coisas passageiras, nas nossas fantasias, que, concretizem-se ou não, não vão pacificar os nossos corações.

Só que, ao tomarmos consciência disso, sentiremos dor, sofreremos; a nossa vida já está na dependência dessas coisas finitas. Será difícil abrir mão delas. Também sofreremos porque nos daremos conta de que traímos o sentido de nossas vidas e a quem nos criou para Ele.

Para seguir adiante precisaremos lutar contra as nossas inclinações atuais. Isto é, teremos de escolher o que é o certo e fazer o bem, procurando sinceramente a Deus na nossa vida, mesmo sem sentir um prazer persistente, mesmo que não estejamos “a fim de”.

Esse esforço nos levará a buscar as virtudes necessárias para, fortalecendo nosso o caráter, realinharmos a afetividade e começarmos a gostar de fazer o bem, a ganhar inclinações para não sermos arrastados pelo mundo.

A inquietude não se cura só pelo pensamento. Não será uma aula ou um livro que preencherá o coração e a vida com sentido. É inegociável retificar a alma por meio de atos virtuosos reiterados. Precisamos ter clareza do porquê devemos nos empenhar pelo bem, mesmo que custe, inicialmente, concretizar essa luta em ações.

Por onde começar? Pelo cumprimento da Lei de Deus, os 10 mandamentos. Depois, frequentar os sacramentos, a começar por uma boa confissão, e permanecer em estado de graça, para que as virtudes teologais, que são virtudes infusas, cresçam e animem as virtudes humanas.

Laise Sales

Laise Sales

Professora, doutora em História da Cultura, esposa e mãe, fundadora da Comunidade Entre Esposas, aborda temas de Antropologia Filosófica.

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Como afirmava Chesterton, “o pecado original constitui a única parte da teologia cristã que pode realmente ser provada”. E pode ser provada porque se trata de uma experiência universal, de que você e eu somos testemunhas diariamente, várias vezes ao dia.

Um filósofo como Immanuel Kant também falava que o homem era marcado por uma “sociabilidade insociável”. O homem tem uma inclinação para entrar em sociedade, porque nesse estado se sente mais homem, sente-se desenvolvendo as suas disposições naturais. Mas tem também uma grande propensão para se isolar. Por que o homem quer se isolar? Porque reconhece em si a predisposição de querer ter de tudo a seu gosto, o que é uma propriedade insocial, que nega a sua sociabilidade inata. E, por querer dispor de tudo segundo seus próprios interesses, sabe que deve esperar resistência de todos os lados, pois todos também estão buscando seus próprios interesses (tal como sabe, por si mesmo, que sente inclinação para exercer a resistência contra os outros).

Sigmund Freud foi outro autor que definiu a experiência do pecado original em termos laicais, sem referência religiosa, mas a descrevendo como dado antropológico. Para ele, os desejos humanos básicos são egoístas e levam consigo a semente da violência.

Kant é um filósofo agnóstico. Para ele, Deus não é fundamento da moralidade nem da Verdade. E Freud é ateu: nega francamente a existência de Deus e combate a religião, que é, para ele, fonte de neuroses que devem ser curadas. Tanto Freud quanto Kant não consideram a visão do Gênesis para falar dos nossos desejos egoístas e violentos.

O conhecimento que leva à verdade não contraria a fé, mas a confirma, explicando-a e aprofundando-a. Basta olhar para dentro de nós: experimentamos na vida essa verdade de fé. Fazemos o mal que não queremos, pois sempre buscamos um bem. Mas é fato que temos dificuldade em executá-lo. Não caminhamos espontaneamente para esse bem e, inclusive, temos imensa dificuldade de discerni-lo e, mais ainda, de conquistá-lo.

Podemos até compreender que, com toda a experiência de desintegração, de dor, de corrupção, de desequilíbrio, debilidade, sofrimento, degeneração e males que há no mundo, a morte, de certo modo, veio ao mundo como um remédio. A vida seria insuportável sem um prazo.

E por que a vida, em que experimentamos um vislumbre da felicidade, se tornou fonte de tanto desprazer, de tanto sofrimento? Porque perdemos o rumo; porque traímos a nossa finalidade. Todo o bem que buscamos aqui, se não coincide com a felicidade para a qual fomos feitos, será fonte de sofrimento e inquietude.

O nosso fim último está inscrito na nossa natureza. A nossa liberdade é, nesse sentido, limitada pela condição de criatura; de ser criado com uma finalidade. Se não descobrimos, aceitamos e amamos essa finalidade, não chegaremos a ela nunca. A nossa finalidade é a felicidade definitiva na Comunhão com Deus, que é fonte de toda Beleza, de toda Bondade e de toda a Verdade a que buscamos de modo errante neste mundo.

A origem da inquietude humana é o Pecado Original. A Queda é, em primeiro lugar, um fato histórico. Houve, na história, um episódio em que o homem recusou-se a se manter dentro dos limites estabelecidos por Deus para a criação; limites que nos ordenavam, que nos mantinham íntegros na vontade e na sabedoria perfeitas de Deus.
Tentado por um desejo desordenado de onipotência, de gozar por ele mesmo dos bens da realidade, sem precisar de Deus para ser feliz, o ser humano infringiu a sua condição de criatura e ultrapassou o limite imposto por Deus para que o homem pudesse manifestar a sua livre escolha pelo amor Dele.

Leia também: O que são os Pecados Capitais?

Não ultrapassar o limite significava amá-Lo e honrá-Lo respeitando e aceitando a própria condição de criatura. Não se trata, portanto, do mero “comer uma maçã”, mas de negar a vontade de Deus sobre si e de negar a sua própria natureza criatural, por querer “ser como Deus”. Se negamos a nossa natureza por um mau uso da vontade livre, atuamos contra ela, corrompemo-la.

O que experimentamos na realidade atual são os vestígios dessa experiência. Recebemos uma herança, uma marca que nos impede de realizar tudo aquilo que contemplamos como ideal para a alma humana – porque de alguma forma a nossa natureza não foi inteiramente destruída e continuamos vislumbrando, com muita luta, essa finalidade de excelência pessoal e a felicidade plena no amor.

Tudo o que acontece na história é real, traz consequências, deixa marcas. Se eu esbarrar num copo d’água, sem querer, vou derramar água sobre o computador, que talvez queime e vocês vão perder esse texto, porque as consequências no mundo real existem. Ou seja, mesmo que tenha sido sem querer, as consequências vêm! A toda causa segue-se uma consequência. É a lei da realidade. Nós sabemos disso.

Se o nosso pai tivesse sido um homem rico que perdeu todos os bens com jogo, mulheres e bebida, só nos legando dívidas e mais dívidas, não teríamos o que fazer; os seus atos na história seriam efetivos. Não adiantaria nos revoltarmos contra os atos errados dele. Tudo o que cada ser humano faz repercute no mundo, no tempo, e interfere, de algum modo, na existência de cada pessoa.

Essa conexão da humanidade – a solidariedade entre os homens – e a realidade da consequência dos atos é um fato. Não podemos contestar. E ela ocorre tanto do ponto de vista material quanto do ponto de vista espiritual. É, neste último caso, o que a Igreja chama de Comunhão dos Santos.

Cada exercício nosso de liberdade influencia no estado das coisas, na realidade criada – é um decréscimo ou um aumento de bem. Cada alma que sobe aos Céus eleva a humanidade inteira; e cada alma que se perde também traz malefícios para todos. É por isso que podemos ser beneficiados com a entrega de Cristo na Cruz. Por um só homem, todos perderam o Céu; mas pela obediência de um é que também o recuperamos.

O simbolismo presente no relato de Gênesis é o que há de mais rico para explicar essa realidade da nossa inquietude e desequilíbrio: Deus nos criou para a felicidade, para existirmos no Amor – nosso estado original é um estado de justiça e santidade – e fomos adornados com dons preternaturais que enriqueciam a natureza humana, como o dom da integridade.

Por conta da integridade – imunidade à concupiscência –, todas as potências humanas estavam perfeitamente alinhadas. Era especialmente difícil pecar, sucumbir às tentações. Mas, por conta da nossa liberdade constitutiva, fomos criados em estado de prova; quer dizer, podendo pecar, errar, e, inclusive, podendo escolher contra o princípio criador.
Só que éramos muito inteligentes, tínhamos total domínio sobre a vontade. Era necessário que uma inteligência muito superior à nossa, como a inteligência de um anjo (ser puramente espiritual), para nos induzir em erro. O demônio, anjo que já havia feito a sua escolha de não servir a Deus, mentiu e seduziu os homens, enganando-os e os colocando contra Deus com a falsa promessa de que a vida sem Deus poderia ser mais livre, mais excitante, mais prazerosa, mais cheia de gratificações.

Por meio da persuasão, o diabo ofereceu ao homem a excelência prometida a ele por Deus de forma irregular, desordenada… e com uma promessa impossível de ser cumprida: a promessa de obter tudo isso sem Deus, sendo mais do que Deus prometia.

Segundo a Sagrada Escritura, a promessa tentadora consistia em seduzir o homem para ser como Deus; e o homem, mesmo com toda a sua integridade, escolheu livremente pelo pecado, depois de ter-se deixado seduzir intelectualmente.

A alma humana começou a enfraquecer pelas falsas promessas, pela fantasia, pela cobiça, pela imaginação, pois o demônio não acessa nosso intelecto – que reside na dimensão mais espiritual, que se conecta com Deus –, mas ataca a parte afetiva, os nossos sentimentos e emoções.

O demônio invade a imaginação e cria sugestões para os sentimentos, que nos hipnotizam e persuadem indiretamente o intelecto. Se ele atuasse diretamente sobre o intelecto, não teríamos sequer condição de discernir e escolher (e não seríamos livres), mas seríamos como que arrebatados a segui-lo.

O pecado é uma mentira, uma promessa de vantagem, de um prêmio, de algum “ganho” que teríamos ao escolher uma vida sem Deus.

Todos nós experimentamos as consequências do pecado original, pois estamos inclinados a um mundo sem Deus. A nossa experiência nos leva para longe Dele com a falsa promessa de que estamos em busca de um bem maior, mas que é, no fundo, um prazer pueril, fútil, supérfluo – pois tudo o é em comparação com Deus.

O que aconteceu com a integridade da alma? Desequilibrou-se, desalinhou-se. Temos em Eva a figura da alma que abandonou a união original com Deus. Eva é a mãe dos viventes, mas também mãe da distração e da inquietude. É figura da alma humana porque, tirada do lado de Adão, é a ponte entre os membros superiores e inferiores, assim como a alma é a dimensão humana que liga o corpo e o espírito.

O espírito não é algo distinto da alma, mas é uma qualidade da alma em sentido amplo, que é o que há de imaterial no homem e anima o corpo. O espírito é como se fosse uma região, metaforicamente falando, uma operação da dimensão imaterial do ser humano, que é a alma.

A alma é a zona de articulação entre o corpo e o espírito. Ela tem uma face voltada para o corpo e outra para o espírito. A mulher é, simbolicamente, a figura da alma humana; tem geralmente a sensibilidade mais aflorada, é mais afetiva. Os afetos são justamente o vínculo do corpo com o espírito.

Ao darem ouvido à tentação, nossos primeiros pais, Adão e Eva, abrem a janela para a sedução. Agora precisamos de muito esforço para sermos humildes e reconhecer a necessidade de salvação desse estado de humilhação em que nos encontramos.

Com o mau uso da liberdade humana e sua natural solidariedade, todo nós nos unimos a essa experiência de desequilíbrio, que repercutirá, em sua máxima expressão, na morte física e espiritual.

Em Adão e Eva, o pecado original foi cometido, foi um ato. Nós experimentamos as consequências do pecado original como um “estado” que foi adquirido: é a privação de um bem que herdaríamos.

A morte passa a ser uma passagem necessária, com a sua dor e vazio. É o símbolo da nossa fragilidade. A morte e tudo o que ela traz: a corruptibilidade dos corpos, as doenças, o declínio físico com o passar do tempo, a tristeza pela separação dos entes queridos.

A experiência da separação da alma do corpo é a mais aterradora para os seres humanos; é algo que distorce a natureza humana em seu âmago: somos a unidade substancial de corpo e alma, e a vida nos lembra disso o tempo todo. Ver um cadáver, o corpo inanimado, é algo aterrador, é irreconhecível para quem conviveu com aquele morto… assim como a ideia de uma alma sem o corpo também é terrível. É a representação no campo corporal do que acontece com o nosso espírito após o pecado.

Antes o intelecto se encontrava voluntariamente submisso a Deus, numa submissão amorosa: a vontade ao intelecto, os afetos à vontade e o corpo aos afetos, tudo isso integrado na inteligência divina. Havia hierarquia harmônica que refletia uma perfeita unidade.

Hoje cada parte quer fazer uma coisa, cada faculdade quer agir de forma autônoma e independente. Os vetores que atuam sobre nós se desalinharam e apontam para várias direções. Existem muitas vozes assediando a nossa vontade. Esse jogo de forças internas é o drama da alma humana; é a luta contínua entre a carne e o espírito.

Sentimos uma inclinação para nos afastarmos de Deus. É a concupiscência. Após o pecado original, virão nossos pecados pessoais: nós caímos e nos brutalizamos cada vez mais, cristalizamo-nos nesses erros.

É difícil sair das garras do pecado porque as ações humanas tendem a se repetir, a se reiterar no sentido em que as realizamos. Existe uma espécie de inércia moral que decorre da conservação do ser na realidade. Daí a importância de fomentarmos bons hábitos para que, sobre as virtudes humanas, a graça de Deus possa agir.

A vida sem Deus, a felicidade no desfrute contínuo, só faz criar um buraco dentro de nós. A vida no hedonismo, que é a busca incessante e insaciável pelo prazer, não preenche nosso coração, não sacia os mais profundos anseios; as paixões nos subjugam.

“Quem não junta comigo espalha”, afirma Cristo. As nossas forças internas passam a ser atraídas consideravelmente pelos sentidos. Espalham-se, desorientam-se. A inteligência fica perturbada pelos pensamentos, imaginação, sentimentos, paixões, desejos e órgãos dos sentidos.

Experimentamos um rebuliço interior em que é quase impossível encontrar com Deus. Por isso vivemos infelizes e insatisfeitos. Nossa natureza espiritual foi feita para se encontrar com Deus, para unir-se ao Ser absoluto – e só encontra repouso nesse conhecimento do divino.

Agora procuramos o ser de Deus em coisas parciais, mas, como elas não têm o Ser em sentido pleno, o coração tem necessidade de buscar sempre novas coisas, que esgotam uma vez e outra a sua parcela de ser. Eis a origem da inquietude humana e de suas distrações.

Após a Queda, com a posse do fruto da árvore do bem e do mal, o ser humano passa a experimentar a realidade de forma dual, na sua multiplicidade. Onde antes havia união, há hoje separação. Temos correntemente a sensação de que as coisas são independentes, atomizadas, e encontramos muita dificuldade de harmonizá-las e ver que todas se unificam em Deus de forma hierarquizada – e simples.

Se antes a realidade era um espelho que refletia a unidade, a beleza, a verdade e a bondade de Deus, agora emerge sem um sentido explícito, que nos inquieta, que arrasta nosso olhar para o mundo, por várias forças dispersas e até contrárias.

Para reverter esse caminho, precisamos, antes de tudo, tomar consciência de que estamos buscando repouso no mundo externo, nas coisas passageiras, nas nossas fantasias, que, concretizem-se ou não, não vão pacificar os nossos corações.

Só que, ao tomarmos consciência disso, sentiremos dor, sofreremos; a nossa vida já está na dependência dessas coisas finitas. Será difícil abrir mão delas. Também sofreremos porque nos daremos conta de que traímos o sentido de nossas vidas e a quem nos criou para Ele.

Para seguir adiante precisaremos lutar contra as nossas inclinações atuais. Isto é, teremos de escolher o que é o certo e fazer o bem, procurando sinceramente a Deus na nossa vida, mesmo sem sentir um prazer persistente, mesmo que não estejamos “a fim de”.

Esse esforço nos levará a buscar as virtudes necessárias para, fortalecendo nosso o caráter, realinharmos a afetividade e começarmos a gostar de fazer o bem, a ganhar inclinações para não sermos arrastados pelo mundo.

A inquietude não se cura só pelo pensamento. Não será uma aula ou um livro que preencherá o coração e a vida com sentido. É inegociável retificar a alma por meio de atos virtuosos reiterados. Precisamos ter clareza do porquê devemos nos empenhar pelo bem, mesmo que custe, inicialmente, concretizar essa luta em ações.

Por onde começar? Pelo cumprimento da Lei de Deus, os 10 mandamentos. Depois, frequentar os sacramentos, a começar por uma boa confissão, e permanecer em estado de graça, para que as virtudes teologais, que são virtudes infusas, cresçam e animem as virtudes humanas.

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