Descubra como rezar o Relógio da Paixão e meditar as 24 horas da Paixão de Jesus com os escritos da Beata Anna Catarina Emmerich.
Descubra como rezar o Relógio da Paixão e meditar as 24 horas da Paixão de Jesus com os escritos da Beata Anna Catarina Emmerich.
Descubra como rezar o Relógio da Paixão e meditar as 24 horas da Paixão de Jesus com os escritos da Beata Anna Catarina Emmerich.
Na Quinta e na Sexta-feira Santas, os acontecimentos da Paixão de Cristo se desenrolam como um drama sagrado, hora após hora, marcado por dor, entrega e amor redentor. O Relógio da Paixão é uma devoção que nos convida a acompanhar Nosso Senhor nesse caminho, distribuindo os principais episódios de sua Paixão ao longo das 24 horas do dia. Cada hora é uma janela aberta para o mistério do sofrimento de Cristo, uma oportunidade de vigiar com Ele, como pediu no Horto das Oliveiras: “Ficai aqui e vigiai comigo.” 1
Há diversas formas de viver essa prática, mas neste artigo seguimos a versão baseada nas visões da beata Anna Catarina Emmerich, mística alemã do século XIX, reunidas na obra Vida e Paixão do Cordeiro de Deus, publicada pela Minha Biblioteca Católica. Trata-se de um guia que traz um modo concreto de meditar a Paixão em clima de oração e nos insere, espiritualmente, nas cenas mais comoventes da história da Salvação.
Conheça a história e as celebrações da Semana Santa.
O Relógio da Paixão é uma forma de oração meditativa que distribui os sofrimentos de Jesus nas 24 horas que compreendem a Quinta e a Sexta-feira Santas — desde a Última Ceia até o Seu sepultamento. A cada hora, é proposto um momento específico da Paixão, para que o fiel possa se unir, mesmo que brevemente, à dor do Senhor com compaixão, recolhimento e amor.
Essa prática pode ser vivida de forma livre ou com o apoio de textos meditativos, como os das visões da beata Emmerich. Não se trata de uma oração rígida ou obrigatória, mas de um convite à intimidade com Cristo em sua hora mais solene.
Desde os primeiros séculos do cristianismo, os fiéis sentiram a necessidade de acompanhar, com espírito de oração, os sofrimentos de Jesus durante sua Paixão. Os Evangelhos nos mostram como tudo se deu no tempo: havia uma hora para a prisão, uma hora para o julgamento, uma hora para a crucifixão, uma hora para a morte.
Ao longo da história, essa percepção se transformou em espiritualidade concreta. Durante a Semana Santa, especialmente nas horas santas e nas meditações das Sete Palavras, a Igreja estimula a contemplação dos momentos da Paixão. O Relógio da Paixão, como conhecemos hoje, é uma expressão mais sistematizada dessa tradição, que pode ser vivido de modo livre ou com base em textos específicos, como os da beata Emmerich.
Seguindo a forma estruturada proposta pela beata Anna Catarina Emmerich, a devoção ganha densidade mística e sensibilidade interior, ajudando-nos a vigiar com o Senhor a cada hora do dia.
O Relógio da Paixão divide o tempo em 24 momentos, começando às 18h da Quinta-feira Santa — hora da Última Ceia — e terminando às 17h da Sexta-feira Santa — com o sepultamento de Jesus.
Cada hora contempla um episódio específico da Paixão, conforme as visões da beata Emmerich. A proposta é que, ao longo do dia, o fiel dedique alguns minutos para meditar no que aconteceu com Jesus naquela hora específica. Esse exercício transforma o tempo comum em tempo sagrado.
Alguns exemplos de momentos contemplados:
Cada hora é uma ocasião de profunda meditação e de presença amorosa. Mesmo que a pessoa não consiga rezar todas as 24 horas, pode escolher algumas para acompanhar Jesus, oferecendo-lhe consolo e reparação.
Sim. Embora a devoção tenha seu ápice na Semana Santa, especialmente na sextas-feira, ela pode ser vivida ao longo do ano, em momentos de recolhimento ou como prática pessoal regular. Em particular, pode-se escolher uma hora fixa por semana para meditar sempre o mesmo episódio, cultivando assim uma fidelidade constante na meditação da Paixão do Senhor.
Para viver bem essa prática, sugerimos alguns passos simples.
Escolha um ambiente calmo e silencioso, onde você possa retornar ao longo do dia. Pode ser um pequeno oratório, um canto reservado da casa ou mesmo a capela de uma igreja. O importante é que esse espaço ajude a manter o espírito de recolhimento e disponibilidade para acompanhar Jesus, hora a hora.
Durante cada hora, procure fazer silêncio interior. Mesmo sem ler nada, ofereça a sua presença a Jesus com amor e compaixão. Basta imaginar o que Ele sofreu naquele momento e permanecer unido a Ele, em espírito de adoração. Essa escuta silenciosa do coração é um dos modos mais profundos de oração.
Conheça também o Regina Caeli, uma oração para o Tempo Pascal.
Viver o Relógio da Paixão é entrar, com o coração aberto, no mistério mais profundo da fé cristã: a entrega de Jesus por amor a nós. Ao meditar cada hora da Paixão, oferecemos ao Senhor não apenas nossa atenção, mas nossa presença. É como se, a cada momento, disséssemos: “Senhor, não quero deixar-Te sozinho”.
Essa prática nos ensina a permanecer — mesmo quando tudo parece escuro, mesmo quando a cruz pesa. Ela nos educa na fidelidade silenciosa, na compaixão concreta, no amor perseverante. A alma que caminha com Jesus durante a sua Paixão começa, aos poucos, a moldar-se à forma do Crucificado, aprendendo com Ele a amar até o fim.
Em suas visões, a beata Anna Catarina Emmerich descreve como Jesus se alegrava com a companhia espiritual de almas que O acompanhavam em Seu sofrimento. Essa experiência resume a essência da devoção: consolar Jesus com nossa oração fiel.
Jesus, imagem viva da dor, foi estendido pelos carrascos sobre a cruz; ele próprio se sentou sobre ela e eles brutamente o deitaram de costas. Colocaram-lhe a mão direita sobre o orifício do prego, no braço direito da cruz, e aí lhe amarraram o braço. Um deles se ajoelhou sobre o Seu santo peito, enquanto outro lhe segurava a mão, que estava se contraindo, e um terceiro colocou o cravo grosso e comprido, com a ponta limada, sobre essa mão cheia de bênção, e cravou-a nela, com violentas pancadas de um martelo de ferro. Doces e claros gemidos ouviram-se da boca do Senhor; o sangue sagrado salpicou os braços dos carrascos; rasgaram-lhe os tendões da mão, os quais foram arrastados, com o prego triangular, para dentro do estreito orifício.
Contei as marteladas, mas esqueci, na minha dor, esse número. A Santíssima Virgem gemia baixinho e parecia estar sem sentidos exteriormente; Madalena estava desvairada.
As brocas eram grandes peças de ferro, da forma de um T; não havia nelas nada de madeira. Também os pesados martelos eram, como os cabos, de ferro, e todos de uma peça inteiriça; tinham quase a forma dos martelos de pau que os marceneiros usam entre nós, trabalhando com formão. Os cravos, cujo aspecto fizera tremer Jesus, eram de tal tamanho que seguros pelo punho, excediam em baixo e em cima cerca de uma polegada. Tinham cabeça chata, da largura de uma moeda de cobre, com uma elevação cônica no meio. Tinham três gumes; na parte superior tinham a grossura de um polegar e na parte inferior a de um dedo pequeno; a ponta fora aguçada com uma lima; cravados na cruz, vi-lhes a ponta sair um pouco do outro lado dos braços da cruz.
Depois de terem pregado a mão direita de Nosso Senhor, viram os crucificadores que a mão esquerda, que tinham também amarrado ao braço da cruz, não chegava até o orifício do cravo, que tinham perfurado a duas polegadas distantes das pontas dos dedos. Por isso ataram uma corda ao braço esquerdo do Salvador e, apoiando os pés sobre a cruz, puxaram a toda força, até que a mão chegou ao orifício do cravo. Jesus dava gemidos tocantes; pois deslocaram-lhe inteiramente os braços das articulações; os ombros, violentamente distendidos, formavam grandes cavidades axilares, nos cotovelos se viam as junturas dos ossos. O peito levantou-se-lhe e as pernas encolheram-se sobre o corpo. Os algozes ajoelharam-se sobre os Seus braços e o peito, amarraram-lhe fortemente os braços e cravaram-lhe então cruelmente o segundo prego na mão esquerda; jorrou alto o sangue e ouviram-se os agudos gemidos de Jesus, por entre as pancadas do pesado martelo. Os braços do Senhor estavam tão distendidos, que formavam uma linha reta e não cobriam mais os braços da cruz, que subiam em linha oblíqua; ficava um espaço livre entre esses e as axilas do Divino Mártir.
A Santíssima Virgem sentiu todas essas torturas com Jesus; estava de uma palidez cadavérica e fracos gemidos saíam-lhe da boca. Os fariseus dirigiram insultos e deboches para o lado onde ela estava; por isso os amigos conduziram-na para junto das outras santas mulheres, que estavam um pouco mais afastadas do lugar do suplício. Madalena estava como louca; feria o rosto de modo que tinha as faces e olhos cheios de sangue.
Havia na cruz, embaixo, talvez a um terço da respectiva altura, uma peça de madeira, fixa por um prego muito grande, destinada a suportar os pés de Jesus, a fim de que ficasse mais em pé do que suspenso; de outro modo as mãos teriam sido rasgadas pelo peso do corpo e os pés não poderiam ser pregados sem quebrá-los. Nessa peça de madeira tinham perfurado o orifício para o cravo. Tinham também feito uma cavidade para os calcanhares, como também havia outras, em vários pontos da cruz, para que o Mártir pudesse ficar suspenso mais tempo e o peso do corpo não lhe rasgasse as mãos, fazendo-o cair.
Todo o corpo de nosso Salvador tinha-se contraído para o alto da cruz, pela violenta extensão dos braços, e os Seus joelhos tinham-se dobrado. Os algozes lançaram-se então sobre esses e, por meio de cordas, amarraram-nos ao tronco da cruz; mas pela posição errada dos orifícios dos cravos, os pés ficavam longe da peça de madeira que os devia suportar. Então começaram os algozes a praguejar e insultar. Alguns julgavam que se deviam furar outros orifícios para os pregos das mãos; pois mudar o suporte dos pés era difícil. Outros fizeram horrível troça de Jesus: “Ele não quer estender-se, disseram, mas nós lhe ajudaremos”. Atando cordas à perna direita, puxaram-na com horrível violência, até o pé tocar no suporte, e amarraram-na à cruz. Foi uma deslocação tão horrível, que se ouvia estalar o peito de Jesus, que gemia alto: “Ó meu Deus! Meu Deus!”.
Tinham-lhe amarrado também o peito e os braços, para os pregos não rasgarem as mãos; o Seu ventre encolheu-se inteiramente, as costelas pareciam a ponto de destacar-se do esterno. Foi uma tortura horrorosa.
Amarraram depois o pé esquerdo com a mesma brutal violência, colocando-o sobre o pé direito, e como os pés não repousavam com bastante firmeza sobre o suporte, para serem pregados juntos, perfuraram primeiro o peito do pé esquerdo com um prego mais fino e de cabeça mais chata do que os cravos, como se fura a sola. Feito isso, tomaram o cravo mais comprido que o das mãos, o mais horrível de todos e, passando-o brutalmente pelo furo feito no pé esquerdo, atravessaram-lhe a marteladas o direito, cujos ossos estalavam, até o cravo entrar no orifício do suporte e, através desse, no tronco da cruz. Olhando de lado a cruz, vi como o prego atravessou os dois pés.
Essa tortura era a mais dolorosa de todas, por causa da distensão de todo o corpo. Contei 36 golpes de martelo, no meio dos gemidos claros e penetrantes do pobre Salvador; as vozes em redor, que proferiam insultos e imprecações, pareciam-me sombrias e sinistras.
A Santíssima Virgem tinha voltado ao lugar do suplício; a deslocação do corpo do Filho adorado, o som das marteladas e os gemidos de Jesus, causaram-lhe tão veemente dor e compaixão, que caiu novamente nos braços das companheiras, o que provocou um ajuntamento de povo. Então acorreram alguns fariseus a cavalo, insultando-as, e os amigos afastaram-na outra vez a alguma distância.
Durante a crucifixão e a elevação da cruz, que se lhe seguiu, se ouviam, especialmente entre as mulheres, gritos de compaixão, como: “Por que a terra não traga esses miseráveis? Por que não cai fogo do céu, para os devorar?”. A essas manifestações de amor respondiam os carrascos com insultos e escárnio. Os gemidos que a dor arrancava a Jesus, misturavam-se com contínua oração; recitava trechos dos salmos e dos profetas, cujas predições nessa hora cumpria; em todo o caminho da cruz, até à morte, não cessava de rezar assim e de cumprir as profecias. Ouvi e rezei com ele todas essas passagens e às vezes me lembro delas, quando rezo os salmos; mas fiquei tão acabrunhada com o martírio de meu Esposo celeste, que não sei mais juntá-las.
Durante esse horrível suplício, vi Anjos chorando aparecerem acima de Jesus.
O comandante da guarda romana fizera pregar no alto da cruz a tábua, com o título que Pilatos escrevera. Os fariseus estavam indignados porque os romanos se riam alto do título “Rei dos judeus”. Por isso voltaram alguns fariseus à cidade, depois de ter tomado medida para uma outra inscrição, para pedir a Pilatos novamente outro título.
Enquanto Jesus era pregado à cruz, estavam ainda alguns homens a trabalhar na escavação em que a cruz devia ser colocada; pois era estreita a cova e a rocha muito dura.
Alguns dos algozes, em vez de dar a Jesus para beber o vinho aromático trazido pelas santas mulheres, beberam-no eles mesmos e ficaram embriagados; queimava-lhes as entranhas e causava-lhes tanta dor nos intestinos que ficaram desvairados; insultavam a Jesus, chamando-o de feiticeiro, e enfureciam-se à vista da paciência do Divino Mestre; desceram várias vezes o Calvário, a correr, para beber leite de jumenta. Havia lá perto algumas mulheres, que pertenciam a um acampamento de peregrinos vindos para a festa da Páscoa, as quais tinham jumentas, cujo leite vendiam.
Pela posição do sol era cerca de doze horas e um quarto, quando Jesus foi crucificado. No momento em que elevaram a cruz, ouviu-se do Templo o soar de muitas trombetas: era a hora em que imolavam o cordeiro pascal.
Depois de terem pregado Nosso Senhor à cruz, ataram cordas na parte superior da mesma, por meio de argolas, lançaram as cordas sobre o cavalete antes erigido no lado oposto e puxaram a cruz pelas cordas, de modo que a parte superior se lhe ergueu; alguns dirigiram-se com paus munidos de ganchos, que fincaram no tronco e fizeram o pé da cruz entrar na cova. Quando o madeiro chegou à posição vertical, entrou na escavação com todo o peso e tocou no fundo com um terrível choque. A cruz tremeu do abalo e Jesus soltou um grito de dor; pelo peso vertical desceu-lhe o corpo, as Suas feridas alargaram-se, o sangue corria mais abundantemente e os ossos deslocados entrechocaram-se. Os carrascos ainda sacudiram a cruz, para a pôr mais firme, e fincaram cinco cunhas na cova, em redor da cruz: uma na frente, uma no lado direito, outra à esquerda e duas atrás, onde o madeiro estava um pouco arredondado.
Foi uma impressão terrível e ao mesmo tempo comovedora, quando, sob os gritos insultuosos dos carrascos e dos fariseus, como também de muitos homens do povo, mais afastados, a cruz se elevou, balançando, e entrou estremecendo na escavação; ouviram-se também vozes piedosas de compaixão, as vozes mais santas da terra: a da Mãe Santíssima, de João, das amigas e de todos que tinham um coração puro, saudaram com expressão dolorosa o Verbo eterno, feito carne e elevado sobre a cruz. Estenderam as mãos ansiosamente como para o segurar, quando o Santo dos santos, o Esposo de todas as almas, pregado vivo na cruz, foi elevado pelas mãos dos pecadores enfurecidos. Quando, porém, o madeiro erguido com estrondo entrou na respectiva cova, houve um momento de silêncio solene; todo o mundo parecia experimentar uma sensação nova, nunca até então sentida. O próprio inferno sentiu assustado o choque do lenho sobre a rocha e levantou-se contra ele, redobrando nos seus instrumentos humanos o seu furor e os insultos. Nas almas do purgatório e do limbo, porém, causou alegria e esperança: soava-lhes como o bater do triunfador às portas da Redenção. A santa Cruz estava pela primeira vez plantada no meio da terra, como aquela árvore da vida no Paraíso, e das chagas dilatadas do Cristo corriam quatro rios santos sobre a terra, para expiar a maldição que pesava sobre ela e para fertilizar e a tornar um paraíso do novo Adão.
Quando nosso Salvador foi elevado na cruz e os gritos de insulto foram interrompidos por alguns minutos de silencioso espanto, ouvia-se do Templo o som de muitas trombetas, que anunciavam o começo da imolação do cordeiro pascal, do símbolo, interrompendo de um modo solene e significativo os gritos de furor e de dor, em redor do verdadeiro Cordeiro de Deus, imolado na cruz. Muitos corações endurecidos foram abalados e pensaram nas palavras do Precursor, João Batista: “Eis aí o Cordeiro de Deus, que tomou sobre si os pecados do mundo”.
O lugar onde fora plantada a cruz estava elevado cerca de dois pés acima do terreno em redor. Quando a cruz ainda se achava fora da cova, estavam os pés de Jesus à altura de um homem, mas depois de introduzida na respectiva escavação, podiam os amigos chegar aos pés do Mestre, para os abraçar e beijar. Havia um caminho para essa eminência. O rosto de Jesus estava virado para nordeste.
Os carrascos juntaram as vestes de Jesus no lugar onde tinham jazido os ladrões e fizeram delas vários lotes, para tirar à sorte. O manto era mais largo embaixo do que em cima e tinha várias pregas; sobre o peito estava dobrado e formava assim bolsos. Rasgaram-no em várias tiras, como também a longa veste branca, aberta no peito, onde havia correias para atá-la, e distribuíram-nas pelos lotes; assim fizeram também várias partes da faixa de pano que vestia em volta do pescoço, do cinto, do escapulário e do pano com que cobria o corpo; todas essas vestes estavam ensopadas do sangue de Nosso Senhor. Como, porém, não chegaram a um acordo a respeito da túnica inconsútil, que, rasgada em partes, não serviria mais para nada, tomaram uma tabuleta com algarismos e dados em forma de pedrinhas, com marcas, que trouxeram consigo, e jogando esses dados, tiraram à sorte a túnica. Viu-lhes, porém, um mensageiro de Nicodemos e José de Arimateia, dizendo-lhes que ao pé do Calvário havia quem quisesse comprar as vestes de Jesus; juntaram então depressa todas as vestes, e correndo para baixo, venderam-nas; assim ficaram essas relíquias com os cristãos.
Depois de crucificar os ladrões e de repartir as vestes do Senhor, juntaram os verdugos todos os instrumentos e ferramentas e, insultando e escarnecendo mais uma vez a Jesus, foram-se embora. Também os fariseus, que ainda estavam, montaram nos cavalos e passando diante de Jesus, dirigiram-lhe muitas palavras insultuosas e seguiram para a cidade. Os cem soldados romanos, com os respectivos comandantes, puseram-se também em marcha, pois veio outro destacamento, de cinquenta soldados romanos, ocupar-lhes o lugar. Esse destacamento era comandado por Abenadar, árabe de nascimento, que mais tarde, no batismo, recebeu o nome de Ctesifon. O oficial subalterno que estava com essa tropa chamava-se Cassius; era também muitas vezes encarregado por Pilatos de levar mensagens; recebeu depois o nome de Longinus. Vieram também a cavalo doze escribas e alguns anciãos do povo, entre os quais os que foram pedir mais uma vez outra inscrição para o título da cruz. Pilatos nem os tinha deixado entrar.
Cheios de raiva, andaram a cavalo em roda do lugar do suplício e expulsaram dali a Santíssima Virgem, chamando-a de mulher perdida. João levou-a para junto das outras mulheres, que estavam mais afastadas; Madalena e Marta ampararam-na nos braços. Quando, fazendo a volta da cruz, chegaram diante de Jesus, menearam a cabeça, dizendo: “Arre! Impostor! Como é que destróis o Templo e o reedificas em três dias? Queria sempre socorrer os outros e agora não se pode salvar a si mesmo. Se és o Filho de Deus, desce da cruz. Se é o rei de Israel, então desça da cruz e creremos nele. Sempre confiava em Deus, que Ele venha salvá-lo agora”. Os soldados também zombavam, dizendo: “Se és o rei dos judeus, salva-te agora”.
Quando Jesus ainda pendia desmaiado, disse Gesmas, o ladrão à esquerda: “O demônio abandonou-o”. Um soldado fincou então uma esponja embebida em vinagre sobre a ponta de uma vara e chegou-a aos lábios de Jesus, que pareceu chupar um pouco. As zombarias continuavam. O soldado disse: “Se és o rei dos judeus, salva-te”. Tudo isso se deu enquanto o destacamento anterior era substituído pelo de Abenadar.
Jesus levantou um pouco a cabeça e disse: “Meu Pai, perdoai-lhes, porque não sabem o que fazem”; depois continuou a rezar em silêncio. Então gritou Gesmas: “Se és o Cristo, salva-te a ti e a nós”. Escarneciam-no sem cessar; mas Dimas, o ladrão da direita, ficou comovido, ouvindo Jesus rezar pelos inimigos. Quando Maria ouviu a voz de seu Filho, ninguém mais pôde retê-la: penetrou no círculo do suplício; João, Salomé e Maria, filha de Cleofas, seguiram-na. O centurião não as expulsou.
Dimas, o bom ladrão, obteve pela oração de Jesus uma iluminação interior, no momento em que a Santíssima Virgem se aproximou. Reconheceu em Jesus e em Maria as pessoas que o tinham curado quando era criança, e exclamou em voz forte distinta: “O quê? É possível que insulteis àquele que reza por vós? Ele se cala, sofre com paciência, reza por vós e vós o cobris de escárnio? Ele é um profeta, é nosso rei, é o Filho de Deus”. A essa inesperada repreensão da boca de um miserável assassino, suspenso na cruz, deu-se um tumulto entre os escarnecedores; apanhando pedras, quiseram apedrejá-lo ali mesmo. Mas o centurião Abenadar não permitiu; mandou dispersá-los e restabeleceu a ordem.
Durante esse tempo a Santíssima Virgem se sentia confortada pela oração de Jesus. Dimas, porém, disse a Gesmas, que estava gritando a Jesus — “Se és o Cristo, salva-te a ti e a nós”: “Também tu não temes a Deus, apesar de sofreres o mesmo suplício que ele? Quanto a nós, é muito justo, pois recebemos o castigo de nossos crimes; este, porém, não fez mal algum. Pensa nisto, nesta última hora e converte-te de coração”. Essas palavras e outras mais disse a Gesma, pois estava todo comovido e iluminado pela graça; confessou suas faltas a Jesus e disse: “Senhor, se me condenardes, será muito justo; mas tende misericórdia de mim”. Respondeu Jesus: “Experimentarás a minha misericórdia”. Dimas recebeu, por um quarto de hora, a graça de um profundo arrependimento.
Tudo que acabo de contar agora, se deu pela maior parte ao mesmo tempo ou sucessivamente, entre as doze horas e doze e meia, pelo sol, alguns minutos depois da exaltação da cruz. Mas daí a pouco mudaram rapidamente os sentimentos nos corações da maior parte dos assistentes; pois enquanto o bom ladrão ainda estava falando, eis que se deu na natureza um fenômeno extraordinário, que encheu de pavor todos os corações.
Até pelas 10 horas, quando Pilatos pronunciou a sentença, caíra várias vezes chuva de granizo; depois, até às 12 horas, o céu estava claro e havia sol; mas depois do meio-dia, apareceu uma neblina vermelha, sombria, diante do sol. Pela hora sexta, porém, ou tal como vi pelo sol, mais ou menos às doze e meia — a maneira dos judeus de contar as horas é diferente da nossa — houve um eclipse milagroso do sol. Vi como isso se deu, mas infelizmente não pude guardá-lo na memória e não tenho palavras para o exprimir. A princípio fui transportada como que para fora da terra; vi muitas divisões no firmamento e os caminhos dos astros, que se cruzavam de modo maravilhoso. Vi a lua do outro lado da terra; vi-a voar rapidamente ou dar um salto, como um globo de fogo; depois me achei novamente em Jerusalém e vi a lua aparecer sobre o monte das Oliveiras, cheia e pálida — o sol estava velado pelo nevoeiro — e ela se moveu rapidamente do oriente, para se colocar diante do sol. No começo vi, no lado oriental do sol, uma lista escura, que tomou em pouco tempo a forma de uma montanha, cobrindo-o depois inteiramente. O disco do sol parecia cinzento escuro, rodeado de um círculo vermelho, como uma argola de ferro em brasa. O céu tornou-se escuro; as estrelas tinham um brilho vermelho. Um pavor geral apoderou-se dos homens e dos animais, o gado fugiu mugindo, as aves procuravam um esconderijo e caíam em bandos sobre as colinas em redor do Calvário; podiam-se apanhá-los com as mãos. Os zombadores começaram a calar-se; os fariseus tentavam explicar tudo como fenômeno natural, mas não conseguiram acalmar o povo e eles mesmos ficaram interiormente apavorados. Todo o mundo olhava para o céu; muitos batiam no peito, e torcendo as mãos exclamavam: “Que o seu sangue caia sobre os seus assassinos”. Muitos, de perto e de longe, caíram de joelhos, pedindo perdão a Jesus, que no meio das dores volvía os olhos para eles.
A escuridão aumentava, todos olhavam para o céu e o Calvário estava deserto; ali permaneciam apenas a Mãe de Jesus e os mais íntimos amigos; Dimas, que estivera mergulhado em profundo arrependimento, levantou com humilde esperança o rosto para o Salvador e disse: “Senhor, fazei-me entrar num lugar onde me possais salvar; lembrai-vos de mim, quando estiverdes no vosso reino”. Jesus respondeu-lhe: “Em verdade te digo: hoje estarás comigo no Paraíso”. A Mãe de Jesus, Madalena, Maria de Cleofas, Maria Heli e João estavam entre as cruzes dos ladrões, em redor da cruz de Jesus, olhando para Nosso Senhor. A Santíssima Virgem, em seu amor de mãe, suplicava interiormente a Jesus que a deixasse morrer com ele. Então olhou o Senhor com inefável ternura para a Mãe querida e, volvendo os olhos para João, disse a Maria: “Mulher, eis aí o teu filho; será mais teu filho do que se tivesse nascido de ti”. Elogiou ainda João, dizendo: “Ele teve sempre uma fé sincera e nunca se escandalizou, a não ser quando a mãe quis que fosse elevado acima dos outros”. A João, porém, disse: “Eis aí tua Mãe!”. João abraçou com muito respeito, como um filho piedoso, a Mãe de Jesus, que se tinha tornado também sua Mãe, sob a cruz do Redentor moribundo. A Santíssima Virgem ficou tão abalada de dor, pós essas solenes disposições do Filho moribundo, que, caindo nos braços das santas mulheres, perdeu os sentidos exteriormente; levaram-na para o aterro em frente à cruz, onde a sentaram por algum tempo e depois a conduziram para fora do círculo, para junto das outras amigas. Não sei se Jesus pronunciou alto todas essas palavras; percebi-as interiormente, quando, antes de morrer, entregou Maria Santíssima, como Mãe, ao Apóstolo querido, e este, como filho, à sua Mãe. Em tais contemplações se percebem muitas coisas, que não foram escritas; é pouco apenas o que pode exprimir a língua humana. O que lá é tão claro, que se julga compreender por si mesmo, não se sabe explicar com palavras. Assim não é de admirar que Jesus, dirigindo-se à Santíssima Virgem, não dissesse: “Mãe”, mas “mulher”; pois que ela ali estava na sua dignidade de mulher que devia esmagar a cabeça da serpente, naquela hora em que aquela promessa se realizava, pelo sacrifício do Filho do Homem, seu próprio filho. Não era de admirar lá que Jesus desse João por filho àquela a quem o Anjo saudava: “Ave Maria, cheia de graça”, porque o nome de João significa “graça”, pois todos são o que os respectivos nomes significam e João tornara-se filho de Deus e Jesus Cristo vivia nele. Percebia-se que Jesus, naquele momento, dava com aquelas palavras uma mãe, Maria, a todos que, como João, o recebem e, crendo nele, se tornam filhos de Deus, que não foram nascidos do sangue, nem da vontade da carne, nem da vontade do homem, mas do próprio Deus. Sentia-se que a mais pura, a mais humilde, a mais obediente de todas as mulheres, que se tornara a Mãe do Verbo feito carne, respondendo ao Anjo: “Eis aqui a serva do Senhor, faça-se em mim segundo a vossa palavra!”, agora, ouvindo do Filho moribundo que se devia tornar Mãe espiritual de outro filho, dizia, obediente e humilde, as mesmas palavras, no íntimo do coração, laceração das dores da separação: “Eis aqui a serva do Senhor, faça-se em mim segundo a vossa palavra”, aceitando assim por filhos todos os filhos de Deus, todos os irmãos de Jesus. Tudo isso parece lá tão simples e necessário, mas aqui é tão diferente, que é mais fácil senti-lo, pela graça de Deus, do que o exprimir em palavras.
Eram mais ou menos duas horas e meia, quando fui conduzida à cidade, para ver o que lá se passava. Encontrei-a cheia de pavor e consternação; as ruas em trevas, cobertas de nevoeiro; os homens erravam aqui e ali, às apalpadelas; muitos estavam prostrados por terra, nos cantos, com a cabeça coberta, batendo no peito; outros olhavam para o céu ou estavam sobre os telhados, lamentando-se. Os animais mugiam e escondiam-se, os pássaros voavam baixo e caíam. Vi que Pilatos fizera uma visita a Herodes, de manhã, assistira à humilhação de que Jesus fora alvo. “Isto não é natural”, disseram, “excederam-se nos maus tratos ao Nazareno”. Vi-os depois irem juntos ao palácio de Pilatos, atravessando o fórum; ambos estavam muito assustados, indo a passos apressados e cercados de soldados. Pilatos não ousou olhar para o lado do Gábata, o tribunal de onde tinha pronunciado a sentença contra Jesus. O fórum estava deserto; aqui e acolá alguns homens voltavam apressadamente para casa, outros passavam chorando.
Juntavam-se também alguns grupos de povo nas praças públicas. Pilatos mandou chamar os anciãos do povo ao palácio e perguntou-lhes o que significavam aquelas trevas; disse-lhes que as tomava por um sinal de desgraça iminente; o Deus dos judeus parecia estar irado porque haviam exigido à força a morte do Galileu, que certamente era profeta e rei dos judeus; enquanto a ele, Pilatos, não tinha culpa, lavara as mãos, etc.
Os judeus, porém, ficaram endurecidos, queriam explicar tudo como fenômeno comum e não se converteram. Converteu-se, contudo, muita gente, entre outros também todos os soldados que, na véspera, tinham caído por terra e se levantado, quando prenderam Jesus no monte das Oliveiras.
No entanto, juntou-se uma multidão de povo diante do palácio de Pilatos e onde de manhã tinham gritado: “Crucifica-o! Crucifica-o”, gritavam agora: “Fora o juiz injusto! Que o sangue do Crucificado caia sobre os seus assassinos!”. Pilatos viu-se obrigado a rodear-se de guardas. Zodoc, que, de manhã, quando Jesus fora conduzido ao pretório, lhe proclamara alto a inocência, agitou-se e falou com tal veemência diante do palácio, que Pilatos esteve a ponto de mandá-lo prender. Pilatos, o miserável desalmado, atribuiu toda a culpa aos judeus: disse que não tinha nada com isso, que Jesus era o rei, o profeta, o Santo dos judeus, a quem estes tinham levado à morte e nada tinha com ele, nem lhe cabia culpa; os próprios judeus é que lhe tinham exigido a morte, etc.
No Templo reinava extremo susto e terror. Estavam ocupados na imolação do cordeiro pascal, quando veio de repente a escuridão. Tudo estava em confusão e aqui e ali se ouviam gritos angustiosos. Os príncipes dos sacerdotes fizeram tudo para conservar a calma e a ordem: fizeram acender todas as lâmpadas, apesar de ser meio-dia, mas a confusão crescia cada vez mais. Vi Anás preso de susto e terror; corria de um canto a outro, para se esconder. Quando tornei a sair da cidade, ouvi as grades das janelas das casas tremerem, sem haver tempestade. A escuridão crescia cada vez mais. Na parte exterior da cidade, ao noroeste, perto do muro, onde havia muitos jardins e sepulturas, desabaram algumas entradas de sepulcros, como se houvesse um tremor de terra.
Sobre o Gólgota fizeram as trevas uma impressão terrível. A horrorosa fúria dos verdugos, os gritos e imprecações na elevação da cruz, os uivos dos ladrões ao serem amarrados ao madeiro, os insultos dos fariseus a cavalo, o revezar dos soldados, a barulhenta partida dos algozes embriagados, tudo isso diminuiria a princípio um pouco o efeito das trevas. Seguiram-se depois as repreensões do ladrão penitente, Dimas, e a raiva dos fariseus contra ele. Mas à medida que crescia a escuridão, tornavam-se mais pensativos os espectadores, afastando-se da cruz. Foi então que Jesus recomendou sua Mãe a João e que Maria foi conduzida a alguma distância do lugar do suplício. Houve um momento de solene silêncio; o povo estava assustado com as trevas; a maior parte olhava para o céu; em muitos corações se levantou a voz da consciência; muitos se arrependeram e, olhando para a cruz, bateram no peito; pouco a pouco se formaram grupos de pessoas que sentiam essas mesmas impressões. Os fariseus, ocultando o terror, ainda procuravam explicar tudo pelas leis naturais, mas baixavam cada vez mais a voz e afinal quase não ousavam mais falar; de vez em quando ainda proferiam uma palavra insolente, mas soava um tanto forçada. O disco do sol estava meio escuro, como uma montanha ao luar; estava rodeado de um anel vermelho. As estrelas tinham um brilho rubro; os pássaros caíam sobre o Calvário e nas vinhas vizinhas entre os homens, e deixavam-se pegar com a mão; os animais dos arredores mugiam e tremiam; os cavalos e jumentos dos fariseus apertavam-se uns de encontro aos outros, baixando as cabeças. O nevoeiro úmido envolvia tudo.
Em redor da cruz reinava silêncio; todos se tinham afastado, muitos fugiram para a cidade. O Salvador, naquele infinito martírio, mergulhado no mais profundo abandono, dirigindo-se ao Pai Celestial, rezava pelos inimigos, impelido pelo amor. Rezava, como durante toda a Paixão, recitando versos de salmos que nele se cumpriram. Vi figuras de Anjos em redor dele. Quando, porém, a escuridão cresceu e o terror pesava sobre todas as consciências e todo o povo estava em sombrio silêncio, ficou Jesus abandonado de todos e privado de toda a consolação. Sofria tudo quanto sofre um pobre homem, aflito e esmagado pelo absoluto abandono, sem consolação divina ou humana, quando a fé, a esperança e a caridade, privadas de iluminação e consolo, de visível assistência, ficam sozinhas no deserto da provação, vivendo de si mesmas, em um infinito martírio.
Tal sofrimento não se pode exprimir. Nessa tortura moral, Jesus nos alcançou a força de resistirmos na extrema miséria do abandono, quando se rompem todos os laços e relações com a existência e a vida terrena, com o mundo e a natureza em que vivemos, quando se desfazem também as perspectivas que esta vida em si nos abre, para outra existência; nessa provação venceremos, se unirmos nosso abandono com os merecimentos do abandono de Jesus na cruz. O Salvador conquistou-nos os méritos da perseverança, na extrema luta do absoluto abandono, e ofereceu por nós, pecadores, a miséria, a pobreza, o martírio, o abandono que sofreu na cruz, de modo que o homem, unido a Jesus no seio da Igreja, não deve mais desesperar na hora extrema, quando tudo se escurece e toda a luz e consolação acabam. Não temos mais de descer nesse deserto da noite interior, sozinhos e sem proteção. Jesus lançou no abismo desse mar de amargura o abandono exterior e interior que padeceu na cruz, e assim não mais deixou os cristãos desamparados no abandono da morte, quando desaparece toda a consolação. Não há mais para o cristão nem deserto, nem solidão, nem abandono, nem desespero, na hora da morte, no último combate; pois o Salvador, a luz, o caminho e a verdade, também andou por esse caminho tenebroso, derramando bênçãos e vencendo todos os terrores, e erigiu sua cruz também nesse deserto.
Jesus, inteiramente desamparado e abandonado, ofereceu-se como faz o amor, a si mesmo por nós, fez até do abandono um riquíssimo tesouro; pois se ofereceu, com toda sua vida, seus trabalhos, amor e sofrimento e a dolorosa fraqueza e pobreza. Fez testamento diante de Deus e ofereceu todos os seus merecimentos à Igreja e aos pecadores. Pensou em todos; naquele abandono estava com todos, até o fim dos séculos; e assim rezou também por aqueles hereges que afirmam que sendo Deus, não sentiu as dores da Paixão e não sofreu, ou sofreu menos do que um homem comum em igual martírio. Participando dessa oração e sentindo com ele as angústias, parecia-me ouvi-lo dizer, que “se devia ensinar o contrário, isto é, que Ele sentiu esse sofrimento do abandono com mais amargura do que um homem comum, porque estava intimamente unido à Divindade, porque era verdadeiro Deus e verdadeiro homem e no sentimento da humanidade, abandonado por Deus, bebeu, como Deus-Homem, até o fundo o cálice do abandono completo.”
E testemunhou por um grito a dor do abandono, dando assim a todos os aflitos, que reconhecem a Deus por Pai, a liberdade de uma queixa cheia de confiança filial. Pelas três horas, Jesus exclamou em alta voz: “Eli, Eli, lama Sabachtani!”, o que quer dizer: “Meu Deus, meu Deus, por que me abandonastes?”.
Quando esse grito de Nosso Senhor interrompeu o angustioso silêncio que reinava em redor da cruz, os escarnecedores se voltaram novamente para ele e um deles disse: “Ele está chamando Elias”, e outro: “Vamos ver se Elias vem ajudá-lo a descer da cruz”. Quando, porém, Maria ouviu a voz do Filho, nada mais pôde retê-la; voltou para junto da cruz, seguida por João, Maria, filha de Cléofas, Madalena e Salomé. Enquanto o povo tremia e gemia, vinha passando perto um grupo de cerca de trinta homens a cavalo, notáveis da Judeia e da região de Jope, que tinham vindo para a festa; e quando viram Jesus tão horrivelmente tratado e os sinais ameaçadores que se mostravam na natureza, exprimiram em alta voz o horror que sentiam, exclamando: “Ai! desta cidade abominável! Se nela não estivesse o Templo, devia-se destruí-la a fogo, por ter se tornado culpada de tanta iniquidade”.
As palavras desses distintos estrangeiros foram como um ponto de apoio para o povo, que rompeu em murmuração e altos lamentos; os que tinham os mesmos sentimentos, juntaram-se em grupos. Todos os presentes formaram dois partidos: uns murmuravam e lamentavam-se, outros proferiam insultos e imprecações. Os fariseus, porém, ficavam cada vez menos arrogantes; temendo um levante do povo, porque também o povo de Jerusalém estava sobressaltado, aconselharam-se com o centurião Abenadar; deram-se ordens para fechar a porta da cidade que dava para o Calvário, cortando assim toda a comunicação; mandaram também um mensageiro a Pilatos, para pedir 500 soldados, e também a guarda real de Herodes, para impedir uma insurreição. No entanto, conseguiu o centurião Abenadar, pela energia, restabelecer a ordem e calma, proibindo qualquer insulto a Jesus, para não irritar o povo.
Logo depois das três horas, o céu começou a esclarecer-se; a lua afastou-se gradualmente do sol, para o lado oposto àquele de que viera. O sol reapareceu, sem brilho, ainda vedado pelo nevoeiro vermelho e a lua ia descendo rapidamente para o outro lado, como se caísse. Pouco a pouco o sol readquiriu mais claridade e as estrelas desapareceram; contudo o dia ainda permanecia sombrio. À medida que reaparecia a luz, tornavam-se os inimigos escarnecedores mais arrogantes; foi nessa ocasião que disseram: “Ele está chamando Elias”. Abenadar, porém, impôs-lhes silêncio e manteve a ordem.
Quando a luz voltou, surgiu o corpo de Nosso Senhor, pálido, extenuado, como que inteiramente desfalecido, mais branco do que antes, por causa da grande perda de sangue. Jesus disse ainda, não sei se o percebi só interiormente ou se ele o disse a meia voz: “Sou espremido como as uvas, que foram pisadas aqui pela primeira vez; devo dar todo meu sangue, até sair água, e o bagaço ficar branco; mas não se fará mais vinho neste lugar”. Mais tarde, numa visão a respeito dessas palavras, vi que foi nesse lugar que Jafé pela primeira vez pisou as uvas para fazer vinho. Jesus consumia-se de sede e disse com a língua seca: “Tenho sede”. E como os amigos o olhassem com tristeza, disse-lhes: “Não me podíeis dar um gole de água?”. Queria dizer que durante a escuridão ninguém os teria impedido. João, muito incomodado, respondeu: “Senhor, esquecemo-lo mesmo”. Jesus disse ainda algumas palavras cujo sentido era: “Também os amigos mais íntimos deviam esquecer-se e não me dar a beber, para que se cumprisse a Escritura”. Mas esse esquecimento lhe doeu amargamente. Ofereceram então dinheiro aos soldados, para lhe dar um pouco de água; eles recusaram, mas um deles tomou uma esponja em forma de pera, embebeu-a em vinagre, que havia lá em um pequeno barril de casca de árvore, e ainda lhe misturou fel. Mas o centurião Abenadar, compadecido de Jesus, tomou a esponja do soldado, espremeu-a e embebeu-a de vinagre puro. Ajustou depois um lado da esponja num pedaço curto de uma haste de hissope, que servia de boquilha para chupar, fincou-a na ponta da lança e levantou-a à altura do rosto de Jesus, aproximando-lhe a esponja dos lábios. Nosso Senhor ainda disse algumas palavras de exortação ao povo; lembro-me apenas que disse: “Quando minha voz não se fizer mais ouvir, falará a boca dos mortos”; ao que alguns gritaram: “Ainda continua blasfemando”. Abenadar, porém, os mandou calar.
Tendo chegado a hora da agonia, Nosso Senhor lutou com a morte e um suor frio cobriu-lhe os membros. João estava sob a cruz e enxugou-lhe os pés com o sudário. Madalena, esmagada pela dor, encostava-se à cruz no lado de trás. A Santíssima Virgem estava entre a cruz do bom ladrão e a de Jesus, amparada pelos braços de Maria de Cléofas e Salomé, olhando para o Filho, que lutava com a morte. Então disse Jesus: “Tudo está consumado!” e, levantando a cabeça, exclamou em alta voz: “Meu Pai, em vossas mãos entrego o meu espírito”. Foi um grito doce e forte, que penetrou o Céu e a terra; depois inclinou a cabeça e expirou. Vi a alma de Jesus, em forma luminosa, entrar na terra, ao pé da cruz e descer ao Limbo. João e as santas mulheres prostraram-se com a face na terra.
O centurião Abenadar, árabe de nascimento, depois, como discípulo, batizado com o nome de Ctesifon, desde que oferecera o vinagre a Jesus, ficara a cavalo junto à elevação onde estavam erigidas as cruzes, de modo que o cavalo tinha as patas dianteiras mais no alto. Profundamente abalado, entregue a sérias reflexões, contemplava incessantemente o semblante de Nosso Senhor, coroado de espinhos. O cavalo baixara assustado a cabeça e Abenadar, cujo orgulho estava domado, não puxava mais as rédeas. Nesse momento pronunciou o Senhor as últimas palavras em voz alta e forte e morreu dando um grito, que penetrou o Céu, a terra e o inferno. A terra tremeu e o rochedo fendeu-se, deixando uma larga abertura entre a cruz do Senhor e a do ladrão à esquerda. O testemunho que Deus deu de seu Filho, abalou com susto e terror a natureza enlutada. Estava consumado! A alma de Nosso Senhor separou-se do corpo e ao grito de morte do Redentor moribundo estremeceram todos que o ouviram, junto com a terra que, tremendo, reconheceu o Salvador; os corações amigos, porém, foram transpassados pela espada da dor. Foi então que a graça desceu à alma de Abenadar; estremeceu emocionado, cederam-lhe as paixões e o seu coração orgulhoso e duro, fendeu-se como o rochedo do Calvário. Lançou longe de si a lança, bateu no peito com força e exclamou alto, com a voz de um homem novo: “Louvado seja Deus, Todo-Poderoso, o Deus de Abraão e Jacó! Este era um homem justo; em verdade, ele é o Filho de Deus!”. E muitos dos soldados, tocados pela palavra do centurião, fizeram o mesmo. Abenadar, tornado novo homem, salvo pela graça e tendo rendido publicamente homenagem ao Filho de Deus, não quis ficar mais tempo servo dos inimigos de Cristo. Dirigiu-se a cavalo ao oficial subalterno, Cássio, também chamado Longinus, apeou-se, apanhou a lança e a ele entregou-a; disse algumas palavras aos soldados e a Cássio, que então montou o cavalo e tomou o comando. Abenadar desceu do Calvário e, atravessando o vale de Gihon, dirigiu-se às cavernas do vale de Hinom, onde estavam escondidos os discípulos; anunciou-lhes a morte do Senhor e voltou de lá à cidade, ao palácio de Pilatos.
Grande espanto apoderou-se dos assistentes, ante o grito de morte de Jesus, quando a terra tremeu e o rochedo do Calvário se fendeu. Esse terror fez-se sentir em toda a natureza; pois rasgou-se o véu do Templo, muitos mortos saíram das sepulturas, desabaram algumas paredes do Templo, ruíram muitos edifícios e desmoronaram montes em muitas regiões da terra. Abenadar deu testemunho em alta voz, muitos soldados testemunharam com ele, grande parte do povo presente e também alguns dos fariseus, chegados no fim, se converteram-se. Muitos bateram no peito e, descendo do monte, voltaram chorando pelo vale para casa; outros rasgaram as vestes e lançaram pó sobre a cabeça. Todo o mundo estava cheio de medo e terror.
João levantou-se e algumas das santas mulheres, que até então tinham ficado afastadas, aproximaram-se da cruz; levantaram a Mãe de Jesus e as amigas, conduziram-nas a alguma distância da cruz, para as confortar.
Quando Jesus, cheio de amor, senhor de toda a vida, pagou pelos pecadores a dolorosa dívida da morte; quando entregou, como homem, a alma a Deus, seu Pai, e abandonou o corpo, tomou esse santo vaso esmagado a fria e pálida cor da morte; o corpo tremeu-lhe convulsivamente nas últimas dores e tornou-se lívido, e os vestígios do sangue derramado das chagas ficaram mais escuros e distintos. O Seu rosto alongou-se, as faces encolheram-se, o nariz ficou mais delgado e pontiagudo, o queixo caiu, os olhos, cheios de sangue e fechados, abriram-se, meio envidraçados. O Senhor levantou pela última vez e por poucos momentos a cabeça, coroada de espinhos, e deixou-a depois cair sobre o peito, sob o peso dos sofrimentos. Os seus lábios lívidos e contraídos entreabriram-se, deixando ver a língua ensanguentada. As mãos, antes fechadas sobre a cabeça dos cravos, abriram-se; estenderam-se os seus braços, as costas endureceram-se ao longo da cruz e todo o peso do santo corpo desceu sobre os pés. Os seus joelhos curvaram-se, tornando para um lado, e os pés viraram-se um pouco em redor do prego que os trespassara.
Então se esticaram as mãos da Mãe Dolorosa, a sua vista escureceu-se, palidez de morte cobriu-lhe o rosto, os ouvidos deixaram de escutar, os pés vacilaram e ela caiu por terra; também Madalena, João e os outros se prostraram, com a cabeça velada, entregues à dor. Quando ergueram a mais amorosa, a mais desolada das mães, dirigindo os olhos à cruz, ela viu o corpo do Filho adorado, concebido na virgindade, por obra e graça do Espírito Santo, carne de sua carne, ossos de seus ossos, coração de seu coração, vaso sagrado formado no seu seio pela virtude divina, agora privado de toda a beleza e formosura, separado da alma santíssima, entregue às leis da natureza que Ele próprio criara e de que os homens tinham abusado pelo pecado, desfigurando-a; viu o corpo do Filho Unigênito esmagado, maltratado, desfigurado, morto pelas mãos daqueles que viera salvar e vivificar. Ai! O vaso de toda beleza e verdade, de todo amor, pendia da cruz, entre dois assassinos, vazio, rejeitado, desprezado, insultado, semelhante a um leproso. Quem pode compreender toda a dor da Mãe de Jesus, rainha de todos os mártires?
A luz do sol ainda era sombria e nebulosa. O tremor de terra foi acompanhado de calor sufocante; mas seguiu-se-lhe depois um frio sensível. O corpo de Nosso Senhor morto, na cruz, causava um sentimento de respeito e estranha comoção. Os ladrões pendiam em horríveis contorções, como embriagados. Ambos estavam, no fim, calados; Dimas rezava. Era pouco depois das três horas, quando Jesus expirou. Passado o primeiro terror causado pelo tremor de terra, alguns dos fariseus recobraram a anterior arrogância. Aproximando-se da fenda no rochedo do Calvário, jogaram-lhe pedras, e atando várias cordas, amarraram uma pedra, fizeram-na entrar na fenda, para medir-lhe a profundidade; quando, porém, não tocaram no fundo, tornaram-se mais pensativos. Também se sentiam inquietos com os lamentos do povo, que batia no peito; e por isso, montando a cavalo, retiraram-se; alguns se sentiam mudados interiormente. O povo também se retirou em pouco tempo, indo pelo vale para a cidade, cheio de medo e terror. Muitos se tinham convertido. Uma parte dos 50 soldados romanos foi reforçar a guarda da porta, até a chegada dos 500, requeridos a Pilatos. A porta tinha sido fechada; alguns soldados ocuparam outros pontos da vizinhança, para impedir ajuntamento e tumulto. Cássio (Longino) e cerca de cinco soldados ficaram no lugar do suplício. Os parentes de Jesus estavam em redor da cruz ou sentados em frente, chorando. Algumas santas mulheres tinham voltado à cidade. Silêncio e tristeza reinavam em volta do lenho sagrado. De longe, no vale e nas alturas afastadas, se via de vez em quando um ou outro discípulo, olhando com curiosidade e receio para a cruz, mas retirando-se timidamente, ao aproximar-se alguém.
Não deixe também de conferir as meditações de Bento XVI para a Via Sacra.
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Descubra como rezar o Relógio da Paixão e meditar as 24 horas da Paixão de Jesus com os escritos da Beata Anna Catarina Emmerich.
Na Quinta e na Sexta-feira Santas, os acontecimentos da Paixão de Cristo se desenrolam como um drama sagrado, hora após hora, marcado por dor, entrega e amor redentor. O Relógio da Paixão é uma devoção que nos convida a acompanhar Nosso Senhor nesse caminho, distribuindo os principais episódios de sua Paixão ao longo das 24 horas do dia. Cada hora é uma janela aberta para o mistério do sofrimento de Cristo, uma oportunidade de vigiar com Ele, como pediu no Horto das Oliveiras: “Ficai aqui e vigiai comigo.” 1
Há diversas formas de viver essa prática, mas neste artigo seguimos a versão baseada nas visões da beata Anna Catarina Emmerich, mística alemã do século XIX, reunidas na obra Vida e Paixão do Cordeiro de Deus, publicada pela Minha Biblioteca Católica. Trata-se de um guia que traz um modo concreto de meditar a Paixão em clima de oração e nos insere, espiritualmente, nas cenas mais comoventes da história da Salvação.
Conheça a história e as celebrações da Semana Santa.
O Relógio da Paixão é uma forma de oração meditativa que distribui os sofrimentos de Jesus nas 24 horas que compreendem a Quinta e a Sexta-feira Santas — desde a Última Ceia até o Seu sepultamento. A cada hora, é proposto um momento específico da Paixão, para que o fiel possa se unir, mesmo que brevemente, à dor do Senhor com compaixão, recolhimento e amor.
Essa prática pode ser vivida de forma livre ou com o apoio de textos meditativos, como os das visões da beata Emmerich. Não se trata de uma oração rígida ou obrigatória, mas de um convite à intimidade com Cristo em sua hora mais solene.
Desde os primeiros séculos do cristianismo, os fiéis sentiram a necessidade de acompanhar, com espírito de oração, os sofrimentos de Jesus durante sua Paixão. Os Evangelhos nos mostram como tudo se deu no tempo: havia uma hora para a prisão, uma hora para o julgamento, uma hora para a crucifixão, uma hora para a morte.
Ao longo da história, essa percepção se transformou em espiritualidade concreta. Durante a Semana Santa, especialmente nas horas santas e nas meditações das Sete Palavras, a Igreja estimula a contemplação dos momentos da Paixão. O Relógio da Paixão, como conhecemos hoje, é uma expressão mais sistematizada dessa tradição, que pode ser vivido de modo livre ou com base em textos específicos, como os da beata Emmerich.
Seguindo a forma estruturada proposta pela beata Anna Catarina Emmerich, a devoção ganha densidade mística e sensibilidade interior, ajudando-nos a vigiar com o Senhor a cada hora do dia.
O Relógio da Paixão divide o tempo em 24 momentos, começando às 18h da Quinta-feira Santa — hora da Última Ceia — e terminando às 17h da Sexta-feira Santa — com o sepultamento de Jesus.
Cada hora contempla um episódio específico da Paixão, conforme as visões da beata Emmerich. A proposta é que, ao longo do dia, o fiel dedique alguns minutos para meditar no que aconteceu com Jesus naquela hora específica. Esse exercício transforma o tempo comum em tempo sagrado.
Alguns exemplos de momentos contemplados:
Cada hora é uma ocasião de profunda meditação e de presença amorosa. Mesmo que a pessoa não consiga rezar todas as 24 horas, pode escolher algumas para acompanhar Jesus, oferecendo-lhe consolo e reparação.
Sim. Embora a devoção tenha seu ápice na Semana Santa, especialmente na sextas-feira, ela pode ser vivida ao longo do ano, em momentos de recolhimento ou como prática pessoal regular. Em particular, pode-se escolher uma hora fixa por semana para meditar sempre o mesmo episódio, cultivando assim uma fidelidade constante na meditação da Paixão do Senhor.
Para viver bem essa prática, sugerimos alguns passos simples.
Escolha um ambiente calmo e silencioso, onde você possa retornar ao longo do dia. Pode ser um pequeno oratório, um canto reservado da casa ou mesmo a capela de uma igreja. O importante é que esse espaço ajude a manter o espírito de recolhimento e disponibilidade para acompanhar Jesus, hora a hora.
Durante cada hora, procure fazer silêncio interior. Mesmo sem ler nada, ofereça a sua presença a Jesus com amor e compaixão. Basta imaginar o que Ele sofreu naquele momento e permanecer unido a Ele, em espírito de adoração. Essa escuta silenciosa do coração é um dos modos mais profundos de oração.
Conheça também o Regina Caeli, uma oração para o Tempo Pascal.
Viver o Relógio da Paixão é entrar, com o coração aberto, no mistério mais profundo da fé cristã: a entrega de Jesus por amor a nós. Ao meditar cada hora da Paixão, oferecemos ao Senhor não apenas nossa atenção, mas nossa presença. É como se, a cada momento, disséssemos: “Senhor, não quero deixar-Te sozinho”.
Essa prática nos ensina a permanecer — mesmo quando tudo parece escuro, mesmo quando a cruz pesa. Ela nos educa na fidelidade silenciosa, na compaixão concreta, no amor perseverante. A alma que caminha com Jesus durante a sua Paixão começa, aos poucos, a moldar-se à forma do Crucificado, aprendendo com Ele a amar até o fim.
Em suas visões, a beata Anna Catarina Emmerich descreve como Jesus se alegrava com a companhia espiritual de almas que O acompanhavam em Seu sofrimento. Essa experiência resume a essência da devoção: consolar Jesus com nossa oração fiel.
Jesus, imagem viva da dor, foi estendido pelos carrascos sobre a cruz; ele próprio se sentou sobre ela e eles brutamente o deitaram de costas. Colocaram-lhe a mão direita sobre o orifício do prego, no braço direito da cruz, e aí lhe amarraram o braço. Um deles se ajoelhou sobre o Seu santo peito, enquanto outro lhe segurava a mão, que estava se contraindo, e um terceiro colocou o cravo grosso e comprido, com a ponta limada, sobre essa mão cheia de bênção, e cravou-a nela, com violentas pancadas de um martelo de ferro. Doces e claros gemidos ouviram-se da boca do Senhor; o sangue sagrado salpicou os braços dos carrascos; rasgaram-lhe os tendões da mão, os quais foram arrastados, com o prego triangular, para dentro do estreito orifício.
Contei as marteladas, mas esqueci, na minha dor, esse número. A Santíssima Virgem gemia baixinho e parecia estar sem sentidos exteriormente; Madalena estava desvairada.
As brocas eram grandes peças de ferro, da forma de um T; não havia nelas nada de madeira. Também os pesados martelos eram, como os cabos, de ferro, e todos de uma peça inteiriça; tinham quase a forma dos martelos de pau que os marceneiros usam entre nós, trabalhando com formão. Os cravos, cujo aspecto fizera tremer Jesus, eram de tal tamanho que seguros pelo punho, excediam em baixo e em cima cerca de uma polegada. Tinham cabeça chata, da largura de uma moeda de cobre, com uma elevação cônica no meio. Tinham três gumes; na parte superior tinham a grossura de um polegar e na parte inferior a de um dedo pequeno; a ponta fora aguçada com uma lima; cravados na cruz, vi-lhes a ponta sair um pouco do outro lado dos braços da cruz.
Depois de terem pregado a mão direita de Nosso Senhor, viram os crucificadores que a mão esquerda, que tinham também amarrado ao braço da cruz, não chegava até o orifício do cravo, que tinham perfurado a duas polegadas distantes das pontas dos dedos. Por isso ataram uma corda ao braço esquerdo do Salvador e, apoiando os pés sobre a cruz, puxaram a toda força, até que a mão chegou ao orifício do cravo. Jesus dava gemidos tocantes; pois deslocaram-lhe inteiramente os braços das articulações; os ombros, violentamente distendidos, formavam grandes cavidades axilares, nos cotovelos se viam as junturas dos ossos. O peito levantou-se-lhe e as pernas encolheram-se sobre o corpo. Os algozes ajoelharam-se sobre os Seus braços e o peito, amarraram-lhe fortemente os braços e cravaram-lhe então cruelmente o segundo prego na mão esquerda; jorrou alto o sangue e ouviram-se os agudos gemidos de Jesus, por entre as pancadas do pesado martelo. Os braços do Senhor estavam tão distendidos, que formavam uma linha reta e não cobriam mais os braços da cruz, que subiam em linha oblíqua; ficava um espaço livre entre esses e as axilas do Divino Mártir.
A Santíssima Virgem sentiu todas essas torturas com Jesus; estava de uma palidez cadavérica e fracos gemidos saíam-lhe da boca. Os fariseus dirigiram insultos e deboches para o lado onde ela estava; por isso os amigos conduziram-na para junto das outras santas mulheres, que estavam um pouco mais afastadas do lugar do suplício. Madalena estava como louca; feria o rosto de modo que tinha as faces e olhos cheios de sangue.
Havia na cruz, embaixo, talvez a um terço da respectiva altura, uma peça de madeira, fixa por um prego muito grande, destinada a suportar os pés de Jesus, a fim de que ficasse mais em pé do que suspenso; de outro modo as mãos teriam sido rasgadas pelo peso do corpo e os pés não poderiam ser pregados sem quebrá-los. Nessa peça de madeira tinham perfurado o orifício para o cravo. Tinham também feito uma cavidade para os calcanhares, como também havia outras, em vários pontos da cruz, para que o Mártir pudesse ficar suspenso mais tempo e o peso do corpo não lhe rasgasse as mãos, fazendo-o cair.
Todo o corpo de nosso Salvador tinha-se contraído para o alto da cruz, pela violenta extensão dos braços, e os Seus joelhos tinham-se dobrado. Os algozes lançaram-se então sobre esses e, por meio de cordas, amarraram-nos ao tronco da cruz; mas pela posição errada dos orifícios dos cravos, os pés ficavam longe da peça de madeira que os devia suportar. Então começaram os algozes a praguejar e insultar. Alguns julgavam que se deviam furar outros orifícios para os pregos das mãos; pois mudar o suporte dos pés era difícil. Outros fizeram horrível troça de Jesus: “Ele não quer estender-se, disseram, mas nós lhe ajudaremos”. Atando cordas à perna direita, puxaram-na com horrível violência, até o pé tocar no suporte, e amarraram-na à cruz. Foi uma deslocação tão horrível, que se ouvia estalar o peito de Jesus, que gemia alto: “Ó meu Deus! Meu Deus!”.
Tinham-lhe amarrado também o peito e os braços, para os pregos não rasgarem as mãos; o Seu ventre encolheu-se inteiramente, as costelas pareciam a ponto de destacar-se do esterno. Foi uma tortura horrorosa.
Amarraram depois o pé esquerdo com a mesma brutal violência, colocando-o sobre o pé direito, e como os pés não repousavam com bastante firmeza sobre o suporte, para serem pregados juntos, perfuraram primeiro o peito do pé esquerdo com um prego mais fino e de cabeça mais chata do que os cravos, como se fura a sola. Feito isso, tomaram o cravo mais comprido que o das mãos, o mais horrível de todos e, passando-o brutalmente pelo furo feito no pé esquerdo, atravessaram-lhe a marteladas o direito, cujos ossos estalavam, até o cravo entrar no orifício do suporte e, através desse, no tronco da cruz. Olhando de lado a cruz, vi como o prego atravessou os dois pés.
Essa tortura era a mais dolorosa de todas, por causa da distensão de todo o corpo. Contei 36 golpes de martelo, no meio dos gemidos claros e penetrantes do pobre Salvador; as vozes em redor, que proferiam insultos e imprecações, pareciam-me sombrias e sinistras.
A Santíssima Virgem tinha voltado ao lugar do suplício; a deslocação do corpo do Filho adorado, o som das marteladas e os gemidos de Jesus, causaram-lhe tão veemente dor e compaixão, que caiu novamente nos braços das companheiras, o que provocou um ajuntamento de povo. Então acorreram alguns fariseus a cavalo, insultando-as, e os amigos afastaram-na outra vez a alguma distância.
Durante a crucifixão e a elevação da cruz, que se lhe seguiu, se ouviam, especialmente entre as mulheres, gritos de compaixão, como: “Por que a terra não traga esses miseráveis? Por que não cai fogo do céu, para os devorar?”. A essas manifestações de amor respondiam os carrascos com insultos e escárnio. Os gemidos que a dor arrancava a Jesus, misturavam-se com contínua oração; recitava trechos dos salmos e dos profetas, cujas predições nessa hora cumpria; em todo o caminho da cruz, até à morte, não cessava de rezar assim e de cumprir as profecias. Ouvi e rezei com ele todas essas passagens e às vezes me lembro delas, quando rezo os salmos; mas fiquei tão acabrunhada com o martírio de meu Esposo celeste, que não sei mais juntá-las.
Durante esse horrível suplício, vi Anjos chorando aparecerem acima de Jesus.
O comandante da guarda romana fizera pregar no alto da cruz a tábua, com o título que Pilatos escrevera. Os fariseus estavam indignados porque os romanos se riam alto do título “Rei dos judeus”. Por isso voltaram alguns fariseus à cidade, depois de ter tomado medida para uma outra inscrição, para pedir a Pilatos novamente outro título.
Enquanto Jesus era pregado à cruz, estavam ainda alguns homens a trabalhar na escavação em que a cruz devia ser colocada; pois era estreita a cova e a rocha muito dura.
Alguns dos algozes, em vez de dar a Jesus para beber o vinho aromático trazido pelas santas mulheres, beberam-no eles mesmos e ficaram embriagados; queimava-lhes as entranhas e causava-lhes tanta dor nos intestinos que ficaram desvairados; insultavam a Jesus, chamando-o de feiticeiro, e enfureciam-se à vista da paciência do Divino Mestre; desceram várias vezes o Calvário, a correr, para beber leite de jumenta. Havia lá perto algumas mulheres, que pertenciam a um acampamento de peregrinos vindos para a festa da Páscoa, as quais tinham jumentas, cujo leite vendiam.
Pela posição do sol era cerca de doze horas e um quarto, quando Jesus foi crucificado. No momento em que elevaram a cruz, ouviu-se do Templo o soar de muitas trombetas: era a hora em que imolavam o cordeiro pascal.
Depois de terem pregado Nosso Senhor à cruz, ataram cordas na parte superior da mesma, por meio de argolas, lançaram as cordas sobre o cavalete antes erigido no lado oposto e puxaram a cruz pelas cordas, de modo que a parte superior se lhe ergueu; alguns dirigiram-se com paus munidos de ganchos, que fincaram no tronco e fizeram o pé da cruz entrar na cova. Quando o madeiro chegou à posição vertical, entrou na escavação com todo o peso e tocou no fundo com um terrível choque. A cruz tremeu do abalo e Jesus soltou um grito de dor; pelo peso vertical desceu-lhe o corpo, as Suas feridas alargaram-se, o sangue corria mais abundantemente e os ossos deslocados entrechocaram-se. Os carrascos ainda sacudiram a cruz, para a pôr mais firme, e fincaram cinco cunhas na cova, em redor da cruz: uma na frente, uma no lado direito, outra à esquerda e duas atrás, onde o madeiro estava um pouco arredondado.
Foi uma impressão terrível e ao mesmo tempo comovedora, quando, sob os gritos insultuosos dos carrascos e dos fariseus, como também de muitos homens do povo, mais afastados, a cruz se elevou, balançando, e entrou estremecendo na escavação; ouviram-se também vozes piedosas de compaixão, as vozes mais santas da terra: a da Mãe Santíssima, de João, das amigas e de todos que tinham um coração puro, saudaram com expressão dolorosa o Verbo eterno, feito carne e elevado sobre a cruz. Estenderam as mãos ansiosamente como para o segurar, quando o Santo dos santos, o Esposo de todas as almas, pregado vivo na cruz, foi elevado pelas mãos dos pecadores enfurecidos. Quando, porém, o madeiro erguido com estrondo entrou na respectiva cova, houve um momento de silêncio solene; todo o mundo parecia experimentar uma sensação nova, nunca até então sentida. O próprio inferno sentiu assustado o choque do lenho sobre a rocha e levantou-se contra ele, redobrando nos seus instrumentos humanos o seu furor e os insultos. Nas almas do purgatório e do limbo, porém, causou alegria e esperança: soava-lhes como o bater do triunfador às portas da Redenção. A santa Cruz estava pela primeira vez plantada no meio da terra, como aquela árvore da vida no Paraíso, e das chagas dilatadas do Cristo corriam quatro rios santos sobre a terra, para expiar a maldição que pesava sobre ela e para fertilizar e a tornar um paraíso do novo Adão.
Quando nosso Salvador foi elevado na cruz e os gritos de insulto foram interrompidos por alguns minutos de silencioso espanto, ouvia-se do Templo o som de muitas trombetas, que anunciavam o começo da imolação do cordeiro pascal, do símbolo, interrompendo de um modo solene e significativo os gritos de furor e de dor, em redor do verdadeiro Cordeiro de Deus, imolado na cruz. Muitos corações endurecidos foram abalados e pensaram nas palavras do Precursor, João Batista: “Eis aí o Cordeiro de Deus, que tomou sobre si os pecados do mundo”.
O lugar onde fora plantada a cruz estava elevado cerca de dois pés acima do terreno em redor. Quando a cruz ainda se achava fora da cova, estavam os pés de Jesus à altura de um homem, mas depois de introduzida na respectiva escavação, podiam os amigos chegar aos pés do Mestre, para os abraçar e beijar. Havia um caminho para essa eminência. O rosto de Jesus estava virado para nordeste.
Os carrascos juntaram as vestes de Jesus no lugar onde tinham jazido os ladrões e fizeram delas vários lotes, para tirar à sorte. O manto era mais largo embaixo do que em cima e tinha várias pregas; sobre o peito estava dobrado e formava assim bolsos. Rasgaram-no em várias tiras, como também a longa veste branca, aberta no peito, onde havia correias para atá-la, e distribuíram-nas pelos lotes; assim fizeram também várias partes da faixa de pano que vestia em volta do pescoço, do cinto, do escapulário e do pano com que cobria o corpo; todas essas vestes estavam ensopadas do sangue de Nosso Senhor. Como, porém, não chegaram a um acordo a respeito da túnica inconsútil, que, rasgada em partes, não serviria mais para nada, tomaram uma tabuleta com algarismos e dados em forma de pedrinhas, com marcas, que trouxeram consigo, e jogando esses dados, tiraram à sorte a túnica. Viu-lhes, porém, um mensageiro de Nicodemos e José de Arimateia, dizendo-lhes que ao pé do Calvário havia quem quisesse comprar as vestes de Jesus; juntaram então depressa todas as vestes, e correndo para baixo, venderam-nas; assim ficaram essas relíquias com os cristãos.
Depois de crucificar os ladrões e de repartir as vestes do Senhor, juntaram os verdugos todos os instrumentos e ferramentas e, insultando e escarnecendo mais uma vez a Jesus, foram-se embora. Também os fariseus, que ainda estavam, montaram nos cavalos e passando diante de Jesus, dirigiram-lhe muitas palavras insultuosas e seguiram para a cidade. Os cem soldados romanos, com os respectivos comandantes, puseram-se também em marcha, pois veio outro destacamento, de cinquenta soldados romanos, ocupar-lhes o lugar. Esse destacamento era comandado por Abenadar, árabe de nascimento, que mais tarde, no batismo, recebeu o nome de Ctesifon. O oficial subalterno que estava com essa tropa chamava-se Cassius; era também muitas vezes encarregado por Pilatos de levar mensagens; recebeu depois o nome de Longinus. Vieram também a cavalo doze escribas e alguns anciãos do povo, entre os quais os que foram pedir mais uma vez outra inscrição para o título da cruz. Pilatos nem os tinha deixado entrar.
Cheios de raiva, andaram a cavalo em roda do lugar do suplício e expulsaram dali a Santíssima Virgem, chamando-a de mulher perdida. João levou-a para junto das outras mulheres, que estavam mais afastadas; Madalena e Marta ampararam-na nos braços. Quando, fazendo a volta da cruz, chegaram diante de Jesus, menearam a cabeça, dizendo: “Arre! Impostor! Como é que destróis o Templo e o reedificas em três dias? Queria sempre socorrer os outros e agora não se pode salvar a si mesmo. Se és o Filho de Deus, desce da cruz. Se é o rei de Israel, então desça da cruz e creremos nele. Sempre confiava em Deus, que Ele venha salvá-lo agora”. Os soldados também zombavam, dizendo: “Se és o rei dos judeus, salva-te agora”.
Quando Jesus ainda pendia desmaiado, disse Gesmas, o ladrão à esquerda: “O demônio abandonou-o”. Um soldado fincou então uma esponja embebida em vinagre sobre a ponta de uma vara e chegou-a aos lábios de Jesus, que pareceu chupar um pouco. As zombarias continuavam. O soldado disse: “Se és o rei dos judeus, salva-te”. Tudo isso se deu enquanto o destacamento anterior era substituído pelo de Abenadar.
Jesus levantou um pouco a cabeça e disse: “Meu Pai, perdoai-lhes, porque não sabem o que fazem”; depois continuou a rezar em silêncio. Então gritou Gesmas: “Se és o Cristo, salva-te a ti e a nós”. Escarneciam-no sem cessar; mas Dimas, o ladrão da direita, ficou comovido, ouvindo Jesus rezar pelos inimigos. Quando Maria ouviu a voz de seu Filho, ninguém mais pôde retê-la: penetrou no círculo do suplício; João, Salomé e Maria, filha de Cleofas, seguiram-na. O centurião não as expulsou.
Dimas, o bom ladrão, obteve pela oração de Jesus uma iluminação interior, no momento em que a Santíssima Virgem se aproximou. Reconheceu em Jesus e em Maria as pessoas que o tinham curado quando era criança, e exclamou em voz forte distinta: “O quê? É possível que insulteis àquele que reza por vós? Ele se cala, sofre com paciência, reza por vós e vós o cobris de escárnio? Ele é um profeta, é nosso rei, é o Filho de Deus”. A essa inesperada repreensão da boca de um miserável assassino, suspenso na cruz, deu-se um tumulto entre os escarnecedores; apanhando pedras, quiseram apedrejá-lo ali mesmo. Mas o centurião Abenadar não permitiu; mandou dispersá-los e restabeleceu a ordem.
Durante esse tempo a Santíssima Virgem se sentia confortada pela oração de Jesus. Dimas, porém, disse a Gesmas, que estava gritando a Jesus — “Se és o Cristo, salva-te a ti e a nós”: “Também tu não temes a Deus, apesar de sofreres o mesmo suplício que ele? Quanto a nós, é muito justo, pois recebemos o castigo de nossos crimes; este, porém, não fez mal algum. Pensa nisto, nesta última hora e converte-te de coração”. Essas palavras e outras mais disse a Gesma, pois estava todo comovido e iluminado pela graça; confessou suas faltas a Jesus e disse: “Senhor, se me condenardes, será muito justo; mas tende misericórdia de mim”. Respondeu Jesus: “Experimentarás a minha misericórdia”. Dimas recebeu, por um quarto de hora, a graça de um profundo arrependimento.
Tudo que acabo de contar agora, se deu pela maior parte ao mesmo tempo ou sucessivamente, entre as doze horas e doze e meia, pelo sol, alguns minutos depois da exaltação da cruz. Mas daí a pouco mudaram rapidamente os sentimentos nos corações da maior parte dos assistentes; pois enquanto o bom ladrão ainda estava falando, eis que se deu na natureza um fenômeno extraordinário, que encheu de pavor todos os corações.
Até pelas 10 horas, quando Pilatos pronunciou a sentença, caíra várias vezes chuva de granizo; depois, até às 12 horas, o céu estava claro e havia sol; mas depois do meio-dia, apareceu uma neblina vermelha, sombria, diante do sol. Pela hora sexta, porém, ou tal como vi pelo sol, mais ou menos às doze e meia — a maneira dos judeus de contar as horas é diferente da nossa — houve um eclipse milagroso do sol. Vi como isso se deu, mas infelizmente não pude guardá-lo na memória e não tenho palavras para o exprimir. A princípio fui transportada como que para fora da terra; vi muitas divisões no firmamento e os caminhos dos astros, que se cruzavam de modo maravilhoso. Vi a lua do outro lado da terra; vi-a voar rapidamente ou dar um salto, como um globo de fogo; depois me achei novamente em Jerusalém e vi a lua aparecer sobre o monte das Oliveiras, cheia e pálida — o sol estava velado pelo nevoeiro — e ela se moveu rapidamente do oriente, para se colocar diante do sol. No começo vi, no lado oriental do sol, uma lista escura, que tomou em pouco tempo a forma de uma montanha, cobrindo-o depois inteiramente. O disco do sol parecia cinzento escuro, rodeado de um círculo vermelho, como uma argola de ferro em brasa. O céu tornou-se escuro; as estrelas tinham um brilho vermelho. Um pavor geral apoderou-se dos homens e dos animais, o gado fugiu mugindo, as aves procuravam um esconderijo e caíam em bandos sobre as colinas em redor do Calvário; podiam-se apanhá-los com as mãos. Os zombadores começaram a calar-se; os fariseus tentavam explicar tudo como fenômeno natural, mas não conseguiram acalmar o povo e eles mesmos ficaram interiormente apavorados. Todo o mundo olhava para o céu; muitos batiam no peito, e torcendo as mãos exclamavam: “Que o seu sangue caia sobre os seus assassinos”. Muitos, de perto e de longe, caíram de joelhos, pedindo perdão a Jesus, que no meio das dores volvía os olhos para eles.
A escuridão aumentava, todos olhavam para o céu e o Calvário estava deserto; ali permaneciam apenas a Mãe de Jesus e os mais íntimos amigos; Dimas, que estivera mergulhado em profundo arrependimento, levantou com humilde esperança o rosto para o Salvador e disse: “Senhor, fazei-me entrar num lugar onde me possais salvar; lembrai-vos de mim, quando estiverdes no vosso reino”. Jesus respondeu-lhe: “Em verdade te digo: hoje estarás comigo no Paraíso”. A Mãe de Jesus, Madalena, Maria de Cleofas, Maria Heli e João estavam entre as cruzes dos ladrões, em redor da cruz de Jesus, olhando para Nosso Senhor. A Santíssima Virgem, em seu amor de mãe, suplicava interiormente a Jesus que a deixasse morrer com ele. Então olhou o Senhor com inefável ternura para a Mãe querida e, volvendo os olhos para João, disse a Maria: “Mulher, eis aí o teu filho; será mais teu filho do que se tivesse nascido de ti”. Elogiou ainda João, dizendo: “Ele teve sempre uma fé sincera e nunca se escandalizou, a não ser quando a mãe quis que fosse elevado acima dos outros”. A João, porém, disse: “Eis aí tua Mãe!”. João abraçou com muito respeito, como um filho piedoso, a Mãe de Jesus, que se tinha tornado também sua Mãe, sob a cruz do Redentor moribundo. A Santíssima Virgem ficou tão abalada de dor, pós essas solenes disposições do Filho moribundo, que, caindo nos braços das santas mulheres, perdeu os sentidos exteriormente; levaram-na para o aterro em frente à cruz, onde a sentaram por algum tempo e depois a conduziram para fora do círculo, para junto das outras amigas. Não sei se Jesus pronunciou alto todas essas palavras; percebi-as interiormente, quando, antes de morrer, entregou Maria Santíssima, como Mãe, ao Apóstolo querido, e este, como filho, à sua Mãe. Em tais contemplações se percebem muitas coisas, que não foram escritas; é pouco apenas o que pode exprimir a língua humana. O que lá é tão claro, que se julga compreender por si mesmo, não se sabe explicar com palavras. Assim não é de admirar que Jesus, dirigindo-se à Santíssima Virgem, não dissesse: “Mãe”, mas “mulher”; pois que ela ali estava na sua dignidade de mulher que devia esmagar a cabeça da serpente, naquela hora em que aquela promessa se realizava, pelo sacrifício do Filho do Homem, seu próprio filho. Não era de admirar lá que Jesus desse João por filho àquela a quem o Anjo saudava: “Ave Maria, cheia de graça”, porque o nome de João significa “graça”, pois todos são o que os respectivos nomes significam e João tornara-se filho de Deus e Jesus Cristo vivia nele. Percebia-se que Jesus, naquele momento, dava com aquelas palavras uma mãe, Maria, a todos que, como João, o recebem e, crendo nele, se tornam filhos de Deus, que não foram nascidos do sangue, nem da vontade da carne, nem da vontade do homem, mas do próprio Deus. Sentia-se que a mais pura, a mais humilde, a mais obediente de todas as mulheres, que se tornara a Mãe do Verbo feito carne, respondendo ao Anjo: “Eis aqui a serva do Senhor, faça-se em mim segundo a vossa palavra!”, agora, ouvindo do Filho moribundo que se devia tornar Mãe espiritual de outro filho, dizia, obediente e humilde, as mesmas palavras, no íntimo do coração, laceração das dores da separação: “Eis aqui a serva do Senhor, faça-se em mim segundo a vossa palavra”, aceitando assim por filhos todos os filhos de Deus, todos os irmãos de Jesus. Tudo isso parece lá tão simples e necessário, mas aqui é tão diferente, que é mais fácil senti-lo, pela graça de Deus, do que o exprimir em palavras.
Eram mais ou menos duas horas e meia, quando fui conduzida à cidade, para ver o que lá se passava. Encontrei-a cheia de pavor e consternação; as ruas em trevas, cobertas de nevoeiro; os homens erravam aqui e ali, às apalpadelas; muitos estavam prostrados por terra, nos cantos, com a cabeça coberta, batendo no peito; outros olhavam para o céu ou estavam sobre os telhados, lamentando-se. Os animais mugiam e escondiam-se, os pássaros voavam baixo e caíam. Vi que Pilatos fizera uma visita a Herodes, de manhã, assistira à humilhação de que Jesus fora alvo. “Isto não é natural”, disseram, “excederam-se nos maus tratos ao Nazareno”. Vi-os depois irem juntos ao palácio de Pilatos, atravessando o fórum; ambos estavam muito assustados, indo a passos apressados e cercados de soldados. Pilatos não ousou olhar para o lado do Gábata, o tribunal de onde tinha pronunciado a sentença contra Jesus. O fórum estava deserto; aqui e acolá alguns homens voltavam apressadamente para casa, outros passavam chorando.
Juntavam-se também alguns grupos de povo nas praças públicas. Pilatos mandou chamar os anciãos do povo ao palácio e perguntou-lhes o que significavam aquelas trevas; disse-lhes que as tomava por um sinal de desgraça iminente; o Deus dos judeus parecia estar irado porque haviam exigido à força a morte do Galileu, que certamente era profeta e rei dos judeus; enquanto a ele, Pilatos, não tinha culpa, lavara as mãos, etc.
Os judeus, porém, ficaram endurecidos, queriam explicar tudo como fenômeno comum e não se converteram. Converteu-se, contudo, muita gente, entre outros também todos os soldados que, na véspera, tinham caído por terra e se levantado, quando prenderam Jesus no monte das Oliveiras.
No entanto, juntou-se uma multidão de povo diante do palácio de Pilatos e onde de manhã tinham gritado: “Crucifica-o! Crucifica-o”, gritavam agora: “Fora o juiz injusto! Que o sangue do Crucificado caia sobre os seus assassinos!”. Pilatos viu-se obrigado a rodear-se de guardas. Zodoc, que, de manhã, quando Jesus fora conduzido ao pretório, lhe proclamara alto a inocência, agitou-se e falou com tal veemência diante do palácio, que Pilatos esteve a ponto de mandá-lo prender. Pilatos, o miserável desalmado, atribuiu toda a culpa aos judeus: disse que não tinha nada com isso, que Jesus era o rei, o profeta, o Santo dos judeus, a quem estes tinham levado à morte e nada tinha com ele, nem lhe cabia culpa; os próprios judeus é que lhe tinham exigido a morte, etc.
No Templo reinava extremo susto e terror. Estavam ocupados na imolação do cordeiro pascal, quando veio de repente a escuridão. Tudo estava em confusão e aqui e ali se ouviam gritos angustiosos. Os príncipes dos sacerdotes fizeram tudo para conservar a calma e a ordem: fizeram acender todas as lâmpadas, apesar de ser meio-dia, mas a confusão crescia cada vez mais. Vi Anás preso de susto e terror; corria de um canto a outro, para se esconder. Quando tornei a sair da cidade, ouvi as grades das janelas das casas tremerem, sem haver tempestade. A escuridão crescia cada vez mais. Na parte exterior da cidade, ao noroeste, perto do muro, onde havia muitos jardins e sepulturas, desabaram algumas entradas de sepulcros, como se houvesse um tremor de terra.
Sobre o Gólgota fizeram as trevas uma impressão terrível. A horrorosa fúria dos verdugos, os gritos e imprecações na elevação da cruz, os uivos dos ladrões ao serem amarrados ao madeiro, os insultos dos fariseus a cavalo, o revezar dos soldados, a barulhenta partida dos algozes embriagados, tudo isso diminuiria a princípio um pouco o efeito das trevas. Seguiram-se depois as repreensões do ladrão penitente, Dimas, e a raiva dos fariseus contra ele. Mas à medida que crescia a escuridão, tornavam-se mais pensativos os espectadores, afastando-se da cruz. Foi então que Jesus recomendou sua Mãe a João e que Maria foi conduzida a alguma distância do lugar do suplício. Houve um momento de solene silêncio; o povo estava assustado com as trevas; a maior parte olhava para o céu; em muitos corações se levantou a voz da consciência; muitos se arrependeram e, olhando para a cruz, bateram no peito; pouco a pouco se formaram grupos de pessoas que sentiam essas mesmas impressões. Os fariseus, ocultando o terror, ainda procuravam explicar tudo pelas leis naturais, mas baixavam cada vez mais a voz e afinal quase não ousavam mais falar; de vez em quando ainda proferiam uma palavra insolente, mas soava um tanto forçada. O disco do sol estava meio escuro, como uma montanha ao luar; estava rodeado de um anel vermelho. As estrelas tinham um brilho rubro; os pássaros caíam sobre o Calvário e nas vinhas vizinhas entre os homens, e deixavam-se pegar com a mão; os animais dos arredores mugiam e tremiam; os cavalos e jumentos dos fariseus apertavam-se uns de encontro aos outros, baixando as cabeças. O nevoeiro úmido envolvia tudo.
Em redor da cruz reinava silêncio; todos se tinham afastado, muitos fugiram para a cidade. O Salvador, naquele infinito martírio, mergulhado no mais profundo abandono, dirigindo-se ao Pai Celestial, rezava pelos inimigos, impelido pelo amor. Rezava, como durante toda a Paixão, recitando versos de salmos que nele se cumpriram. Vi figuras de Anjos em redor dele. Quando, porém, a escuridão cresceu e o terror pesava sobre todas as consciências e todo o povo estava em sombrio silêncio, ficou Jesus abandonado de todos e privado de toda a consolação. Sofria tudo quanto sofre um pobre homem, aflito e esmagado pelo absoluto abandono, sem consolação divina ou humana, quando a fé, a esperança e a caridade, privadas de iluminação e consolo, de visível assistência, ficam sozinhas no deserto da provação, vivendo de si mesmas, em um infinito martírio.
Tal sofrimento não se pode exprimir. Nessa tortura moral, Jesus nos alcançou a força de resistirmos na extrema miséria do abandono, quando se rompem todos os laços e relações com a existência e a vida terrena, com o mundo e a natureza em que vivemos, quando se desfazem também as perspectivas que esta vida em si nos abre, para outra existência; nessa provação venceremos, se unirmos nosso abandono com os merecimentos do abandono de Jesus na cruz. O Salvador conquistou-nos os méritos da perseverança, na extrema luta do absoluto abandono, e ofereceu por nós, pecadores, a miséria, a pobreza, o martírio, o abandono que sofreu na cruz, de modo que o homem, unido a Jesus no seio da Igreja, não deve mais desesperar na hora extrema, quando tudo se escurece e toda a luz e consolação acabam. Não temos mais de descer nesse deserto da noite interior, sozinhos e sem proteção. Jesus lançou no abismo desse mar de amargura o abandono exterior e interior que padeceu na cruz, e assim não mais deixou os cristãos desamparados no abandono da morte, quando desaparece toda a consolação. Não há mais para o cristão nem deserto, nem solidão, nem abandono, nem desespero, na hora da morte, no último combate; pois o Salvador, a luz, o caminho e a verdade, também andou por esse caminho tenebroso, derramando bênçãos e vencendo todos os terrores, e erigiu sua cruz também nesse deserto.
Jesus, inteiramente desamparado e abandonado, ofereceu-se como faz o amor, a si mesmo por nós, fez até do abandono um riquíssimo tesouro; pois se ofereceu, com toda sua vida, seus trabalhos, amor e sofrimento e a dolorosa fraqueza e pobreza. Fez testamento diante de Deus e ofereceu todos os seus merecimentos à Igreja e aos pecadores. Pensou em todos; naquele abandono estava com todos, até o fim dos séculos; e assim rezou também por aqueles hereges que afirmam que sendo Deus, não sentiu as dores da Paixão e não sofreu, ou sofreu menos do que um homem comum em igual martírio. Participando dessa oração e sentindo com ele as angústias, parecia-me ouvi-lo dizer, que “se devia ensinar o contrário, isto é, que Ele sentiu esse sofrimento do abandono com mais amargura do que um homem comum, porque estava intimamente unido à Divindade, porque era verdadeiro Deus e verdadeiro homem e no sentimento da humanidade, abandonado por Deus, bebeu, como Deus-Homem, até o fundo o cálice do abandono completo.”
E testemunhou por um grito a dor do abandono, dando assim a todos os aflitos, que reconhecem a Deus por Pai, a liberdade de uma queixa cheia de confiança filial. Pelas três horas, Jesus exclamou em alta voz: “Eli, Eli, lama Sabachtani!”, o que quer dizer: “Meu Deus, meu Deus, por que me abandonastes?”.
Quando esse grito de Nosso Senhor interrompeu o angustioso silêncio que reinava em redor da cruz, os escarnecedores se voltaram novamente para ele e um deles disse: “Ele está chamando Elias”, e outro: “Vamos ver se Elias vem ajudá-lo a descer da cruz”. Quando, porém, Maria ouviu a voz do Filho, nada mais pôde retê-la; voltou para junto da cruz, seguida por João, Maria, filha de Cléofas, Madalena e Salomé. Enquanto o povo tremia e gemia, vinha passando perto um grupo de cerca de trinta homens a cavalo, notáveis da Judeia e da região de Jope, que tinham vindo para a festa; e quando viram Jesus tão horrivelmente tratado e os sinais ameaçadores que se mostravam na natureza, exprimiram em alta voz o horror que sentiam, exclamando: “Ai! desta cidade abominável! Se nela não estivesse o Templo, devia-se destruí-la a fogo, por ter se tornado culpada de tanta iniquidade”.
As palavras desses distintos estrangeiros foram como um ponto de apoio para o povo, que rompeu em murmuração e altos lamentos; os que tinham os mesmos sentimentos, juntaram-se em grupos. Todos os presentes formaram dois partidos: uns murmuravam e lamentavam-se, outros proferiam insultos e imprecações. Os fariseus, porém, ficavam cada vez menos arrogantes; temendo um levante do povo, porque também o povo de Jerusalém estava sobressaltado, aconselharam-se com o centurião Abenadar; deram-se ordens para fechar a porta da cidade que dava para o Calvário, cortando assim toda a comunicação; mandaram também um mensageiro a Pilatos, para pedir 500 soldados, e também a guarda real de Herodes, para impedir uma insurreição. No entanto, conseguiu o centurião Abenadar, pela energia, restabelecer a ordem e calma, proibindo qualquer insulto a Jesus, para não irritar o povo.
Logo depois das três horas, o céu começou a esclarecer-se; a lua afastou-se gradualmente do sol, para o lado oposto àquele de que viera. O sol reapareceu, sem brilho, ainda vedado pelo nevoeiro vermelho e a lua ia descendo rapidamente para o outro lado, como se caísse. Pouco a pouco o sol readquiriu mais claridade e as estrelas desapareceram; contudo o dia ainda permanecia sombrio. À medida que reaparecia a luz, tornavam-se os inimigos escarnecedores mais arrogantes; foi nessa ocasião que disseram: “Ele está chamando Elias”. Abenadar, porém, impôs-lhes silêncio e manteve a ordem.
Quando a luz voltou, surgiu o corpo de Nosso Senhor, pálido, extenuado, como que inteiramente desfalecido, mais branco do que antes, por causa da grande perda de sangue. Jesus disse ainda, não sei se o percebi só interiormente ou se ele o disse a meia voz: “Sou espremido como as uvas, que foram pisadas aqui pela primeira vez; devo dar todo meu sangue, até sair água, e o bagaço ficar branco; mas não se fará mais vinho neste lugar”. Mais tarde, numa visão a respeito dessas palavras, vi que foi nesse lugar que Jafé pela primeira vez pisou as uvas para fazer vinho. Jesus consumia-se de sede e disse com a língua seca: “Tenho sede”. E como os amigos o olhassem com tristeza, disse-lhes: “Não me podíeis dar um gole de água?”. Queria dizer que durante a escuridão ninguém os teria impedido. João, muito incomodado, respondeu: “Senhor, esquecemo-lo mesmo”. Jesus disse ainda algumas palavras cujo sentido era: “Também os amigos mais íntimos deviam esquecer-se e não me dar a beber, para que se cumprisse a Escritura”. Mas esse esquecimento lhe doeu amargamente. Ofereceram então dinheiro aos soldados, para lhe dar um pouco de água; eles recusaram, mas um deles tomou uma esponja em forma de pera, embebeu-a em vinagre, que havia lá em um pequeno barril de casca de árvore, e ainda lhe misturou fel. Mas o centurião Abenadar, compadecido de Jesus, tomou a esponja do soldado, espremeu-a e embebeu-a de vinagre puro. Ajustou depois um lado da esponja num pedaço curto de uma haste de hissope, que servia de boquilha para chupar, fincou-a na ponta da lança e levantou-a à altura do rosto de Jesus, aproximando-lhe a esponja dos lábios. Nosso Senhor ainda disse algumas palavras de exortação ao povo; lembro-me apenas que disse: “Quando minha voz não se fizer mais ouvir, falará a boca dos mortos”; ao que alguns gritaram: “Ainda continua blasfemando”. Abenadar, porém, os mandou calar.
Tendo chegado a hora da agonia, Nosso Senhor lutou com a morte e um suor frio cobriu-lhe os membros. João estava sob a cruz e enxugou-lhe os pés com o sudário. Madalena, esmagada pela dor, encostava-se à cruz no lado de trás. A Santíssima Virgem estava entre a cruz do bom ladrão e a de Jesus, amparada pelos braços de Maria de Cléofas e Salomé, olhando para o Filho, que lutava com a morte. Então disse Jesus: “Tudo está consumado!” e, levantando a cabeça, exclamou em alta voz: “Meu Pai, em vossas mãos entrego o meu espírito”. Foi um grito doce e forte, que penetrou o Céu e a terra; depois inclinou a cabeça e expirou. Vi a alma de Jesus, em forma luminosa, entrar na terra, ao pé da cruz e descer ao Limbo. João e as santas mulheres prostraram-se com a face na terra.
O centurião Abenadar, árabe de nascimento, depois, como discípulo, batizado com o nome de Ctesifon, desde que oferecera o vinagre a Jesus, ficara a cavalo junto à elevação onde estavam erigidas as cruzes, de modo que o cavalo tinha as patas dianteiras mais no alto. Profundamente abalado, entregue a sérias reflexões, contemplava incessantemente o semblante de Nosso Senhor, coroado de espinhos. O cavalo baixara assustado a cabeça e Abenadar, cujo orgulho estava domado, não puxava mais as rédeas. Nesse momento pronunciou o Senhor as últimas palavras em voz alta e forte e morreu dando um grito, que penetrou o Céu, a terra e o inferno. A terra tremeu e o rochedo fendeu-se, deixando uma larga abertura entre a cruz do Senhor e a do ladrão à esquerda. O testemunho que Deus deu de seu Filho, abalou com susto e terror a natureza enlutada. Estava consumado! A alma de Nosso Senhor separou-se do corpo e ao grito de morte do Redentor moribundo estremeceram todos que o ouviram, junto com a terra que, tremendo, reconheceu o Salvador; os corações amigos, porém, foram transpassados pela espada da dor. Foi então que a graça desceu à alma de Abenadar; estremeceu emocionado, cederam-lhe as paixões e o seu coração orgulhoso e duro, fendeu-se como o rochedo do Calvário. Lançou longe de si a lança, bateu no peito com força e exclamou alto, com a voz de um homem novo: “Louvado seja Deus, Todo-Poderoso, o Deus de Abraão e Jacó! Este era um homem justo; em verdade, ele é o Filho de Deus!”. E muitos dos soldados, tocados pela palavra do centurião, fizeram o mesmo. Abenadar, tornado novo homem, salvo pela graça e tendo rendido publicamente homenagem ao Filho de Deus, não quis ficar mais tempo servo dos inimigos de Cristo. Dirigiu-se a cavalo ao oficial subalterno, Cássio, também chamado Longinus, apeou-se, apanhou a lança e a ele entregou-a; disse algumas palavras aos soldados e a Cássio, que então montou o cavalo e tomou o comando. Abenadar desceu do Calvário e, atravessando o vale de Gihon, dirigiu-se às cavernas do vale de Hinom, onde estavam escondidos os discípulos; anunciou-lhes a morte do Senhor e voltou de lá à cidade, ao palácio de Pilatos.
Grande espanto apoderou-se dos assistentes, ante o grito de morte de Jesus, quando a terra tremeu e o rochedo do Calvário se fendeu. Esse terror fez-se sentir em toda a natureza; pois rasgou-se o véu do Templo, muitos mortos saíram das sepulturas, desabaram algumas paredes do Templo, ruíram muitos edifícios e desmoronaram montes em muitas regiões da terra. Abenadar deu testemunho em alta voz, muitos soldados testemunharam com ele, grande parte do povo presente e também alguns dos fariseus, chegados no fim, se converteram-se. Muitos bateram no peito e, descendo do monte, voltaram chorando pelo vale para casa; outros rasgaram as vestes e lançaram pó sobre a cabeça. Todo o mundo estava cheio de medo e terror.
João levantou-se e algumas das santas mulheres, que até então tinham ficado afastadas, aproximaram-se da cruz; levantaram a Mãe de Jesus e as amigas, conduziram-nas a alguma distância da cruz, para as confortar.
Quando Jesus, cheio de amor, senhor de toda a vida, pagou pelos pecadores a dolorosa dívida da morte; quando entregou, como homem, a alma a Deus, seu Pai, e abandonou o corpo, tomou esse santo vaso esmagado a fria e pálida cor da morte; o corpo tremeu-lhe convulsivamente nas últimas dores e tornou-se lívido, e os vestígios do sangue derramado das chagas ficaram mais escuros e distintos. O Seu rosto alongou-se, as faces encolheram-se, o nariz ficou mais delgado e pontiagudo, o queixo caiu, os olhos, cheios de sangue e fechados, abriram-se, meio envidraçados. O Senhor levantou pela última vez e por poucos momentos a cabeça, coroada de espinhos, e deixou-a depois cair sobre o peito, sob o peso dos sofrimentos. Os seus lábios lívidos e contraídos entreabriram-se, deixando ver a língua ensanguentada. As mãos, antes fechadas sobre a cabeça dos cravos, abriram-se; estenderam-se os seus braços, as costas endureceram-se ao longo da cruz e todo o peso do santo corpo desceu sobre os pés. Os seus joelhos curvaram-se, tornando para um lado, e os pés viraram-se um pouco em redor do prego que os trespassara.
Então se esticaram as mãos da Mãe Dolorosa, a sua vista escureceu-se, palidez de morte cobriu-lhe o rosto, os ouvidos deixaram de escutar, os pés vacilaram e ela caiu por terra; também Madalena, João e os outros se prostraram, com a cabeça velada, entregues à dor. Quando ergueram a mais amorosa, a mais desolada das mães, dirigindo os olhos à cruz, ela viu o corpo do Filho adorado, concebido na virgindade, por obra e graça do Espírito Santo, carne de sua carne, ossos de seus ossos, coração de seu coração, vaso sagrado formado no seu seio pela virtude divina, agora privado de toda a beleza e formosura, separado da alma santíssima, entregue às leis da natureza que Ele próprio criara e de que os homens tinham abusado pelo pecado, desfigurando-a; viu o corpo do Filho Unigênito esmagado, maltratado, desfigurado, morto pelas mãos daqueles que viera salvar e vivificar. Ai! O vaso de toda beleza e verdade, de todo amor, pendia da cruz, entre dois assassinos, vazio, rejeitado, desprezado, insultado, semelhante a um leproso. Quem pode compreender toda a dor da Mãe de Jesus, rainha de todos os mártires?
A luz do sol ainda era sombria e nebulosa. O tremor de terra foi acompanhado de calor sufocante; mas seguiu-se-lhe depois um frio sensível. O corpo de Nosso Senhor morto, na cruz, causava um sentimento de respeito e estranha comoção. Os ladrões pendiam em horríveis contorções, como embriagados. Ambos estavam, no fim, calados; Dimas rezava. Era pouco depois das três horas, quando Jesus expirou. Passado o primeiro terror causado pelo tremor de terra, alguns dos fariseus recobraram a anterior arrogância. Aproximando-se da fenda no rochedo do Calvário, jogaram-lhe pedras, e atando várias cordas, amarraram uma pedra, fizeram-na entrar na fenda, para medir-lhe a profundidade; quando, porém, não tocaram no fundo, tornaram-se mais pensativos. Também se sentiam inquietos com os lamentos do povo, que batia no peito; e por isso, montando a cavalo, retiraram-se; alguns se sentiam mudados interiormente. O povo também se retirou em pouco tempo, indo pelo vale para a cidade, cheio de medo e terror. Muitos se tinham convertido. Uma parte dos 50 soldados romanos foi reforçar a guarda da porta, até a chegada dos 500, requeridos a Pilatos. A porta tinha sido fechada; alguns soldados ocuparam outros pontos da vizinhança, para impedir ajuntamento e tumulto. Cássio (Longino) e cerca de cinco soldados ficaram no lugar do suplício. Os parentes de Jesus estavam em redor da cruz ou sentados em frente, chorando. Algumas santas mulheres tinham voltado à cidade. Silêncio e tristeza reinavam em volta do lenho sagrado. De longe, no vale e nas alturas afastadas, se via de vez em quando um ou outro discípulo, olhando com curiosidade e receio para a cruz, mas retirando-se timidamente, ao aproximar-se alguém.
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